terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Carta aos puros

Amigos,
Que 2009 nos seja leve!
Desejo meu para vocês.




Carta aos puros


Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens ilumidados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o homem alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

(Vinícius de Moraes)

sábado, 20 de dezembro de 2008

Poema do dia

Tenzone

um ouro de provença
(ora direis) uma doença
de sol um sol queimado
desse vento mistral (que doura e adensa)
provedor de palavras sol-provença
ponta de diamante rima em ença
como quem olha a contra-sol
e a contravento pensa.

(Haroldo de Campos - a educação dos cinco sentidos)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O caleidoscópio

1
para silvano e nancy
faça rodar o caleidoscópio
sinta

nada vibra
senão ele mesmo

na maravilha
que gira

(oswaldo martins)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A propósito, uma letra do Haroldo Barbosa

Não se aprende na escola

Dom Pedro disse fico
E ficou, que maravilha!
Mas quem ficou com Pedro
Foi a dona Domitila
Não se trata de invenção
De quem não tem boa cachola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Depois do casamento
Todo mundo tem vergonha
Papai que está nervoso
Põe a culpa na cegonha
A cegonha leva fama
Não reclama e não dá bola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Napoleão primeiro
Sempre soube que ele é
Mas foi com Josefina
Que aprendeu a manobrar
Josefina tinha um jeito
De prendê-lo na gaiola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Semente dá um broto
Diz a história natural
O broto dá uma encrenca
Quase sempre desigual
Se não sabe então que guarde
Esse conselho na cachola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

(Haroldo Barbosa)


A letra da música exposta acima faz lembrar meu pai, quando a cantava, levando-nos a mim e a meu irmão para a escola. Uma bela lição de insubordinação e visão crítica. Gosto da gravação que dela fiz Aracy de Almeida, uma das minhas cantoras prediletas.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Poema de Hu Xudong

Doors

My bizarre apartment building
has sixteen doors, big and small.
These doors ape each other, fighting for no reason –
every day, each one struggles
to distinguish itself from the others.
For example, Cafeteria Door 1 and Cafeteria Door 2
are only ten centimeters apart, but when it’s drafty,
Cafeteria Door 1 insists on crying guanglang while Cafeteria Door 2
always squeaks zhizhi yaya. It’s the same
with Kitchen Doors 1, 2, and 3,
where the odor of cheese, hot pepper, and onions
pervade the space. Because I hate cheese,
I never enter the kitchen through Door 1. The conflict
between Door 1 and Door 2 of Bathroom 1
is irreconcilable. If I need to take a shit, I have to go through Door 1
and come out through Door 2. Otherwise, I’d never close the doors right
and the smell of garlic from the toilet would fill the building.
Sometimes it’s too confusing, and I’d rather
go to Bathroom 2 to take a shit, but Bathroom 2
is a little annoying – it’s also
Door 2 of my roommate Carlos’s room.
When Carlos comes out to brush his teeth, I have to say good morning
while I’m squatting on the toilet. These peculiar doors
play nasty practical jokes on each other.
When my lonesome bedroom door is in a good mood,
it will imitate my neighbor Paulo’s
hedonistic bedroom door, and one day
after Paulo’s girlfriend with the enormous tits used Bathroom 3,
she came back to the wrong room. These days, it’s Christmas break,
my roommates have all gone home, and I’m alone
in the apartment looking after these sixteen bizarre doors.
This afternoon, as a storm came through,
I threw open all the doors and closed them again,
chanting to them: four times four is sixteen.
Sixteen days until I can open
my little door in China.

12.26.04, Brasília
trans. Eleanor Goodman and Wang Ao

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A porta de Elvira

a porta de elvira

para elvira vigna, que me fez uma homenagem numa linda porta


porta com seus caralhinhos voadores
qual em um soneto de odores sujos
recende a palavras rudes e a verbos
que celebram os vagidos da vulvas

onde esta porta neste soneto inscrito
se faz a emoção dos líquidos puros
como lapa ou os banheiros ou muros
do subúrbio inscrevem atrevidos

cus bucetas e os velhíssimos números
para contato das putas dos veados
dos homens que cirandam recriados

pelas ficções da arte dos grafites
a óleo a caneta a sangue nos ventres
desalinhados: porta-soneto, em riste.

(oswaldo martins)

Um emprego para o til

(Um emprego para o til antes que a reforma ortográfica acabe com ele também)


inu~

Cesar Cardoso

domingo, 7 de dezembro de 2008

Jorge Coli (Folha de São Paulo Caderno Mais 12/10/08)

Oswaldo Martins, especialista em literatura erótica, é também poeta. Um ou outro de seus poemas, em livros e no blog http://osmarti.blogspot.com/, contém palavras mais fortes. Alguns elaboram desejos físicos de maneira delicada e sem evidência imediata. O blog é inteligente, carregado de amor pela literatura; os poemas são bons. Essas qualidades bastaram para que a Escola Parque [no Rio], em que Oswaldo Martins lecionava português, o demitisse, como contou, no domingo passado, o Mais!. A miopia moralista da escola, dos pais, de "psicólogos e juristas" evocados no texto, miopia que desencadeou o caso, assusta pelo "obscurantismo e a certeza dos censores", na expressão do próprio professor despedido. Censura e obscurantismo, no caso, não são singulares e episódicos. Eles se inserem na mentalidade de nossos tempos regressivos, marcados por puritanismos, por fundamentalismos religiosos, pelo maniqueísmo das convicções, pelo gosto doentio em patrulhar, controlar, vigiar e punir. É bem difícil lutar contra tudo isso porque essas manifestações se fazem com parcimônia, gota a gota, disfarçadas, em nome de álibis austeros. Aqui, trata-se de proteger as crianças, que, como todos sabem, são anjinhos imateriais, feitos de etérea e cândida substância, não de carne e osso. Mas quem os protegerá, e a nós todos, do mal que existe na cabeça desses educadores, desses pais, desses psicólogos e juristas, que nunca disseram um palavrão, que estão incólumes de pulsões pecaminosas, e que, senhores da moral, transformaram-se em juízes? Quem nos protegerá dos puros?
(Jorge Coli - Folha de São Paulo - Caderno Mais em 12/10/08)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Na cadência do samba

Para Cesar Cardoso, presente na cadência do samba
Muitos são os sambas, muitas a cadências. Carlos Cachaça, Nélson Cavaquinho. Cartola. Geraldo Pereira. Nelson Sargento. Lembro-me quando os ouvi pela primeira vez. Um espanto. Como podia? Os menestréis me davam resposta em seus próprios sambas, na elocução com que escandiam cada sílaba, cada acorde. Fiquei e fico parado ouvindo, como uma unção. O samba em Mangueira.

Gosto de ouvir música sem luz ambiente, em treva total. Mergulhado no significado, construção daquilo que ouço. Já ouviram o violão do Nelson Cavaquinho? Só o violão, abstraindo o canto? É como um mergulho na loucura, nas ficções mais complexas já criadas pelo homem. E tudo é tão simples.

Depois Oswaldo Cruz. Monarco, Mijinha, Casquinha, Argemiro. Os Paulos. Outro espanto. Outra unção. Os homens rudes de meu país são pessoas delicadas, capazes da transparência mais ousada do sentimento humano. Pedreiros, forjadores, lavadores de carro, figuras do ruído urbano transformado. Tudo tão límpido, claro com que ao alcance da mão.

Depois ainda a Serrinha. Unção. Espanto. Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola. Wilson das Neves. A extrema função do batuque, do acompanhamento de fundo de quintal, como uma bateria potente de ritmos insuspeitados. A voz dos ex-escravos. Da nobreza do samba. Já ouviram a limpidez da voz de Dona Ivone? O requebro de cabrocha soando em nossos ouvidos, retinindo como o cristal dos corpos em requebro sonoro.

Apaguem depois os violões, os pandeiros, as cuícas. Ouçam a voz com que cantam nossos cantores. Dizia o Nelson Cavaquinho que achava sua voz uma voz que melhor cantava, pois recriava o ambiente da emoção da criação. Do porre, da sujidade embelezada pela angústia, pelo trágico movimento dos homens pela cidade, saudosos, ressequidos e abandonados.

Um parêntese para a voz madura, já envelhecida, dos que entraram em estúdio tardiamente, no canto sublime de Guilherme de Brito. Meu deus! A beleza se revela de forma integral.

(oswaldo martins)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

retrato subjetivo para paloma

la paloma de pablo ruiz
la paloma de olhos abissais

de cabelos negros

la bela paloma
de chinelos roxos

e colo largo

(oswaldo martins)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Modigliani


3
escrevo
palavras de fogo

quando nua
desata

os nós
de minha conduta

(oswaldo martins - minimalhas do alheio)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Poema do dia

A MULHER DE LOT

A mulher de Lot, que o seguia, olhou
para trás e transformou-se numa estátua de sal.
Gênesis

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".
Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.


Anna Akhmátova

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Poema do dia

museu de tudo

morreu o poeta
da língua das pedras
e das facas
da andaluzia aquosa
e dos canaviais eternos

morreu o descobridor
da poesia diamante
correnteza fina e quente
que nos leva à raiz de tudo

morreu joão
o cabral de melo
e neto

(Dora Ribeiro - Taquara rachada)

]

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Poema do dia

FORMAS DO NU 1.

A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
do seu cuspe privado.

Jamais para velar-se:
e por isso são ralos.
Para enredar os outros
é que usa enredados.

Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se, dela mesma,
o trama autobiográfico.

E em muito menos tempo
que tomou em tramá-lo,
o véu que não a velou
aí deixa, abandonado.

2.

Somente na metade
é o aruá couraçado.
Na metade cimento,
na laje do telhado.

Porque apesar do teto
que o veste pelo alto,
o aruá existe nu,
nu de pele, esfolado.

Sua casa tem teto
mas não tem assoalho:
cai descalça no mangue,
chão também escoriado.

E o morador da casa
se mistura por baixo
com a lama já mucosa:
bicho e chão penetrados.

3.

Que animais prezam o nu
quanto o burro e o cavalo(que aliás em Pernambuco
Jamais andam calçados).

A sela e a cangalha
deixam-nos sufocados
como se respirassem
também pelos costados.

É vê-los se espojar
na escova má do pasto
quando lhes tiram o arreio
e os soltam no cercado:

se espojando, têm todos
os gestos de asfixiado:
espasmos, estertores
de asmático e afogado.

4.
O homem é o animal
mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro
se isola do ar abraço.

Depois, a pedra e cal,
de paredes trajado,
se defende do abismo
horizontal do espaço.

Para evitar a terra
calça nos pés sapatos,
nos sapatos, tapetes,
e nos tapetes, soalhos.

Calça as ruas: e como
não pode todo o mato,
para andar nele estende
passadeiras de asfalto.

(João Cabral de Melo Neto – As formas do nu)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Penha

penha
para o felipe rodrigues

se vê
em seu espelho

a cor devora
linguagens

a cidade,
um filme

sobre os lajedos
que despencam

os penhascos
intumescidos


(oswaldo martins)

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

AS VEREDAS

as veredas

toda saudade é uma espécie de enterro
todo esquecido, a melhor parte do erro

nenhuma porta reabre o teu passado
nenhum futuro terá você do meu lado

todo mistério um dia traduz-se em fórmula
tudo que é certo ainda se acaba em dízima

nenhum inferno sobrevive sem seu deus
nenhum embalo confessa parir mateus

nada que presta mesmo assim se dá ao lucro
tudo que fode tem sua hora de eunuco

Cesar Cardoso

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Henry Miller

Em uma de nossas penitenciárias federais, o sacerdote irlandês que me mostrou a capela apontou a janela de vitral feita por um dos presos – como se fosse uma grande piada. O que ele admirava eram as ilustrações de caixas de charuto para a Bíblia, executadas por presos que “sabiam pintar”, conforme dizia. Quando lhe disse abertamente que não concordava com sua posição, quando comecei a falar com reverência e entusiasmo sobre os esforços humildes, mas sinceros do homem que havia feito os vitrais, ele confessou que não sabia nada de arte. Só entendia que um homem sabia desenhar e o outro não. “É isso que faz de um homem um artista, saber desenhar braços e pernas, saber fazer um rosto humano, colocar um chapéu direitinho na cabeça de um indivíduo – é isso?”, perguntei. Ele coçou a cabeça perplexo. Evidentemente essa questão nunca lhe passara pela cabeça antes. “O que o sujeito está fazendo agora?”, indaguei a respeito do homem que fizera os vitrais. “Ele? Ah, nós estamos ensinando-o a copiar imagens de revistas.” “Como ele está se saindo?” “Ele não se interessa nem um pouco.”, disse o padre. “Parece não ter vontade de aprender.”

“Idiota!”, pensei comigo. Até na prisão tentam arruinar o artista. Em toda a penitenciária, a única coisa que me interessou foram aquelas janelas de vitral. Era a única manifestação do espírito humano livre da crueldade, ignorância e perversão. E eles haviam pegado esse espírito livre, um homem devoto, humilde, que amava seu trabalho, e tentavam transformá-lo em um burro educado. Progresso e iluminação! Transformar um bom presidiário em um potencial ganhador do prêmio Guggenheim. Pfu!

(Henry Miller – Pesadelo Refrigerado)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Dois segmentos de Urânia

Um
para Oswaldo e Wal

A chuva de Aristóteles
O sangue de Harvey
Lavoisier, a História

Outro
Do pó ao Pó do Pirlimpimpim
Vós que aí estais
Ad verbum revertimini

domingo, 9 de novembro de 2008

Poema do dia

EVA

Quando a serpente estendeu a Eva uma maçã, falou-lhe
com uma voz, que ressoava
por entre as folhas como uma sinta de prata.
Mas acontece que sussurrou depois
algo mais em seu ouvido
com calma, muita calma, calmamente
algo que não consta da escritura.

Nem mesmo Deus ouviu direito este sussurro
mesmo escutando ele também.
E Eva não quis contar nem mesmo a
Adão.

Desde então a mulher esconde sob as pálpebras um mistério
e oscila seus cílios e insinua
que ela sabe alguma coisa,
que nós não sabemos,
que ninguém sabe,
nem mesmo o próprio Deus.

(Lucian Blaga)

Lucian Blaga é poeta romeno. Nascido em 1899 e morto em 1961. É considerado um dos poetas mais importantes e influentes da poesia romena do século XX. A tradução que se apresenta, feita diretamente do romeno é de Caetano Waldrigues Galindo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Myres: Alexandria in 340 AD

By Constantine Cavafy, Translated from the Greek by Daniel Mendelsohn

When I learned the dreadful news, that Myres was dead,
I went to his house, for all that I am loath
to go inside the homes of Christians,
above all those in mourning, or on feast-days.

I stood there in a corridor. I didn't want
to go in any further, since I perceived
that the kinsmen of the dead man were looking at me
with evident dismay, and with displeasure.

They had him in a large room
a part of which I saw from where I stood
off to the side: all expensive carpets,
and services of silver and of gold.

I stood crying on one side of the corridor.
And I was thinking that our gatherings and outings
wouldn't be worth much, without Myres, from now on;
and was thinking that I'd no longer see him
at our splendid and outrageous all-night revels,
enjoying himself, and laughing, and declaiming lines
with that perfect feel he had for Greek rhythm;
and was thinking that I'd lost forever more
his beauty, that I'd lost forever more
the youth whom I once worshipped to distraction.

Some old women, near me, were speaking softly
about the last day that he was alive—
the name of Christ always on his lips,
a cross that he was holding in his hands.—
Later on there came into the room
four Christian priests, and they fervently
recited prayers and orisons to Jesus,
or to Mary (I don't know their religion very well).

We knew, of course, that Myres was a Christian.
From the very first we knew it, when
the year before last he joined our little band.
But he lived his life completely as we did.
Of all of us, the most devoted to his pleasures;
squandering lavish sums on his amusements.
Blithely untroubled by what people thought,
he'd throw himself eagerly into nighttime brawls in the street,
whenever our gang chanced upon a rival gang.
Not once did he speak about his religion.
Sure, there was the time that we told him
that we were taking him along with us to the Serapeum.
But he seemed to be unhappy with
this little joke of ours: I remember now.
Ah, and two other times now come to mind.
When we were making libations to Poseidon,
he pulled out of our circle, and turned his gaze elsewhere.
When one of us, in his enthusiasm,
said, May our company ever be under
the favor and protection of the great,
the all-beautiful Apollo—Myres murmured
(the others didn't hear) "except for me."

Their voices raised, the Christian priests
were praying for the soul of the young man.—
I stood observing with how much diligence,
and with what intense attention
to the protocols of their religion, they were preparing
everything for the Christian funeral rite.
And all of a sudden I was seized by a queer
impression. Vaguely, I had the feeling that
Myres was going far away from me;
had a feeling that he, a Christian, was being united
with his own, and that I was becoming
a stranger to him, very much a stranger; I sensed besides
a certain doubt coming over me: perhaps I had been fooled
by my passion, had always been a stranger to him.—
I flew out of their horrible house,
and quickly left before their Christianity
could get hold of, could alter, the memory of Myres.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

poema para eugênio hirsch

8

para eugênio hirsch


I

a amélia
de eugênio
é eloqüente

(diferente da de ataulfo)

usa sapato de salto
e o xibiu
para o

alto

II

na cosmogonia
de eugênio

vitória abril
rebola
otelo amamenta
uma puta

e uma mulata rosa
travestida
de anjo

engole a piroca
de um santo
barroco

III

adelita se fue a la guerra

38 são as palavras
da ilustração

para saber

como se sai
se entra
se entra e sai

da chavasca
da gata

(oswaldo martins)

Este poema, em memória de Eugênio Hirsch, amigo e conviva em seus últimos anos de vida. Presenteou-nos, a mim e a wal, com algumas de suas criações geniais. Uma mulata, que é capa de meu segundo livro o minimalhas do alheio, um a colagem em que Grande Otelo é amamentado pela colorida ministra e alvejado por um anjo de saias e uma ilustração, creio que para o pif-paf, que ensina como sair e entrar de uma dona de diversas nacionalidades. Uma preciosidade!

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Pesadelo refrigerado

Quando surgiu o telégrafo sem fio, todo mundo pensava: "Que maravilha! Agora vamos estar em comunicação com o mundo todo!" E a televisão: "Que maravilha! Agora Agora vamos poder ver o que acontece na China, na África, nas partes mais remotas do mundo!" Eu costumava pensar que talvez um dia surgisse um aparelho que me permitiria veros chineses andando nas ruas de Pequim e Xangai e selvagens no coração da àfrica celebrando seus ritos de iniciação. O que vemos e ouvimos de fato hoje? O que os censores nos permitem ver e ouvir, nada mais. A Índia continua tão remota como sempre foi - na verdade, acho que mais remota agora do que cinquenta anos atrás.

(Henry Miller)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

lorca

1

passam em bandos os urubus
as crianças olham

o universo se perde
tudo a una cor

astrolábio de cimento
e cal

****

granada
de terracota

construiu salamanca
para julgar

galileu

para deixar
livres

os velhos padres
sandeus

(oswaldo martins)

sábado, 25 de outubro de 2008

Fez, trinta poemas

Fès Aimeé
Fès trahie
Fès oubliée, emportée sur un paquebot
Vers Venise
Pour laver les mur et paver les rues.

Fès est une nuit de Sharazade
Avec ses palais abîmés
Ses ruelles infinies
Avec ses pierres
Ses mots, ses versets e ses ètoiless déchues.

Fès circule au Caire, la jupe fendue, le buste nu
Fès s’installe au marché de Sana’a
ET essuie lês balles de La guerre

Fès Voyage
Et lâche sés orpeaux
Partout où elle est prise d’asthme.

(Fès. Treite poèmes)

(Tahar Ben Jelloun)


****


Fez amada
Fez ferida
Fez esquecida, enviada num cargueiro
Rumo a Veneza
Para lavar os muros e pavimentar as ruas.

Fez é uma noite de Sherazade
Com seus palácios deteriorados
Suas vielas infinitas
Com sua pedras
Suas palavras, seus versículos e suas estrelas depostas.

Fez circula no Cairo, a saia fendida, o busto nu.
Fez se instala no mercado de Sana’a
E enxuga as balas da guerra.

Fez viaja
E deixa seus ouropéis
Por todo lado quando atacada de asma.

(Fez, trinta poemas)

(Tahar Ben Jelloun – Tradução Cláudia Falluh Balduino Ferreira)

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Jacopone da Todi

XLVIII

O Senhor, por cortesia,
Males ao corpo me envia!

Me venha a febre quartã,
Febre contínua e treçã,
Febre à noite e de manhã
E uma grande hidropisia.

Que me venha dor de dente,
Dor de cabeça e do ventre,
Arda a garganta atrozmente,
E o estômago tenha azia;

Os olhos doam e o flanco,
E um abscesso que não ‘stanco;
Que eu fique tísico e manco,
Sofra sempre de anemia.

Fique o fígado inflamado,
Podre o baço, o ventre inflado;
O pulmão em mau estado
Com tosse e paralisia.

Me venham cancros minúsculos
E milhares de furúnculos,
Fistulas como carbúnculos,
Sem parar, a cada dia.

Me venha grave podagra,
Cílios doentes eu traga,
E hemorróida em rubra chaga
De tanta desinteria.

Que eu tenha a boca ulcerosa
E cólica impiedosa;
Uma angina dolorosa
No peito, asma e asfixia.

Que o mal-caduco eu apanhe,
No fogo e na água, inane,
Eu desfaleça e me banhe,
Sem descanso ou melhoria.

Venham cegueira, surdez,
Venha depois a mudez,
Venha miséria e escassez,
Penas que nada alivia.

Que meu fedor afugente
Todo e qualquer ser vivente,
Que eu siga enfermo e dolente
Por uma estrada vazia.

No fosso horrível jogado
Que Regoverci é chamado,
Me consuma abandonado
Sem uma só companhia.

Neve, granizo, mau tempo,
Raio e treva, trovão, vento:
Não me poupe um contratempo,
Nem se vá se me assedia.

Demônios do negro inferno
Me tenham sob o seu governo,
Que seja um suplício eterno
Meu lucro após a folia.

Neste mundo sem guarida
Vá durando toda vida,
Mais tarde enfim, na partida,
Me aguarde morte sombria.

Seja um lobo a sepultura
Que me roa a ossada impura,
E relíquia a bosta escura
Caída entre a ramaria.

Os milagres ‘pós morte:
Com visões de toda sorte
Se aflija o incauto sem norte
que acaso tome esta via.

E sempre que eu for lembrado,
Sinais-da-cruz afobados
Sejam a medo esboçados,
Ou um desgraça viria.

Senhor, o castigo é nada,
Branda apena reclamada:
Tua cria bem-amada,
Te matei por vilania.

(Jacopone da Todi – século XIII)

Para estudar Jacopone:

Em português:
Ungaretti, Giuseppe: Invenção da poesia moderna: lições de literatura no Brasil, 1937 – 1942. São Paulo. Ática, 1996, p. 42-74.
Auerbach, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo. Perspectiva, 1987, p. 147-150.

Spina, Segismundo. Manual de versificação românica medieval. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 88-95.

Falbel, Nachman. Os espirituais franciscanos. São Paulo. Perspectiva, 1995

Souza, Marcelo Paiva. Traduzir Jacopone da Todi, in: Revista eletrônica de Estudos Literários. UFES. www.ufes.br/~mlb/>.

Em inglês:

Dronke, Peter. Medieval Lyric. Cambridge: D.S. Brewer, 2002

Peck, George T. The fool of God: Jacopone da Todi. Alabama. The University of Alabama Press, 1980.

As fontes de pesquisa, assim como o poema que aqui se lê, são de livro editado pela Editora UnB. Assina a seleção, a tradução e organização Marcelo Paiva de Souza.

A coleção chamada poetas do mundo edita diversos poetas de diversas nacionalidades Vale a pena conferir para que se possa conhecer e estudar essa produção, que para nós soa ainda como marginal. Encontrei os livrinhos na Arlequim, agora livraria, café e loja de CDs.
Para apreciação de vocês, um poema da japonesa Yosano Akiko, que viveu entre 1878 e 1942.

cabelo solto
espalha-se no quarto
perfume de lis
lentamente esvaece
a noite de amor rosa

(Yosano Akiko)

1

supor teus seios
catedrais onde celebro

nelas compor o desespero
da alegria

e olhos
para o despudor.

(oswaldo martins)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Um país parnasiano

Um país parnasiano


Os poetas modernistas leram a poesia parnasiana e a condenaram. Procuravam mudar os padrões de leitura do país. Desde os manifestos aos poemas escritos, pode-se ler o desprezo e o combate contra a retórica dos poetas do fim de século. Sabiam os modernistas que a poesia parnasiana, por trás do artesanato correto e erudito, escondia monstros – como os de Goya. O aparente deslocar-se da realidade, para privilegiar a forma poética, escondia o retrato monstruoso do país.

Os movimentos sociais do final do século XIX permitiram uma série de modificações no corpo político da nação. A substituição – da mão de obra escrava pela sub-assalariada; a Monarquia pela República positivista; os cortiços e casas de pensão por uma cidade que se queria asséptica – é apenas um dos índices destas modificações. A poesia parnasiana é outra dessas modificações. Conforme diz Antônio Candido em seu instigante artigo sobre a poesia realista, Os primeiros baudelairianos[1], os seguidores do parnasianismo “não poderiam aceitar Baudelaire, que naquele tempo era sinônimo de revolta, niilismo, neurose e desmando sexual – alimentos fortes demais para os nossos corretos parnasianos, que foram uns verdadeiros campeões de falsas ousadias”. (grifo meu). (Candido: 38 – 1987).

A recusa de Baudelaire faz pensar. Ao se recusarem ir para ruas, como a nação brasileira não foi, quando se anunciaram as modificações políticas a que se refere acima, os parnasianos interpretavam o país asséptico que se confirmava, através do positivismo, com seus lemas inspirados na ordem, na limpeza, na sujeira e miséria varridas para baixo do tapete. A cidade francesa de Haussmann transformou-se na cidade de Passos e deu frutos nação afora. Higienização e pureza d’alma, padrões que se reproduziram durante todo o século XX. Seja no Estado Novo de Vargas, seja na edição golpista de 64. Não se pode esquecer que diversos dos baluartes civis e militares de 64 atuaram no corpo político do governo Vargas. A democracia que surge e se instaura no país, após 64, teria a necessidade de recompor-se contra o autoritarismo. Triste país, que se esconde sob o manto da pureza e do silêncio, quando quaisquer vozes se elevam para discordar, futucar o estabelecido como norma. Ousadias, aqui, só se forem as parnasianas.

Por isso o legado modernista é mal compreendido. Quando Manuel Bandeira escreve seus poemas que incentivam a vida, – ler o Pneumotórax, por exemplo, como um reflexo da tuberculose é de uma incapacidade tola, pois nele o que se lê é o apelo à vida que se esvai, um último desejo que se revela pelo aproveitamento do dia – surgem as marcas sujas da vida, da sordidez, da lama. Diz o poeta, em 1949:

O poeta deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor contente de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e
[as amadas que envelhecem sem maldade.[2]

Parece que os leitores deste nosso século XXI preferem a assepsia dos poetas parnasianos, sua falsa ousadia, a capacidade tola de se comprazer com a emoção fácil das televisões – o que revela um outro dado poético de permanência no universo da escrita brasileira, o apelo romântico, a visão beatífica do paraíso. Por isso buscam esquecer que as meninas da gare – nossas índias, ou seu legado – foram prostituídas e, assim, isoladas pela limpeza que o parnasianismo representou e ainda representa. Daí a necessidade da poesia – e da prosa – suja, em que se mesclam a bunda da miséria e a exploração do universo espantoso da palavra.

Rio, outubro, de 2008

Oswaldo Martins



[1] Candido, Antônio. Educação pela noite. Editora Ática. São Paulo. 1987.
[2] Bandeira, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1993

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Desestudos

2

todo
o mar

as quilhas
o farol das cobras

a ilha apagada

(oswaldo martins - desestudos - doze estudos para marinhas)

4

desver a cidade
é um ato
uma prática

sem olhos
sem sentidos

fundamento errático

sob o vão
do próprio

sovaco

(oswaldo martins - desestudos - Doze estudos para caos e linguagem)

Poemas da Invenção de Orfeu

II

A ilha ninguém a achou
porque todos a sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terras e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

Nem achada nem não vista
nem descrita nem viagem,
há aventuras de partidas
porém nunca acontecidas.

Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indicíos de canibais,
sinais de sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido.

Rosa dos ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
dosmingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?


XVIII

Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sobre as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como ortigas

sugar vieram o esterco fugante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; neste instante,

os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depoisa as beijam como beijam lírios.

(Jorge de Lima - Invenção de Orfeu)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poesia do dia

UNIDADE

Minh’alma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe.

Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com suas palmas os seus mormaços o seus ventos de sôfrega
[mocidade
Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície
O instinto de penetração já despertado
Era como uma seta de fogo
Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.

(Manuel Bandeira)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Poema da lucidez

8

quadros há que a respiração suspendem
certa mão de tinta, certa carícia:
revelada aquela nem a ausência
modelam antes o que antes havia

e não há no quadro. o vento que secara
a pele exausta o cós aberto a calça
no chão largada e essa voz avara
que se não se ouve no quadro alça

seu traço (antes taça). tal silêncio, hèlas,
manuseia-me o antinome e mudo
o quadro vaga torto para sempre

no meu mundo. com vinho, pois, celebre
a taça derramada o rosto o fruto
destas mulheres nuas soltas nas telas.


(oswaldo martins – lucidez do oco)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Ninguém compreenderia um samba naquela hora

1. Tenho andado afastado dos blogs e da escrita. Achei que era só um recesso, ou que estava ocupado com o nascimento de minha filha (ou melhor, com o mundo em que a Clarice acaba de nascer) mas acho que não é nada disso.

Um pouco no embalo do Paulinho, que está no post logo abaixo, hoje eu vim, minha nega.

O fato é que tenho preferido assistir à novela das 8 a escrever poesia. E o que me trouxe aqui? justamente um episódio recente que me deixou muitíssimo abalado.

Recorto da minha revista de fofocas preferida:
Violência
Ator global Jackson Antunes é agredido e acaba no hospital
Publicado em 22.07.2008, às 12h24
O ditado "A vida imita a arte" virou realidade para o ator Jackson Antunes, que interpreta um homem que agride a esposa na novela "A favorita": confudido com seu personagem, Antunes foi agredido na rua, teve sangramento interno e ficou internado durante três dias.
Vítima de trombose na perna esquerda, o ator usava muletas e chegou a cair durante a briga. "Parece uma coisa medieval o que me aconteceu, mas acho que quando a novela provoca esse tipo de reação é porque está dando o recado e denunciando esse tipo de realidade", afirmou.
Fiz um samba sincopado, pra zombar do seu azar.

2. O Paulinho é mesmo um artista. E seu samba é POESIA. Copio uma fala do Elifas Andreato, que define define bem essa coisa - artista. Li no encarte do CD da Teresa Cristina:
Paulo Cesar Batista de Oliveira é um ser humano, um artista cuja vida e obra renovam cotidianamente o significado da palavra humanidade. Sem ele, o mundo seria ainda pior.
A razão poque mando um sorriso e não corro.

3. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. A escola.

Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Um belo samba de Wilson Batista

Meu mundo é hoje
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim

Meu mundo é hoje
Não existe amanhã pra mim
Eu sou assim
Assim morrerei um dia
Não levarei arrependimentos
Nem o peso da hipocrisia

Tenho pena daqueles
Que se agacham até o chão
Enganando a si mesmos
por dinheiro ou posição
Eu nunca tomei parte
Desse enorme batalhão
Pois sei que além de flores
Nada mais vai no caixão

(Wilson Batista)

Há uma bela gravação do Paulinho da Viola.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Sobre Dalton Trevisan

Acabo de ler novo livro de Dalton Trevisan. Continhos galantes. Como já vem sendo comum, o autor curitibano enfrenta os desafios da linguagem com economia. São curtos e mordazes. Não dão ao leitor muitas chances de se compadecerem das personagens. Secos, lembram as misérias da vida. Parecem ser realistas. Entretanto, a linguagem mínima, com que os constrói, busca afirmar-se num ponto além da vida cotidiana. Esclareça-se: um ponto além que desconstrói, não apenas a vida bem-posta dos cotidianos, mas a própria concepção de linguagem com que se está acostumado.

Irônico, o autor parece querer fazer com que o leitor se depare com uma formulação que desafia as máscaras românticas do amor, dando a esses rostos desmascarados o caráter definitivo da solidão em que os homens estão mergulhados. Neste sentido, a percepção cética da aceitação tem caráter duplo. Embora se saiba que o jogo da linguagem foi feito para comunicar, percebe-se que essa comunicação prescinde da linguagem, pois já está inscrita nas condutas sociais que seus personagens encarnam. A linguagem apenas sublinha um desacordo que ao cabo se revela ineficaz, já que se baseia no fingimento do que se afirma. Deve-se ler o Vampiro, pois, com os sinais trocados.

(Oswaldo Martins)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Recomendando Leitura 12

1 – Heranças – Silviano Santiago. Editora Rocco 2008.
2 – Homem lento – J. M. Coetzee. Cia das Letras.
3 – Nada – Carmen Laforet – Alfaguara. 2008
4 – O companheiro de Viagem - Gyulia Krúdy – Cosac & Naif – 2003
5 – Vitória – Joseph Conrad – Francisco Alvim – 1982.

sábado, 20 de setembro de 2008

à maneira de machado

3
à maneira de machado
vê, leitor, esse ponto.
quando, então, supõe-no ponto
não é o ponto que se lê
no ponto

mas o prontuário,
a obscuridade própria
ao ponto


(oswaldo martins)

à maneira de uma fábula

2
à maneira de uma fábula

ali viveriam trancafiados
os casais

ali a morte e seus dentes
podres

a redoma
dos sucessos

ali, bem ali
ao lado

a gesta absurda
a surda altivez

do que é nada

(oswaldo martins)

à maneira de chagal

1
à maneira de chagal

esses nus oceânicos

sobre a cama
dos casais volatizados

descerram as cortinas
de seus quartos

miram como mirou bandeira
a inútil paisagem

o beco

já não amam,
coitados,

apenas almejam
a herança

de seus quadros


(oswaldo martins)

terça-feira, 16 de setembro de 2008

4 poemas de Cesar Cardoso

a melhor distância entre dois pontos
cesar cardoso

para cibele

2.
pisco de pupila de gato acesa no tato
mapa de vôo de besouro
nicho onde se misturam casulo e bicho
o zero e o cem
se encontrando entre o quase e o nem

esse brotar de noz
alvoroço
sem casca e caroço

aquele quando
onde dois se tornam ambos


3.
te amar, o melhor dos rumos
bússola inventando nortes
te habitar, o melhor dos filmes
sensual, centenas, sem cortes,
te viver, o melhor engano
das vidas enganando as mortes


4.
um pouco do meu olhar
deseja ter o prazer
de à noite ver refletir
um tanto do nosso amor
na luz de teu abajur


1.
que tempo acorda o espaço de desejos
reais como canções de realejo?

nuvens inauguram oceanos
mares escalando altiplanos

seus medos mudos modos nos aflitam
suas calmas de telhados nos visitam

ou planetas galáxias universos
ou jogos de palavras, simples versos

a curva desse amor e seus encontros
eis a melhor distância entre dois pontos

Goya

goya
1
o sonho o pintor revela:

gostáramos de bruxas
de vê-las arder fogueira adentro

dos fuzilamentos
do caso dreyfus

de ver flaubert dizer
nos tribunais

e sócrates ser morto

o espetáculo, senhores,
está vivo

(oswaldo martins)

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Dois poemas de Cláudio Correia Leitão

EXÍLIO

Quando tive um velocípede
E rodava pela Rua da Praia
E os bondes de Niterói eram vistos
Da areia ou da baía sobre a murada
A fumaça preta de ônibus
Ainda não fazia tão mal
Os trens e os trilhos eram já escassos
E as barcas apitavam pungentes perdidas
na neblina dos dias de inverno
Eu nada sabia de Babel e Sião nem de Camões
Mas encontrava beleza e refinamento na saudade cotidiana
Se arrastando lenta pela casa e no tom solene,
Trechos de desterro do Velho Testamento lidos voz alta.

(Cláudio Correia Leitão)


ÁGUAS

De Vassouras e Paracambi o mundo
Fontes, Rodeio, primeiro essas
O barulho da água do rio macaco
Marulho de ponte de ferro de trem sobre outros rios
Trilhas de cachoeiras no mato, em Cacaria
Conchegos líquidos e lágrimas
Águas de banhos de chuva e bacia
Água de poço proibido a crianças nos quintais
Água distante travessia e mar
Mas mar é água secundária na memória.


(Cláudio Correia Leitão)

pinturas

4

um anão sentado
no nada

é tão belo como
os nus seduti

de modigliani

(oswaldo martins)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Sob a ótica de Octavio Paz

A visão de mundo que aparece nas últimas obras de Freud revela mais de uma analogia com o pensamento dos trágicos gregos. De certa maneira, trata-se de uma volta a alguma coisa que esteve sempre presente em seu espírito e que alentou e guiou suas primeiras investigações. Édipo, Orestes e Electra reaparecem, mas já não são os pálidos símbolos da família burguesa. Édipo volta a ser o homem que luta contra os fantasmas de sua fatalidade. O nome dessa fatalidade não é, ao menos exclusivamente, Jocasta. Não sabemos seu verdadeiro nome; talvez se chame civilização, história , cultura: algo que alternadamente faz e desfaz o homem. Édipo não é um doente porque sua doença é constitucional e incurável. Nela reside sua humanidade. Viver será conviver com nossa doença, dela ter consciência, transformá-la em conhecimento e ato. Nossos males são imaginários e reais porque a realidade, ela própria, é dupla – presença e ausência, corpo e imagem. A realidade, a vida e a morte, o erotismo, enfim, apresenta-se sempre com uma máscara fantasmagórica. Essa máscara é o nosso verdadeiro rosto. Seus traços são o resumo de nosso destino: não a paz, mas a luta, o abarco dos contrários.

A visão trágica de Freud brilha em muitas de suas páginas. Brilha e desaparece. Depois de entreabrir certos abismos e nos mostrar conflitos insolúveis, ele se retira à prudente reserva do homem de ciência. A ironia recobre a ferida. Estas reticências – feitas tanto de modéstia de sábio como de desdém pelos homens – talvez expliquem as sucessivas deformações e mutilações que sofreu seu pensamento. Muitos de seus herdeiros, especialmente nos Estados Unidos, esquecem sua crítica à civilização e reduzem seu ensinamento a um método de adaptação dos doentes à vida social. Aceitam o terapeuta, mas ignoram o filósofo e o poeta. As oscilações de seu pensamento explicam, mas não justificam essas simplificações. Contra esse esquecimento – mais que um esquecimento, uma mutilação – insurgiram-se alguns psicólogos, como Erich Fromm, que recentemente tentou construir uma ponte entre a psicanálise e o socialismo. Ao restringir dentro da psicanálise a crítica à civilização, muitos discípulos de Freud dão como certo que as instituições que nos regem são ‘saudáveis’, ou seja, representam a normalidade à qual se deve ajustar o indivíduo. A psicanálise se transforma de método de libertação em instrumento de hipócrita opressão. Freud descrevera os valores como quimeras; agora as ilusões se tornam reais e os desejos, ilusões. Com muita razão Freud observa que adaptar o paciente a uma civilização doente e podre até os ossos não é curá-lo, mas agravar seus males, convertê-lo num incurável.

(Octavio Paz)

domingo, 7 de setembro de 2008

Sobre os gregos

1

O único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição: enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios, estavam excluídos. Tratava-se de interpretações e reinterpretações dramáticas de enredos dados. Mas não é esta a única particularidade do teatro grego, em comparação com o nosso: a diferença estilística não é menos importante. O teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os discursos extensos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam insuportáveis para o espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e viver a ação. O grego, ao que parece, freqüentava o teatro para se convencer da justeza de uma causa, como se estivesse assistindo à audiência do tribunal ou à sessão da Assembléia. E os requintes de retórica, superiores em muito aos pobres recursos da eloqüência moderna, não bastaram para esse fim: acrescentaram-se, por isso, aos argumentos do raciocínio as emoções da poesia lírica, acompanhada, como sempre, de música. A tragédia grega era instituição do Estado democrático, e a participação nela um direito e um dever constitucionais. Assim, a tragédia grega era uma discussão parlamentar na qual se debatia, lançando mão de todos os recursos para convencer o público, um mito da religião do Estado. Considerando-se isto, as concorrências dos poetas, que apresentaram as peças, perdem o caráter de competição esportiva: a vitória não cabia ao melhor poeta ou à melhor poesia dramática, mas à peça que impressionava mais profundamente; quer dizer: à peça na qual o mito estava reinterpretado de tal maneira que o público se convencia dessa interpretação e – podemos acrescentar – por isso o estado a aceitava. Tratava-se de um acontecimento político, que ocorria uma só vez. O teatro grego não conheceu representações em série. Com a representação solene, a causa estava julgada, a lei votada. O verdadeiro fim do teatro grego – assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito.
(Otto Maria Carpeaux – História da Literatura Ocidental Vol. 1)
2
Sob o olhar do cidadão

A entrada do coro, em Antígona, se dá num clima de intensa alegria. Exultam os cidadãos com a vitória sobre Argos. Seu primeiro canto é dirigido ao Sol, à luz que brilha com a fuga da armada inimiga: “Ó sol mais belo que jamais surgiu sobre Tebas das Sete Portas, enfim nos ilumina, belo olhar de um dia dourado”. Do lado de Tebas, o sol, a luz. E nesse canto, o elogio a Creonte também vitorioso.
Sua segunda intervenção se dá depois da descoberta de que a proibição fora violada. É lançado então um canto de louvor ao homem: “De tantas coisas maravilhosas, a grande maravilha é o homem.” Dentre os elogios, louva a sua capacidade de aprender a linguagem, o pensamento e os costumes sem mestres”
“E a linguagem e o pensamento ágil e as leis e os costumes ele aprendeu tudo sem mestre.” Ao invés de lamentar a desobediência às leis de Creonte, o coro canta um louvor ao que o homem aprende sem mestre. Não só pensar, usar a linguagem ou agir bem, mas também a capacidade de lançar suas próprias leis. O coro lança como contornos próprios às leis não os da mãos do tirano, mas os do grupo dos cidadãos. Linguagem, pensamento e leis são louvados como aquisições pessoais sem mestres da verdade. No elogia ao homem, uma crítica a esses mestres.
Em suma: ao mestre considerado desnecessário, há a ameaça do desterro. Já por essas primeira intervenções do coro se pode ver que não há grandes simpatias para com a figura do mestre. Se o primeiro canto do coro é de vitória, é pela polis que se regozija. Já o segundo, dá glórias ao homem comum e lança uma ameaça ao tirano. Sob o olhar do coro de cidadãos não é nada simpática a figura daquele que procura monopolizar a linguagem e o poder.
(Flora Sussekind)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

escapada

armou tal confusão
o fulano
que me botou pra correr
se eu quisesse ficar
seria nos moldes dele
nos braços dele
na pele dele
despreguei sem jeito
as fotos da parede
deixei os furos
dos alfinetes
vodu
vou amaldiçoar
até o fim
esse amor
essa carne
esses pés
tudo tão rápido,
e tão rápido
vou me despir
para os outros
que nem nos sonhos
ele vai poder
me perdoar

(Lúcia Leão)

Os amigos Elesbão e Rose Clair no Paisandu


primeira careca no canto direito inferior da foto da primeira página do Segundo Caderno de O Globo( 02/09/08) é minha. Sou eu conversando com a Rose que enciontrei com a Maria Lúcia nesta suposta última sessão de cinema no Paissandu.
A Rose (Rose Clair/Horácio) acaba de lançar um livro sobre cineclubismo, merece estar na foto. Aliás, é por causa dela que se sabe ser eu. Pô, mas eu merecia foto melhor. Afinal desde os anos sesseta frequentei o Paissandu. Vi a estréia, lá, de Trinta anos esta noite- o filme desta última sessão. Há alguns anos revi este filme lá mesmo. E neste domingo...

abraqos!

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

dois poemas para goya

para los sueños de goya
1

o traço

dos monstros
ataca durante

toda a madrugada

os sonhos
como o zumbir das moscas

são asas que volteiam
e dilaceram

a eficiência crua
das palavras



2

a moça tem os olhos vazados
a carne da moça
se putrefaz

goya não pintava aquilo que os reis mandavam

antes
submeter os olhos de quem seus quadros
tenebrava

à tortura
trágica da consciência

(oswaldo martins)

Antonio Machado

Y podrás conocerte recordando
del pasado soñar los turbios lienzos,
en este día triste en que caminas
con los ojos abiertos.

De toda la memoria, solo vale
el don preclaro de evocar los sueños.

Antonio Machado (1875-1939)

9

quando um dia ler jakobson,
ou seu lamento
candente

por maiakovski
por khlébnicov

será tarde.

a vida, rubor
das noites,

ainda mais órfã
talvez como um bebê idiota

esquecida das esquinas
de ternura

anunciará o fim
as desoras

(oswaldo martins)

sábado, 23 de agosto de 2008

good heart

I don’t want to tell you about
my desire
but to empty it
out
like a man does
when he leaves
sometimes
it is my kindness that
prevents me from giving all
for what I love
and what I know
would be too much
you wouldn’t survive
losing me
and I wouldn’t
even try.

(Lúcia Leão)

nun years

in the morning of the first day
the flowers were ready
the prayers said
the song not yet learned
the missing choir girl
came running
tattoos everywhere
on the shoulder a bird
her last name
she explained
it was blue and it was fading away
as my youth will, she smiled
I thought
god was there with us
the incense not yet finished
I took in my hands
the music sheet
gave it one more look
and decided
this was
my last assignment
because life was sacred
I didn’t need
to die.

(Lúcia Leão)

lapa

lapa foi tema e título de um livro (inédito) que escrevi por volta de 1984. passaram-se já 24 anos. gosto do livrinho. vira e mexe topo com uma expressão dele batucando em minha cabeça, curioso é que desde este livro formulei o que queria da poesia. a forma que teriam os livros, a interligação das partes. escrevi-o quando a lapa ainda não era esse reboliço de classe média e nédios freqüentadores, engordados pela burrice do consumo. era outra a lapa, talvez não tão gloriosa como a dos malandros de décadas passadas, nem, sem dúvida, a lapa portentosa de Manuel Bandeira. era uma lapa de prostitutas e travestis, sem o glamour que hoje têm, passatempo de turistas. sabia dos pontos em que elas e eles se moviam, meio à sombra – da exuberância dos arcos e início da Mem de Sá e Riachuelo até a decadência das putas velhas que circulavam em torno da Cruz Vermelha. não os freqüentava, é certo, mas como ia, todas as quarta à noite, do Humaitá, onde estudava e lia o Augusto dos Anjos, como os amigos Ronald e Álvaro, até o Andaraí, onde morava até acertar a vida – arranjar trabalho – e poder trazer para o Rio – cidade de minha escolha e paixão – meu filho recém-nascido e Wal, que haviam ficado em Barbacena, passei a conhecer de observação aquela geografia de espantos, decadente e, sobretudo, doentia. mal percebia que a doença não estava na decadência, mas na planificação massificada do divertimento que se impõe como um dever de vazios. escrevi o livro, todo ele, em uma máquina de telex, contando sílaba por sílaba para que tomasse a forma que eu desejava. tomei de empréstimo a Genet – do Diário de um ladrão – uma palavras para a epígrafe e pedi a Dora Ribeiro que me escrevesse algumas palavras. desenhei uma mulher de costas sobre a qual o Eugênio comentava ser – o desenho – una bazófia e com aquele seu jeito de confirmar que até hoje me causa saudade. sim, sim, nem duvides! fui aos poucos acrescentando dedicatórias no livro, meus amigos, minhas amigas, outros leitores eventuais. creio ser um livro que não se publique, que se guarde até um dia qualquer como memória de como se construiu a vida

(oswaldo martins)

terça-feira, 19 de agosto de 2008

ROMÂNTICOS DE CUBA
Cesar Cardoso

Esses três poemas surgem de um bate-papo com dois outros, do romantismo brasileiro. “meus oito ½” conversa com o lirismo de “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu. Recortando o vocabulário do poema original, tenta uma montagem cinematográfica, felliniana, dando um viés erotizado às lembranças da infância. “i-juca-pirado” é um olhar oswaldiano, um poema-minuto-piada sobre o épico I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. E ainda sobre esse mesmo texto, “canto x” acrescenta mais um canto e uma nova voz narrativa – feminina – à narração masculina e guerreira de Dias.

meus oito ½

o hino ingênuo
o manto azulado
a sombra debaixo
o perfume dos pés

colher tirar
que braços que sonhos
beiras ligeiras
carícias bordadas

respira correndo
atrás azuis
doces delícias
descalços nus

ave marias!
não trazem mais


i juca pirado

euforia do padre
no banheiro da escola
- meninos eu vi!


canto x


há menos verdores
na noite em que imploro
:meninos, perdi

o que faz um bravo? difere de escravo?
a morte é que os une?
pra que tanto, meu pranto?
também sou coragem
te perco meu filho e zelo por ti


história e memória
na luta no luto
meu canto de vida
eu que não sou brava
à noite me lava

:meninos, perdi!

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Pai do Tempo

Talvez só uma foto em que estou no seu colo.
Fotos com muitos: avô, tio, mãe, tia. E nunca mais fotos.
Mais tarde me vejo dando banho nele, esfregando as suas costas com sabonete e bucha.

Em algum momento tinha acontecido uma virada no olhar. Na infância meu pai elogiara um menino que vira apenas uma vez, e vaticinou que ele seria um grande homem - quanta inveja pelo elogio que eu nunca tinha recebido. A guinada veio quando comprei uma bela casa e ele se admirou enfim da façanha, passou a me ouvir.

No leito de morte, quando voltou a si, me olhou e me reconheceu falando o meu nome. Ali tive ainda esperança de que poderia se recuperar do estado grave em que se encontrava, mas enfim.

Agora sigo sem essa conversa. Invento irmãos, mesmo que na dureza do caminho. E trago comigo: aquele lugar.

(Luiz Fernando Medeiros de Carvalho)

tarde

deitei-me com ele
sem sono
mas bocejei para atrair
o resto de ar
depois seria complicado
poder dizer sem falar
o corpo explica demais
e eu queria o vazio
antes de mais
nada.


(Lúcia Leão)

domingo, 17 de agosto de 2008

EPIGRAMAS

Um

Mulheres se lançam usando
seu não, não que, enfim, se degrada
num sim, sim, porém, dito quando
ninguém lhes pergunta mais nada.


Dois

Uma mulher se deita qualquer dia
Com quem nem bêbedo a desposaria
E, então, desposa sóbria algum coitado
Com quem nunca teria se deitado.

(Nelson Ascher, Parte Alguma)


*

Um

Estendida sobre o leito, Dória, a de róseas nádegas,
me fez imortal na sua carne em flor.
Tendo-me preso entre as pernas magníficas, completou
com firmeza o longo percurso de Chipre,
A olhar-me com olhos langorosos: eles tremiam
e cintilavam como folhas ao vento,
até que, vertida a branca seiva de nós dois, os membros
de Dóris por sua vez enlanguesceram.

(Dioscúrides)


Dois

Com a bela Hermione folgava eu certa vez; trazia
ela, ó Páfia, um cinto de variadas flores
onde estava escrito em letras de ouro: “Ama-me toda, mas
não te atormentes se a outro eu pertencer”.

(Asclepíades)

Os dois primeiros poemas são retirados do livro de Nelson Ascher, Parte Alguma; os dois últimos do livro Poemas da Antologia Grega ou Palatina, traduzidos por José Paulo Paes.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Descrições 2

2

um rei justo:

sem palavras
ou governo

um rei
que não se quisesse rei

um desrei

sem manto
como os cegos


*

desrei:

nenhum aluvião de ternura
seca voz

ausente como um deus

que aos homens deixasse
mercê do pecado

a expectação
o abismo

da lei

(oswaldo martins)

Machadianas

1...donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã.

Memórias póstumas de Brás Cubas,cap.lxxvi

2 ...mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit.

Memórias póstumas de Brás Cubas, cap xxiii

3 Há coisas que só se apendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo do que artificialmente tarde.

Dom Casmurro, cap. xv

4...nâo creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim ... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.

Dom Casmurro, cap. Xxii

5 E concluiu que era tudo a expressão daquele sentimento delicado e nobre- prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime.

Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. clvi.

6 Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma coisa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem, me invejassem.

Dom Casmurro, cap. cii.

7 ...veio à luz um par de varões tão iguais, que antes pareciam a sombra um do outro, se não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.

Esaú e Jacó, cap. viii.

8 Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?

Memórias póstumas de Brás Cubas. Cap. LXII.

9 O rumor das vozes e dos veículos acordou um mendigo que dormia nos degraus da igreja. O pobre-diabo sentou-se, viu o que era, depois, tornou a deitar-se, mas acordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no céu. O céu fitava-o também, impassível como ele, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um céu claro, estrelado, sossegado, olímpico, tal qual presidiu às bodas de Jacó e ao suicídio de Lucrécia. Olhavam-se numa espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranqüilas, sem arrogância nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu:
-Afinal, não me hás de cair em cima.
E o céu:
-Nem tu me hás de escalar.

Quincas Borba, cap.xlvi.

10 Olhos de ressaca? (...) Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca (...) a onda que saía delas [as pupilas] vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me."
Dom Casmurro, cap.xxxii

11 Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
--Não, senhor, sou coxa de nascença.
Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são, vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados; mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos.
...................................................................................................................

Agora é que não são capazes de adivinhar. . . achei a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.
Esta, ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap.xxxii e clviii

12... donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, - um triste molambo de mulher, - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
-É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
-Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias.

Quincas Borba, cap. cxvii

terça-feira, 12 de agosto de 2008

descrições

1

sensíveis, teus olhos

disseram:

nome
das piruetas verbais

um asteróide que se choca
e acicata

as nebulosas

*

nebulosas, as palavras

disseram-me:

ruído do cosmo
a bússola zen

tal

para aquém
do que os olhos cegam

(oswaldo martins)

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Remédio contra a morte, de dois grandes compositores

RECREIO DAS MENINAS

Eu fui de bengala
tossindo, com febre,
lá no Renascença,
porque em toda vida
o samba foi cura
pra minha doença.

Sentei no meu canto,
uma voz perguntou
“o que vai querer”.
Perdi a cabeça
e falei pra menina
“Eu queria você”.

Um riso de aurora
colheu meu ocaso
e a pressão subiu,
peguei meu remédio
mas as mãos tremiam
e o vidro caiu


Chutei a caixinha
pedi caipirinha
pernil e café
receita infalível
pro meu coração
é um corpo moreno
de mulher

Eu vou com ela
ao Capela, ao Siri
e traço moqueca,
carré, javali.
Digo sempre,
bebendo com o Jorge,
foi no renascença
que eu renasci

Aos que me gozam no bar
dizendo que eu sou
o recreio das meninas,
respondo
“andorinhas fazem ninho
nas ruínas”.

(Moacyr Luz – Aldir Blanc)


O texto da música acima foi gravada pela dupla - Moacyr Luz e Aldir Blanc - em disco, no ano de 2005.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Eco - Performances poéticas


ECO - Performances Poéticas em sua III edição.

No elenco:

Alexandre Graça Faria # Laura Assis # Arnaldo Delgado Sobrinho
Rogério Batalha # Oswaldo Martins

Dia 07 de Agosto
20 horas
Espaço Mezcla
(Rua Benjamin Constant, 720 - Centro - Juiz de Fora)

Entrada Franca

quinta-feira, 31 de julho de 2008

UMA HISTÓRIA DO SAMBA



Monarco. O compositor da Portela em 2001 gravou esse álbum que é imprescindível para todo apreciador do bom samba. Produzido por Katsunori Tanaka e co-produzido por Henrique Cazes, o disco de Monarco, que se intitula Uma história do samba, é preciso em sua concepção e na economia com que o compositor passa a limpo a história do samba. A opção por uma cozinha leve, por instrumentos de sopro bem equacionados e a valorização da voz – essa voz monárquica – dividindo as frases com precisão metódica traz ao ouvinte acostumado ao som do samba e de suas raízes um prazer inesgotável e para os ouvintes de primeira viagem.

Note-se na terceira faixa em que interpreta Sinhô a beleza da passagem – didática – para o samba de Bide. Do maxixe ao samba como o compositor sublinha. Divide, pois. o disco em duas partes iniciais. Os ritmos do passado marcam as origens, depois os sambas evoluem ao longo das outras dez faixas, com as nuanças próprias do ritmo. Uma beleza!


(oswaldo martins)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Poema do dia

As palavras são coisas sozinhas. Arrancados do
mundo. Seria possível um mundo sem palavras?
A sua boca pede um murmúrio de vento. Ele não
tem som. Ele provoca o barulho. Ele mexe com
você. As palavras nascem do movimento de suas
cordas vocais. Elas vibram e você mexe. As cordas
se desgastam. As palavras roem as cordas.
(Masé Lemos)

segunda-feira, 28 de julho de 2008


a morte beija
os dentes

por eles sangra
a puberdade

a ausência de peitos
a nudez

da moça

que se me rasgam
os olhos

de vê-la

(oswaldo martins)

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Cesta Frásica 1

1. ...escondo-me atrás da porta, para que a Realidade, quando entra não me veja.
Fernando Pessoa

2.... muita vezes o defeito é uma circunstância de beleza.
Mario de Andrade

3. Não fui alguém. Minha alma estava estreita...
Fernando Pessoa

4. Não é só a morte que nivela ; a loucura , o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos.
Lima Barreto

5. Quem não pode fazer nada esculhamba. Esculhamba e se estrepa.
Rogério Sganzerla

6. Não vai sobrar nada pra quem tem sapatos.
Rogério Sganzerla

7. O fim estava próximo para quem tinha todos os dentes...
Rubem Fonseca

8.Não havia pecado, mas já havia justiça...
Cláudio Leitão

9. A história que você conta não é a mesma que a pessoa ouve.
Bergman citado por Carrière.

10. O concerto que vocês acabaram de ouvir é de Wolfgang Amadeus Mozart.
E o silêncio que veio depois também é de Mozart.
Sacha Guitry, citado por Carrière

11. Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito de sabedoria antiga.
Fernando Pessoa

12. Uma coisa é acariciar o teu cabelo, e outra é encontrá-lo na sopa.
Julio Cortázar

13. Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me
Cervantes

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Olinda e Recife

Inverno é o tempo das águas. Julho. Fez frio, 17º na madrugada das Graças sobre o Capibaribe. Fez sol também. As ondas de Olinda rebelam-se às pedras a travar-lhes a reconquista de milhas ocupadas de seu mar pela cidade.
Nasci no mês de julho. Chegar ao Recife sempre aumenta o gosto por frutas tropicais, sorvetes e sucos. Bom andar calado no meio da gente pelas ruas da Imperatriz, do Hospício, da Aurora, como um fingidor que deveras seja.
Fora tapiocas e demais saberes sensórios, o passado sobrepõe-se a espaços do Rio de Janeiro e do Recife num lugar sobre-real. Melodias de Edu Lobo provêm desse lugar em quinta diminuta.
Vias sujas, Guararapes, Dantas Barreto ou Conde da Boa Vista, e o Recife antigo despojado dos habitantes ativam frevos do velho Raul Moraes. Evocação do bar Savoy em versos de Carlos Pena Filho - São trinta copos de chope (...) Trezentos sonhos frustrados.
Não há capital grande no país, sem tiroteio contra inocentes. Olinda-Recife-Joboatão-Camaragibe-Carpina confirma(m) a prática. Elegias de Mauro Mota sobem do cemitério. O acidente de Chico Science fala dos estados de aceleração d'alma.
Mas de outra ordem mesmo é o trato pessoal direto. Bruto, diriam finórios. Retruca-se na lata. Chovendo ou estiado, quente ou fresco, na turba ou só, antes que eu entendesse, veio daí o que sou.

CLÁUDIO CORREIA LEITÃO

terça-feira, 15 de julho de 2008

Dois poemas de Cesar Cardoso

coisa diacho tralha

1.
sobrevivente da calamidade
amor não tem cara nem metade

amor coisa diacho tralha
não divide nem migalha

amor silêncio da loucura
todo dia contigo amanhece

amor inferno que você carrega
e desconhece

2.

joana rasga as fotos
do amor já torto e roto

waldemar toca a beber
pra matar a embriaguez

martins arranha os discos
e por fim o prego no ouvido

inês dá três tiros na aorta
três seu número da sorte

soraia faz juras e pula
será do amor essa altura?

as pazes se desfazem
a cara cospe a metade

resta sem ganir o cão
que ainda fareja as mãos

onde já não há pessoa
só o cachorro perdoa

(Cesar Cardoso)

segunda-feira, 14 de julho de 2008

SOBRE ANGÚSTIA DE GRACILIANO RAMOS

“Levantei-me a cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios”.

“Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa”.

As duas passagens acima, retiradas do livro Angústia, de Graciliano Ramos, servirão de mote para a questão que se apresenta. A primeira está no início do romance, é a porta de entrada a partir de onde o leitor situará todo o processo da narrativa. O que será descrito são acontecimentos que antecedem os trinta dias demarcados como o prazo do restabelecimento precário do narrador. A lembrança que revelará tais acontecimentos, por seu turno, será avivada a partir da dessemelhança entre o narrador redesperto e a personagem da memória imersa na inconsciência dos fatos. Assim, Graciliano entrega ao leitor o problema. Um mesmo – o narrador é e não se vê como é – e um outro – a personagem que é, ao mesmo tempo, o narrador e seu outro. O processo de escavação da memória surge, portanto, definida como estranhamento, diferença. Como hiato, brecha, resto.
O narrador memorialista, que se lê a partir do sucedido – o assassinato que busca compreender – trai uma dissociação entre sua vida e ele mesmo e corrompe com esta formulação o princípio básico da memória: a lembrança que distingue e faz do texto memorialista um apanágio da excentricidade. Dupla inserção, portanto. De um lado a perquirição da construção da memória; por outro, a formulação crítica do próprio discurso memorialista. Em outras palavras: de um lado a pesquisa sobre os fundamentos da constituição psicológica da memória; de outro, sua inserção nas formulações do próprio gênero memorialista. Em diversas passagens de Angústia, o leitor se verá a frente do discurso que se liga à formulação da escrita.
Luis da Silva vive de pequenos expedientes: escreve sonetos e artigos encomendados, para a satisfação dos pares sociais – cobra por isso e como resto destes escritos se vê escrevendo romance, artigo, conto de monta. Aqui e ali se justifica da necessidade, afirmando ser possível essa escrita mesquinha por tudo ser ilusão. No entanto, a própria tessitura da narrativa irá desmentir o ponto de vista do personagem, pois a formulação da memória se dá contra o auto-elogio ou a excentricidade do personagem que julga ser necessário pôr-se em papel. Ou seja, por que ficcional a narrativa da memória em Graciliano Ramos não se dá como memória, apenas a arremeda. Seu ponto de chegada é outro. Para que se possa aclarar tal ponto, deve-se vir à outra inserção, a constituição psicológica da memória.
Leia-se a passagem com que se iniciou a análise: “Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa”. A formulação das recordações se faz a partir de estranhos hiatos, de coisas insignificantes. Os hiatos apontariam para brechas abertas no discurso da consciência. Lembra-se não o essencial, por não querer afirmar sua força de fato, de acontecimento.
É claro que toda narrativa é construída para que se possa compreender a totalidade da ação, para que se possam compreender os motivos que levam a personagem ao assassinato. Mas, se o leitor cuidadoso perceber sua articulação descobrirá que o assassinato, embora acontecimento central da narrativa, não é o fato decisivo que a constitui. A constituição do significado narrativo está nas pequenas brechas abertas pelo discurso do narrador, isto é, mais importante que a ação é a concentração dos ouvidos do narrador colados, por exemplo, à parede do banheiro contíguo a casa, no qual Marina se banha, escova os dentes, mija. Banhar-se, escovar os dentes, mijar são índice do apagamento do indivíduo, Luis da Silva, que se apaga frente a uma vicariedade. Ou como as pernas frias de Berta, no escuro cinema, ou as condenações e admoestações contrárias a toda forma de sexualidade.
A articulação feita pelo discurso do narrador da sexualidade com o poder do antepassado, esfumado pela incapacidade do pai e da personagem, permite que se afirme ser Angústia menos uma lição sobre a individualidade e mais um discurso sobre as relações entre sexualidade e poder. As brechas do discurso, inscritas no corpo da individualidade de Luis da Silva, se articulam no discurso do narrador com a reflexão sobre a constituição do poder enquanto frustração que afeta a sexualidade.


Ao articular as duas inserções poder-se-ia aventar a hipótese que norteia essas páginas: à esterilidade da personagem corresponderia igual esterilidade na formulação da linguagem literária atacada por Graciliano Ramos.
Em virtude da escrita vista como afirmação do indivíduo, como afirmação da diferença social, a narrativa que se narra, ao articular a esterilidade da personagem, narra a própria esterilidade de uma escrita permeada de excentricidades e lugares comuns, entranhadas na tradição literária brasileira.


(Oswaldo Martins)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Pedro Páramo

Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo. Mi madre me lo dijo. Y yo le prometí que vendría a verlo en cuanto ella muriera. Le apreté sus manos en señal e que lo haría, pues ella estaba por morirsey yo en un plan de prometerlo todo. "No dejes de ir a visitarlo - me recomendó -. Se llama de este modo y de este otro. Estoy segura de que le dará gusto conocerte." Entonces no pude hacer otra cosa sino decirle que así lo haría, y de tanto decírselo se lo seguí diciendo aun después de que a mis manos les costó trabajo zafarse de suas manos muertas.

(Juan Rulfo - Pedro Páramo)

Metaquímica sonhadora (citações fora do contexto)

O brasileiro, tipo abstrato que se procura, (...) só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo. (...) Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tractos do território; (...), vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.
Os Sertões, Euclides da Cunha 1902.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

OFICINA TEXTOTERRITORIO


No ano de centenário da morte de Machado de Assis,o TextoTerritório convida contistas de plantão a recriar a obra do Bruxo.Envie seu conto até 31/08/2008 para contato@textoterritorio.pro.brOs textos selecionados serão publicados numa edição eletrônica do TextoTerritório.Confira as normas de direitos autorais do Creative Commons, adotadas pelo TextoTerritório

http://www.textoterritorio.blogspot.com/

sábado, 5 de julho de 2008

Da amizade 1

para ronald iskin


A celebração dos cem anos de morte de Machado de Assis tem dado lugar a uma série estapafúrdia de episódios. Publicações estranhas e desnecessárias. Falatórios. Pequenos fuxicos. Arrematadas besteiras. Citações sobre o óbvio. Concursos. Do que vi publicado na imprensa, apenas me interessou o texto em que Silviano Santiago analisa o Instinto de Nacionalidade. Espanta-me, assusta-me e me entristece a ausência de referências a uma das mais lúcidas análises da obra machadiana, feita por Luiz Costa Lima no texto “Sob a face de um Bruxo”, publicado em 1981. Sorrio, entretanto, com a capacidade destes dois mestres.

Em conversa com meu amigo Ronald, relembrávamos o belo texto. A releitura deste texto fundamental fez-me lembrar dos belos cursos oferecidos pela Letras da PUC-RJ, entre 1979 e 1984. O privilégio de ter sido aluno de Luiz, de Silviano, do Jorge Fernandes foi meu, de Dora, de Ronald e de tantos outros que aprendemos a partir da lucidez, da ironia com que conduziam suas aulas e críticas.

O curso de criação literária, ministrado por Silviano, nos aparelhou para que crescêssemos e amadurecêssemos a vontade de escrita. Foi neste curso que tivemos a primeira medida da escrita profissional e cumprimos os ritos da amizade que nos coloca em um lugar especial de referências pessoais. Ponhamos. Ou o curso em que Luiz Costa Lima nos fez ler, perceber e medir a seriedade com que João Cabral criava a poesia, dando-nos a medida do possível, a certeza de que valia a pena fazer o que fazíamos. Ou o curso sobre Machado, no qual esquadrinhamos – a partir do Sob a face de um bruxo – as possibilidades de outra constituição de sentido para a literatura.

Tudo isso misturado ao belo grupo de estudo sobre teoria de literatura de que fazíamos parte Dora, Ronald, Rachel, Márcia, Liana e eu. Parafraseando Mário, a partir de Pedro Nava. Saudade.

(oswaldo martins)

Poema do dia

CANÇÃO NOTURNA

(TRAKL)

O hálito do imóvel. Um vulto rígido
De animal no azul, sua santidade.
Poderoso é o silêncio da pedra.

A máscara da ave noturna. Um triplo
Som morre num só. Elai! O teu vulto
Dobra-se mudo sobre águas azuis.

Espelhos silenciosos da verdade!
Na fronte de ébano do solitário
Surge o reflexo de anjos decaídos.

Aspectos da literatura de 30

Ao ser convidado para participar desta mesa, cujo tema é o itinerário de um retirante: a literatura nordestina dos anos 30, decidi por traçar um pequeno desvio. Sabendo que a literatura de trinta, especialmente a nordestina, se preocupa em criar condições para que se pudesse melhor entender a história do país e, desta história, a constituição de sua economia, parece-me lógico nela perceber uma imediaticidade realista. Daí a necessidade de questionar brevemente o significado e os conteúdos de uma obra realista.

Para tal, cito duas passagens retiradas de um texto de Luiz Costa Lima, o segundo capítulo do livro A metamorfose do silêncio. Vamos, então, à primeira:

“Quando as pessoas não se querem entender, se perguntam sobre o significado das palavras. Concebida usualmente como sistema de comunicação, a linguagem é antes veículo de enganos. Ao conjunto dos mesmos chamamos senso comum. Nem por isso, é verdade, ela deixa de comunicar: também o engano é comunicativo, mais ainda se conta com o apoio da opinião generalizada”. (Costa Lima, Luiz. Realismo e Literatura in Metamorfose do Silêncio. Livraria Eldorado. RJ. 1974)

A segunda passagem diz o seguinte:

“... o realismo é um destes emplastros por onde fluem tranqüilos analistas, críticos e historiadores da literatura. Socorremo-nos, no máximo, de adjetivos e compomos expressões do tipo alto/baixo realismo, realismo fantástico, crítico, alegórico ou cósmico. As expressões cunhadas então parecem driblar o vazio, como se o adjetivo pudesse cobrir o equívoco do nome.” (Idem)

Das duas passagens selecionadas, alguns aspectos interessam-me. A consideração de que a linguagem do senso comum não permite uma reflexão sobre a própria linguagem, pois tal reflexão a tornaria incapaz de cumprir sua eficácia comunicativa, corresponde o seu contrário: a linguagem que não se aplica ao cotidiano, por não se referir a uma troca efetiva com algum interlocutor, abre um determinado espaço no qual sua função específica deve cumprir-se. O que cumpre tal linguagem, deslocada de seu espaço originário, é necessariamente a reflexão. Provocar, pois, a reflexão seria sua tarefa. Quanto mais a obra se afasta do desejo comunicativo mais a linguagem forja brechas para a necessidade de reconfigurar o mundo, para a necessidade de repensar o mundo e o que sobre ele, via comunicação, deu lugar às certezas não matizáveis do senso comum.

A esta linguagem pertencem não só a linguagem ficcional como a linguagem da sociologia, da historiografia, da ciência. Todas elas não se apresentam a partir da necessidade comunicativa. A historiografia, a sociologia, enfim, o saber produzido pelo mundo, depende do domínio de um repertório significativo sobre o qual se possa debruçar e apreender como sentido. Todas, em menor ou maior grau, são ficções.

Como ficções, entretanto, têm caráter diverso e se separam umas das outras por diversas necessidades, e muito embora todas tenham a preocupação de criar determinados modelos interpretativos sobre o mundo, assim o fazem para esconder a fraude do ficcional, isto é, para apagar o estatuto da linguagem deslocada do senso comum. Delas a linguagem literária se desloca, pois o seu próprio estatuto é assumir-se enquanto fraude. O pacto que leitor e obra se fazem é necessariamente presidido por esta fraude.

O conceito realismo, ao procurar esconder esta fraude, dá à obra ficcional uma característica que apaga o percurso de sua própria constituição, por isso o cair no vazio, o transformar a literatura em documento, isto é, o transformar a literatura no que ela não é.

A partir desta reflexão, podemos verificar que tanto algumas obras da literatura de trinta quanto os que sobre elas se debruçaram incorrem num engano. O de tomar a obra como espelho, como apagamento da intermediação ficcional, ao propor que – por exemplo – no ciclo da cana de açúcar, escrito por Zé Lins do Rego, veja-se a caracterização do país, de sua cordialidade, de sua identidade como nação. Este discurso não nasce de dentro da reflexão literária, mas da obra de Gilberto Freyre, isto é, é um reflexo, uma reduplicação das considerações do sociólogo. Sua recepção, por outro lado, acentua esta reduplicação como qualidade e assim a propõe como sistema.

Linha auxiliar dos vários discursos que sustentam a identidade da nação – sob a égide da literatura de trinta foi o discurso sociológico e econômico que comandaram a festa – a literatura brasileira, ao longo do tempo, vai estar marcada por esta necessidade de validação, pois, pouco afeitos à indagação da linguagem, nos contentamos em ter a literatura como auxiliar que dissemina e valida os outros saberes.


(oswaldo martins)