quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

GOLPE

Poder foi o de Adão
que deu nome
às coisas

(Cláudio Correia Leitão)

Poema do dia

Eros Cruel

O que
Espreita nas trevas
Fascínio difícil
Judith contra Holofernes
A cabeça
Semicerrados
Olhos os
Cabelos lábios
Semi-abertos
Breve o busto
Lúbrica
Híbris êxtase
Da morte crua.

(Sebastião Uchoa Leite)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

CRAVO E FERRADURA

Primeiro foi um som leve
de peneira peneirando
o mar de idéias de um louco,
a água dentro do coco.

Foi crescendo entre palmeiras
e tambores batucando
um balbucio, um rugido
um som de tragédia e circo,
som de linha de pesca,
som de torno e maçarico.

Veio um som de escavadeira,
bate-estaca, britadeira,
um som/ que machuca e lanha,
som de caco, som de tralha,
era um som de mutilados
quebrando gesso e muleta,
um som de festa e batalha.

Ah, era um som que me orgulhava,
som de ralé e gentalha,
era o som dos prisioneiros,
som dos exus catimbeiros,
ai, era o som da canalha:
trovão, forja, baticum,
som de cravo e ferradura
Dez mil cavalos de Ogum!

Esse é o som da minha terra:
som de andaime despencando,
de encosta desmoronando,
de rios violentando
as margens do meu limite.
Samba, samba, samba,
pulsas em tudo que existe,
vazas se meu sangue escorre,
nasces de tudo o que morre.

(Cristóvão Bastos - Aldir Blanc)

A música de Cristóvão Bastos e a letra de Aldir Blanc são como uma arqueologia do samba. Uma maravilha.

O mundo

quero você
longe
longe
do que eu sempre quis

o mar onde acaba
a ponte

uma espera de algum lugar
sem raiz


(Lúcia Leão)

Le Balcon

Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses,
Ô toi, tous mes plaisirs! ô toi, tous me devoirs!
Tu te rappelleras la beauté des caresses,
La douceur du foyer et le charme des soirs,
Mère des souvenirs, maîtresse des maîtresses!

Les soirs illuminés par l'ardeur du charbon,
Et les soirs au balcon, voilés de vapeurs roses.
Que ton sein m'était doux! que ton coeur m'était bon!
Nous avons dit souvent d'impérissables choses
Les soirs illuminés par l'ardeur du charbon.

Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées!
Que l'espace est profond! que le coeur est puissant!
En me pechant vers toi, reine des adorées,
Je croyais respirer le parfum de ton sang.
Que les soleils sont beaux dans les chaudes soirées!

Charles Baudelaire, in Les Fleurs du Mal, 1861

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

sob

3

pastoras
sem flautins

andam à roda
de si

bebem vinhos outros
ácidos que bocas

fazem desaguar
litúrgicas

sob
onã,

o deus coxo

(oswaldo martins)

São Paulo 454

Li o post do Cláudio e lembrei da notícia que lera no sábado. Não resisti:

cena de sangue no altar da igreja da sé

numa mão faca de cozinha

foi-se infiltrando
o bafo da onça
(benedito do pagode, vulgo Benedito de oliveira, 45)
e dos famintos
à boa gente de geolhos

desavergonhados mulatos
governadores e conselheiros
(são paulo me fez assim)
papas e papisas
abades e outras bestas

a cuca dos bêbados
o fósforo mole
(mata eu são paulo eu não quero morrer de fome)
o bodum das ruas
imiscuiu-se

(rendido preso indiciado por tentativa de homicídio)

na outra cavaquinho

PS: Este poema também está na seção A dor da gente não sai no jornal, da Oficina Literária do TextoTerritório. Fica aqui o convite a participarem.

Diário de Manuel

VII

Misael já havia saído. Deixou a mesa posta – bolos, biscoitos e leite – a louça que usou de manhã já estava lavada – no bilhete, sobre a mesa, benzinho e um conselho para que dormisse. Jogo a cabeça para trás e rio, com vontade. Mordo um pedaço de bolo, farelos caem de minha boca, sujam a mesa, o chão da sala, do corredor – do banheiro, onde me sento para uma mijada boa e quente. A cama está feita, há bom dinheiro sobre a escrivaninha – tiro minha roupa e durmo de uma só tacada.


Misael era baixinho e careca – parecia um sapo, desses que gritam grosso, que enchem o papo, que se olham no espelho e saem de brilhantina nos bigodes e cabelo para a Rua do Ouvidor. Era das antigas, o homem. Tinha já 63 anos, era funcionário público – da Fazenda, uma carreira a respeitar.

(oswaldo martins)

Rio

venha comigo procurar
de onde brota essa água
onde fica essa fonte
embaixo do lençol de vento?

os mergulhadores afundam e estragam
o mistério do meu pensamento


(Lúcia Leão)

sábado, 26 de janeiro de 2008

DEPEDIDA

Si muero
dejad el balcón abierto

El niño come naranjas.
(Desde mi balcón lo veo.)

El segador siega el trigo.
(Desde mi balcón lo siento.)

Si muero,
dejad el balcón abierto!


(Federico Garcia Lorca)

Notícia de mim 1

Curtinha. Criado nos anos 60/70, aprendi a ter horror à polícia. Hoje, quando a mídia ataca a violência e pede policiamento, me sinto atacado duplamente, como se houvesse o desejo embutido e saudoso da ordem e da casa arrumada. No trânsito, tenho mais medo das blitz que dos assaltos. Na rua, um soldado me causa arrepio.

(oswaldo martins)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Exílio de você

Rio à toa se você aparece
Rio sem graça se você não vem
Rio,
Rio,
A minha terra que é essa
Sem ninguém

(Lúcia Leão)

São Paulo, 25 de janeiro de 2008

Vinha eu agora no metrô carioca a pensar nos 454 anos da cidade de São Paulo hoje. Feriado na Paulicéia desmbestada.
Aos 400 anos da cidade, mamãe foi quem da família primeiro conheceu a capital, quando vivíamos em Niterói. Era 1954. A logomarca da efeméride ocupava os espaços existentes da visão tímida naquela era do rádio.
Em 1964 conheci a cidade e uma garota paulistana de covinhas no rosto quando falava. Havia bondes e vemags a circular. A Última Hora ainda existia, mas a Folha de S.Paulo era discreta e pobre. Conheci outros adolescentes, cinema, igreja e umas ruas da Bela Vista, da Liberdade e da Aclimação.
Depois veio Mário de Andrade e a metrópole jamais me deixou de ser a cidade dele. Timbre triste de martírios e canções clássicas de Adoniran e outros. Leitor fanático de Mário, procurei a Barra Funda, cacei o depósito da Livraria Martins em busca dos livros dele então esgotados. E a comovente casa da Rua Lopes Chaves. Na Rua da Aurora, havia um grande edifício na altura do número da casa demolida em que o filho da candinha teria nascido.
Nessa viagem de julho de 1970, fazia frio, garoava e circulava o Suplemento Literário do Estadão, Haroldo de Campos dava notícia de um livro que abordava cinema do sábio Jakobson, que passara pelo Brasil e por São Paulo, fazia pouco.
Hoje a Avenida Paulista e todo o seu entorno, a Consolação, a Pinacoteca e o Museu da Língua dão roteiros. O filé com salada de rúcula e pão no Sujinho vêm na hora do almoço ou jantar.
O Bom Retiro velho alocado na Campinas velha de hoje em Quando meus pais saíram de férias, símiles de alguns arrabaldes de Buenos Aires como Liniers e Caballito, San Isidro ou ruazinhas mais distantes atuais, esvaziadas "de turba y de ajetreo" segundo Borges, dão a medida de impressão urbana da São Paulo que conheci nos meus 15 anos e reinvento com a distância da memória.


Cláudio Correia Leitão

Escrever 2

Escrever. Pensem no emprego da vírgula na produção musical e literária de Chico Buarque. Indubitavelmente, o último livro do autor é pródigo na escrita destas vírgulas. Vírgula é construção de ritmo, daí a importância que ela assume. Não se fala da vírgula física, mas da que é sugerida pela entoação do texto. Por exemplo, em “e o avião reapareceu na pista, numa imagem distante, escura, estática, que salientava mais ainda a voz masculina da locução em off.”, o importante é a ausência da vírgula antes de em off, por desnecessária , já que a própria leitura a realiza. Na sua música também há belos exemplos desta construção.

(oswaldo martins)

Poema do dia

ou delfos ou

mulheres proféticas
nascem do perfume
que sai da terra

florescem no gás inebriante
servido fora do sexo
para verem as coisas
do mundo e da guerra

o transe oracular
cresce da fenda na rocha
e só depois
de tomado o corpo feminino
falam os deuses


(Dora Ribeiro - Teoria do Jardim)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008


Minha querida Amy,
Tenho pensado se a menina está a conseguir decifrar os enigmas do País das Maravilhas? Se acha que já encontrou algumas respostas, pode enviar-mas; e se elas estiverem erradas, não lhe direi que estão certas!
Diz-me que desejava saber mais coisas acerca daqueles três gatos. Ah! Simpáticas criaturinhas! Sabe que desde a primeira visita que me fizeram, nunca mais me deixaram? Não é simpático? Diga isso a Agnes. Ela vai gostar de saber. E eles são tão simpáticos e atenciosos! Sabe que, um dia destes, quando saí para dar um passeio, eles tiraram os meus livros todos das estantes e abriram-nos no chão, para já estarem prontos para eu os ler. Abriram-nos todos na página cinquenta porque pensaram que seria uma boa página para começar a leitura.
(Lewis Carrol)

Do cosmologia do impreciso

lições oswaldianas

as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá


(oswaldo martins)

Drica

Coroa-te, Drica, com tuas gráceis mãos!
enfeita os anéis do teu cabelo
com funcho, anis, pétalas e corolas.

Vê que os olhos das Graças
sempre em grinaldas se entrançaram
de flores muitas

- e sempre, Dica, se desviam
de quem não se coroa
de flores.

(Safo)

Poesia

CONSELHO

Possas tu dormir
sobre o peito
da tua amiga terna


(Safo)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Diário de Manuel

VI
Gosto de ler o que os jornais publicam; principalmente, os assassínios, os estupros, as punhaladas. Há vida, numa intensidade tão verdadeira que, mesmo percebendo, sob a capa de cada notícia, a mão do repórter forçando os horrores da linguagem, me entrego completamente ao seu relato. É um alumbramento. Pela manhã, após o desjejum, pego os jornais, separo as partes – esporte, política, cultura, tudo – tomo as páginas policiais e me dirijo ao banheiro para cagar e ler. Demoro o quanto posso.
(oswaldo martins)

Do cosmologia do impreciso

o sax
de tanto que chora

cria o descompasso
o disfarce da música

a celebração da beleza


(oswaldo martins)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

sem título

lapa

pedaço dente bofetada
aflição de línguas - tu francesa
eu polaca - e a lapa

(oswaldo martins)

Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito

Folhas Secas



Quando eu piso em folhas secas

caídas de uma mangueira

penso na minha escola

e nos poetas da minha estação primeira



Não sei quantas vezes

subi o morro cantando

sempre o sol me queimando

e assim vou me acabando.



Quando o tempo avisar

que eu não posso mais cantar

sei que vou sentir saudade

ao lado do meu violão

da minha mocidade.



Essa música da dupla Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito representa, na canção popular, um cruzamento bastante curioso. Ao mesmo tempo que se elabora a partir da experiência direta dos autores, é um mergulho profundo num dos topos mais sensíveis da literatura clássica: uma espécie de carpe diem, no qual o lamento pela perda da mocidade corresponde às folhas secas caídas. Isto demonstra não só a permanência de uma visão de mundo, como a sensibilidade dos nossos poetas populares.
(oswaldo martins)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS

Eguchi acendeu um cigarro, ainda com a chave na mão. Deu uma ou duas tragadas e logo apagou a ponta mal consumida no cinzeiro. Porém, fumou lentamente o outro, que acendeu em seguida. Em vez de zombar de si mesmo por sentir ligeira inquietação, intensificava-se nele um sentimento de desgosto e vazio. Costumava tomar um pouco de uísque para adormecer, mas o sono era leve e muitas vezes tinha pesadelos. Havia um poema, escrito por um jovem poeta que morreu de câncer, que falava a respeito das noites de insônia: “o que a noite me reserva são os sapos, os cães negros e os corpos afogados.” Desde que o conheceu, Eguchi não foi mais capaz de esquecê-lo.


(Yasunari Kawabata – A Casa das Belas Adormecidas)

Calla Lily, de Robert Mapplethorpe, 1984


The Experience of Poetry

The Experience of a poem is the experience both of a moment and of a lifetime. It is very much like our intenser experiences of other human beings. There is a first, or an early moment which is unique, of shock and surprise, even of terror (Ego dominus tuus); a moment which can never be forgotten, but which is never repeated integrally; and yet which would become destitute of significance if it did not survive in a larger whole of experience; which survives inside a deeper and a calmer feeling. The majority of poems one outgrows and outlives, as one outgrows and outlives the majority of human passions: Dante's is one of those which one can only just hope to grow up to at the end of life.

T.S. Eliot, in "Dante", 1929.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Diário de Manuel

V

Vem-me uma vontade doida de cantar, dizer asneiras. Versos e mulheres sempre foram meu fraco, e, desde que adoeci, o cigarro. Gosto dos excessos, dos transbordamentos.

Há dias possuí uma mulher que me deixou impressas as marcas do cinismo. Tinha um bom corpo e, como eu, estava marcada pela morte - um morto percebe o outro de longe. Os desejos se tocam com crueldade, pois sabem que o tempo é curto e que todo carinho, toda ternura não devem ser desperdiçados. É preciso contenção, dedicação e trabalho para que o prazer não escape pelas mãos. É preciso saber o que se vive e para que se vive, quando se tem a certeza da morte. A vida deve ser contida para alcançar o excesso nos poucos anos que sobram.

Esmeralda sabia disso.

(oswaldo martins)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Uma pergunta do Prévert

Vous allez voir ce que vous allez voir

Une fille nue nage dans la mer
Un homme barbu marche sur l'eau
Où est la merveille des merveilles
Le miracle annoncé plus haut ?

shut up

shut up, shush.
there’s nobody here.
let’s climb the stairs,
I will undo the knots
your dress will fall
to the floor
now

somebody has come here
before us
there are bullet marks
on the walls
the smell of their fights
inside
your body
inside mine
now


(Lúcia Leão)

últimos momentos

as roupas descem pelas
pernas, eu subo as escadas
correndo
ele me segue apressado sem
ver os degraus perfurados
alguém esteve aqui
alguém lutou aqui
antes de nós
vamos subir, vamos, vamos
subir
ele insiste
e desfaz o meu vestido,e me
desamarra logo, após


(Lúcia Leão)

SOB

1

o olho d’água
seca

os corpos-mina
da língua


**

a língua
mina

olho
água

compõe

a amarugem
do silêncio


((oswaldo martins)

Brinquedo e brincadeira

O leitor demorará até começar a ler este livro, tão fascinante é o espetáculo interminável dos brinquedos que lhe oferecem as ilustrações. Regimentos, carruagens, teatros, coches, arreios – tudo isso está no livro, em dimensões liliputianas[1]. Já era tempo de desenhar a árvore genealógica dos cavalinhos de balanço e dos soldados de chumbo, de escrever a arqueologia das lojas de brinquedo e dos quartos de bonecas. O texto do livro realiza essas tarefas de modo plenamente científico e sem qualquer pedantismo de arquivista. A parte escrita é tão importante como a parte ilustrada. É uma obra de uma só têmpera, que nada revela sobre os esforços feitos para produzi-la, e é tão indispensável que não podemos entender como pudemos até aqui viver sem ela.

Aliás, tais pesquisas correspondem a uma tendência no nosso tempo. O Museu Alemão de Munique, o Museu de brinquedos de Moscou, o departamento de brinquedos do Museu das Artes Decorativas em Paris – criações atuais ou do passado recente – mostram que em toda parte, e por boas razões, cresce o interesse pelos verdadeiros brinquedos. Já passou o tempo das bonecas “realistas”, em que os adultos invocavam supostas necessidades da criança para satisfazer suas próprias necessidades pueris; o individualismo esquemático do artesanato e a imagem da criança, baseada na psicologia individual, os quais no fundo tinham tantas afinidades, romperam-se por dentro. Ao mesmo tempo, os investigadores ousaram dar os primeiros passos além do âmbito da psicologia do esteticismo. A arte popular e a concepção infantil do mundo queriam ser compreendidas como configurações coletivas.

Em termos gerais, a presente obra corresponde a esse estágio da pesquisa, se é que podemos classificar segundo uma posição teórica trabalhos documentários desse gênero. Esse estágio, com efeito, fornece a transição para uma fixação mais exata das coisas. O mundo perceptivo da criança está marcado pelos traços da geração anterior e se confronta com eles; o mesmo ocorre com as suas brincadeiras. É impossível situá-las num mundo de fantasia, na terra feérica da infância pura ou da arte pura. Mesmo quando não imita os utensílios dos adultos, o brinquedo é uma confrontação – não tanto da criança com o adulto, como deste com a criança. Não são os adultos que dão em primeiro lugar os brinquedos às crianças? E, mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (bolas, arcos, rodas de penas, papagaios) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformam em brinquedos.

É, portanto, um grande equívoco supor que as próprias necessidades infantis criam os brinquedos. É uma tolice a tentativa contida em obra recente, no conjunto meritória, de explicar o chocalho de recém-nascido com a afirmação de que “via de regra a audição é o primeiro sentido a ser exercitado”. Pois desde os tempos mais remotos o chocalho é um instrumento para afastar os maus espíritos, que deve ser dado justamente aos recém-nascidos. É possível que mesmo o autor desta obra tenha se enganado nas seguintes reflexões. “A criança só deseja na sua boneca o que vê e reconhece no adulto. Por isso, até o século XIX a boneca vinha de preferência com roupas de adultos; o bebê com fraldas ou o bebê que hoje predomina no mercado dos brinquedos não existiam antes.” Não, esse fato não se deve às crianças; para a criança que brinca, sua boneca é às vezes grande e às vezes pequena, e, como um ser mais fraco, mais freqüentemente pequena que grande. A verdadeira explicação é que até o século XIX a criança como ser inteligente era totalmente desconhecida, ao que se agrega o fato de que para o educador o adulto era o ideal proposto como modelo às crianças. De qualquer modo, esse racionalismo hoje tão ridicularizado, que vê na criança um pequeno adulto, tinha pelo menos o mérito de compreender que a seriedade é a esfera adequada á criança.

(BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira in Magia e Técnica, Arte e Política. Editora brasiliense. São Paulo. 1987.).

[1] Liliputianas. Adjetivo retirado do livro de Jonathan Swift. As viagens de Gulliver. Refere-se aos habitantes de Lilipute, diminutos homúnculos que habitavam esse país. Por extensão refere-se à estatura diminuta das pessoas e dos objetos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Sonetti Lussriosi - Aretino

I

Fottiamci, anima mia, fottiamci presto
perché tutti per fotter nati siamo;
e se tu il cazzo adori, io la potta amo,
e saria il mondo un cazzo senza questo.

E se post mortem fotter fosse onesto,
direi: Tanto fottiam, che ci moiamo;
e di là fotterem Eva e Adamo,
che trovarno il morir sì disonesto.

- Veramente egli è ver, che se i furfanti
non mangiavan quel frutto traditore,
io so che si sfoiavano gli amanti.

Ma lasciam'ir le ciance, e sino al core
ficcami il cazzo, e fà che mi si schianti
l'anima, ch'in sul cazzo or nasce or muore;

e se possibil fore,
non mi tener della potta anche i coglioni,
d'ogni piacer fortuni testimoni

(Pietro Aretino)

Há em português uma boa tradução feita por José Paulo Paes e editada pela Cia. Das Letras.

Diário de Manuel

IV

Não me arrependia, não senhor. Misael era também velho. Por seu corpo uma onda de calor fez com que ela associasse o nome de Misael ao do homem que a tomou na rua e a levou para seu apartamento. Uma bosta, o Misael; não compreendia suas vontades. Queria-a transformada em santa, fazer o papai e mamãe uma, duas vezes por semana e só. Meu sexo vivia latejando, querendo minha antiga vida, as esquinas onde, mesmo em pé, recebia minha cota de trepada e dinheiro.

(oswaldo martins)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira é um dos poetas que leio regularmente. Um dos poemas que leio com maior freqüência é o abaixo vai transcrito. Gosto nele da virilidade afirmativa do verso. Vejam como é bonito o verso isolado da segunda estrofe e como o raciocínio se fecha maravilhosamente nos dois últimos versos.

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira)

Carioca

Canal contido

como se não pudesse
como se o despotismo do mar
fosse amolação

Lá em cima
rodas e pernas

Aqui embaixo
o sangue
existe

rio
que ninguém vê
nem sabe
entreabre-se
como dobra em cantos

Lá em cima
rodas e pernas

E o fluxo contido
sístole diástole

rio que não inunda
que ninguém vê
nem sabe

emparedado
rio que ri
do inchaço inútil
do impossível
fluxo

rio que não passa


Luiz Fernando de Carvalho
20 de junho 2007

Pegadas

seus passos chegam
abafados
pela sola de
borracha

blusa azul, céu incerto
um olho aberto
o meu
espera

descalça te carrego
afobada
agora a blusa aberta
azul
a borracha apaga
o céu


(Lúcia Leão)

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Escrever I

Escrever. Percebam em Maiakovski a dança das palavras. Não a que pula entre os espaços vazios do papel, mas a que torce o significado, faz dele uma possibilidade única. Vejam:

Folhinhas
Linhas. Zibelinas só-
zinhas.

Esse quase hai-kai faz dançar o significado pela exuberância da repetição dos is. Pela disposição sonora e as repetições infinitas sugeridas na entonação do poema. Leiam-no em voz alta uma duas, três, infinitas vezes.

Observação criteriosa: A tradução foi feita por Augusto e Haroldo de Campos. O texto original:

Listótchki
Póslie strótchec lis-
tótchki.

Embora não se entenda nada de russo, pode-se perceber o trabalho dos irmãos no trabalho dos sons. O acento tônico que parece ser posto no /o/ em russo, em português no /i/, é uma das delícias da pesquisa da escrita. Escrever é se abismar também com essas delícias.

(oswaldo martins)

Diário de Manuel

III

O velho era esquisito, tinha uma voz rouca, de dar medo, mas aparentava calma e satisfação ao vê-la; embora nervoso e tenso, quando a tomou com as mãos firmes pelo braço e a levou ladeira acima, para sua própria casa. Casa simples, de homem sem mulheres; no entanto, nada revelava ser ele um homem inexperiente. Conduzira-me com sabedoria, gozando cada movimento – parece que lia minha alma de puta. Enfim, a trepada fora boa, a noite calma e a recompensa em meu bolso indicava sossego.

Assobiaram, quando descia a ladeira. Suspirei fundo e me soltei na Lapa, na noite da Lapa, atrás de uma boa comida, um cigarro, uma bebida – talvez. Ainda algum homem. Havia um rumorejar de vozes. A liberdade dos homens que assobiavam, mexiam, querendo, insistindo nos minetes, nas putarias, nas delícia da vida.


(oswaldo martins)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O desejo de virar índio


The Wish to Become an Indian

If only you were an Indian, instantly alert, and on a galloping horse, leaning into the rushing air, again and again trembling over the trembling ground, until you leave the spurs behind, for there were no spurs, until you throw away the reins, for there were no reins, and you scarcely saw the land lying before you like a smooth-mown heath, already without a horse's neck and a horse's head.

Franz Kafka, in "Meditation", 1913. Traduzido do alemão por Siegfried Mortkowitz.
Foto Ansel Adams


Se ao menos você fosse um índio, imediatamente vigilante, e num cavalo a galope, abraçando o vento, e vez seguidas sendo sacudido sobre o chão estremecido, até deixar para trás as esporas, porque não existiam esporas, até jogar fora as rédeas, porque não existiam rédeas, e você viu apenas vagamente a terra como um tapete verde e macio à sua frente, já sem um pescoço de cavalo e uma cabeça de cavalo.




a dobra

de repente ele viu
no virar da esquina
(ele que pedira
que o avisassem)
pensou em dizer
que ela mais tarde
já não seria garota
e ele já não estaria mais aqui.

marotamente achou que se saíra bem
mas a estranha atravessando
veio rindo no seu encalço
como se algo ainda começasse

e então mostrava-lhe
as gengivas do tempo.


(Luiz Fernando de Carvalho)

De filme

Encho o carro de ar, abro todas as janelas. O cabelo ameaça se soltar e me deixar sem ter onde segurar na hora em que pisar finalmente no freio. Encho o banco do passageiro de garrafas de uísque. Pode ser que eu precise. Sinto que vou precisar parar no primeiro posto e pedir uma água gelada, igual à do anúncio da TV, e meu olhar será duro como o do caubói impressionado pelo calor. Eu não vejo as rachaduras no barro marrom dourado da estrada em que ele pisa quando salta do carro. A meus pés, um oceano de pedras brancas formando um mosaico de incrustações. Parecem brilhar, todas essas pedras, mais do que o metal do meu carro prateado. Juntos, o cinza brilhante e o branco arredondado, somam-se ao meu cansaço. Preciso beber uma água, despir o caubói da sua agonia, dar-lhe um ventilador. Quem sabe esvazio o banco, jogo as garrafas lá atrás ou as prendo no pára-choque. Elas poderão anunciar a minha chegada aonde quer que eu esteja indo. E irei com esse caubói desmascarado e resistente, que vai demorar dias para começar a me contar todas as piadas que conhece. Quando chegarmos ao final da viagem, vamos contar tudo um para o outro. E o anúncio vai terminar com as bolhas da água gasosa explodindo saltitantes pela tela. Você vai ver só. Depois que terminar, um fade para as garrafas se quebrando e para a nossa gargalhada. O caubói perdeu o chapéu e nem ligou mais.


(Lúcia Leão)

domingo, 13 de janeiro de 2008

brinde (mallarmeano) a vasko popa

um monumento ao ar –
brasília –
para o olhar flamante de vasko
popa
meu amigo à proa
de vidro do sonho que voa.

entre o mármore passivo e o oxigênio
móvel
preferir este último
que enraíza nas veias – o mais íntimo
reduto do homem: o seu pulso.

no livro ler além do livro
ler na arquitetura o espaço livre –
leciona esse olhar.

poetariado: à senha da poesia
circula um verso subversivo
e em teu nome vasko eu saúdo
os carbonários desse verso vivo.

(Haroldo de Campos)

monumento ao oxigênio

um vinho rubro-terra me destina
a este país-braços –abertos
do coração do qual frondeja
a árvore da vida de olhos verdes

respira e assim anima
- exânime – uma estrela

me aterrorizam monumentos
grandes fantoches sobreerguidos
com frio e fogo e outras – invisíveis – armas

em parte alguma jubilou-me
um monumento ao oxigênio

todo armado de folhas
de flores e de frutos
e de outras verdades maduras.


(Vasko Popa – Trad. Haroldo de Campos)

ESTE LADO

Hay luz. No la tocamos ni la vemos.
En sus vacías claridades
reposa lo que vemos y tocamos.
Yo veo con las yemas de mis dedos
lo que palpan mis ojos:
sombras, mundo.
Com las sombras dibujo mundos,
disipo mundo con las sombras.
Oigo latir la luz del otro lado.


(Octavio Paz)

sábado, 12 de janeiro de 2008

Conversa na Sicília

É uma sorte ter lido quando se era menino. E dupla sorte ter lido livros de velhos tempos e velhos países, livros de histórias, livros de viagens e as Mil e uma noites, em especial. Pode-se recordar também aquilo que se leu como se de alguma maneira o tivesse vivido, e tem-se a história dos homens e todo o mundo em si, coma própria infância.
(Elio Vitorini)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Diário de Manuel

II

Me sento à mesa do café. Está posta. Fumega um cheiro bom, acre. A mão busca o pão; sorvo o ar da manhã, sua limpidez. Ternura. Satisfação. Sem esforço, escuto as vozes da rua. O pegureiro irrompe na casa mobilada - acho graça. Irene.

__ Nhô?

Esmeralda foi como a boa Irene. Serviu-me e se foi. Era noite, passava lentamente pelo Bar do Ponto. Sob o paletó sentia a carne aquecida. Restava do dia tomar um café forte, fumar o último cigarro, respirar o cheiro da vida e recolher-me. Ouviria o convento bater as horas, já sob as cobertas.

__ Nhô?

A voz conhecida me fez lembrar Recife. Virei-me. Café. Para esconder a decepção dos dias perdidos, das pessoas mortas. Entretanto, era tão viva a expressão do rosto, tão clara a carne sorrindo, convidando-me, que a garganta secou, tremeram minhas pernas e o sexo obesidente cegou-me, despertando o instinto de penetração.

O pegureiro ainda gritava, cada vez mais distante – a voz clara apagava-se. A sala vazia tomava vulto. Lavar a louça. Tirar o pijama. Tomar banho. Por onde andaria Esmeralda.



(oswaldo martins)

André Kertész

para o diário de manuel












































Diário de Manuel

I

Os olhos de Esmeralda fixavam-se em mim. Os arquejos faziam subir e descer os ombros. A respiração tensa e, não obstante o contato físico, sentia virem-me os acessos, a tosse, que deveria conter – os suores noturnos. A morte era minha velha conhecida. Esmeralda, não. Buscava apenas os horizontes, a glória do prazer – perder-se nas paisagens do sexo.

A presença da morte é aguda. Convive comigo desde sempre. Sou tísico e Esmeralda não sabe; pensa que fodeu com um homem são. Entregou-se e procurou seduzir-me com o braço, a boca e a respiração.

Sinto-me livre – a alma insatisfeita possuiu um corpo – dou-lhe dois tostões e a despeço. Esmeralda sai e antes me olha pela última vez. Chego à janela para vê-la descer o beco, faz escuro. Preciso dormir.
(Oswaldo Martins)
Lo que eres
me distrae de lo que dices.

Lanzas palabras veloces,
empavesadas de risas,
invitándome
a ir adonde ellas me lleven.
No te atiendo, no las sigo:
estoy mirando
los lábios donde nacieron.

Miras de pronto a lo lejos.
Clavas la mirada allí,
no sé em qué, y se te dispara
a buscarlo ya tu alma
afilada, de saeta.
Yo no miro adonde miras:
yo te estoy viendo mirar.

Y cuando deseas algo
no pienso em lo que tú quieres,
ni lo envidio: es lo de menos.
Lo quieres hoy, lo deseas;
mañana lo olvidarás
por una querencia nueva.
No. Te espero más allá
de los fines y los términos.
en lo que no há de pasar
me quedo, em el puro acto
de tu deseo, queriéndote.
Y no quiero ya outra cosa
más que verte a ti querer.

(Pedro Salinas)

LA NOCHE, LA CALLE, LOS ASTROS

Noche fiel, pulsación bien estrellada,
Solicitud total: gobierna el cielo.
Y se ahonda em seguro laberinto
La calle tan sabida que refiere,
Profunda al fin, su límite a los astros.

(Jorge Guillén)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Esconjuro

Vai-te, Selene, vai-te daqui
vampira
Diana estéril selvagem
assassina

vai-te, vai-te daqui, noiva do Hades
Persérfone
vai-te cavaqueira pedra morta
Medusa

vai-te, Medéia feiticeira, Circe,
dona do abismo amargao do mar
doido
dona do Mênstruo, vai!

Vai-te daqui, cadela
Helena infame
vai-te luz falsa, vai-te
puta virgem

infernal Hécate! Vai-te daqui
vai!


(Orides Fontela)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Recomendando a leitura 7

1 – Marianne Moore – Poemas – Cia. das Letras -1991 ed. bilíngüe (Trad. José Antônio Arantes).
2 – W. H. Auden. – Poemas – Cia. Das Letras. – 1986. ed. bilíngüe (Trad. José Paulo Paes e João Moura Jr.).
3 – Gerard Manley Hopkins – Poemas – Cia. das Letras. 1989. ed. bilíngüe (trad. Aíla de Oliveira Gomes)
4 – Elizabeth Bishop – Poemas – Cia. das Letras. 1990. ed. bilíngüe (trad. Horácio Costa).
5 – Seamus Heaney. Poemas. – Cia. das Letras. 1998. ed. bilíngüe (trad. José Antônio Arantes).



O sol é grande, caem co'a calma as aves,

do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,

incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavan d'amores.
Tudo é seco e muda; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura


Sá de Miranda
Foto: de Ansel Adams - "Jeffrey Pine"

a mendiga de cristo

uma madalena com os seus vícios
sem pregas e agradecimento uma
a nos pedir mais mais e mais ressuma
o gozo que dos pés até o fictício

céu das bocas grita por nomes crus
uma, ofegante de prazer nos corpos
túrgidos, a que se deitasse nua
sobre o deserto e – cega de calor –

mais nas coxas firmes na racha a sede
de eternidade rogasse, a que contra
a morte se insurgisse, a que seus pares

com as pernas abertas para o flerte
convocasse à comunhão dos bares
e, como sempre, estivesse pronta.

(oswaldo martins)

2

árvores continuam dando pássaros
e nada mais dizem elas da inércia
que contempla, no rosto vil do morto,
a memória, onde o absorto sopro

em ignaro porto – se as vozes álacres
incitam ao morto senão que aos pássaros
os desfigurados cantos da aurora,
a voz infensa da maldita hora –

descanta no licor da alada voz
este silêncio inamovível e só
que não mais olha o olho no olho

de quem à beira da funérea urna
evoca os gritos, os cantos de brômio,
posterga o dia da azafamada bruxa.

(oswaldo martins)

menipo

nos lençóis de linho se engomaram
os corpos ressequidos dos amantes;
recendiam odores, sobre as ocres
paredes, as peles com seus suores.

ali amou, no perdido destempero,
as noivas rubras, as vadias moças;
tanto buscou nos becos o encoberto
que a noite de estrelas vista das poças

nas ranhuras da rua de pedra-sabão,
no lampejo dos lampiões cindidos,
fora do quarto uma ilusão luzente.

jaz agora sobre linho e colchão
o rosto neste quieto colo lúcido
que ri do pacto dos amores crentes.


(oswaldo martins)

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

De Canções da Forca

VICE VERSA

Ein Hase sitzt auf einer Wiese
des Glaubens, niemand sähe diese.

Doch, im Besitze eines Zeisses,
betrachtet voll gehaltnen Fleisses

vom vis-à-vis gelegnen Berg
ein Mensch den kleinen Löffelzwerg.

Ihn aber blickt hinwiederum
ein Gott von fern, mild und stumm.

(Christian Morgenstern)

VICE-VERSA

Um Coelho parou no descampado
certo de que não fora notado.

Porém, segurando um óculos de alcance
Um homem observa a cada lance

Do alto de um monte atentamente
O orelhudo anão à sua frente.

Por sua vez ele é visto sobretudo
Por um Deus distante, meigo e mudo.


(Christian Morgenstern em tradução de Sebastião Uchoa Leite. Roswitha Kempf / Editores. 1983)



What I think & what I feel can be
my inspiration but it is then also my
pair of blinders. To see one must go
beyond the imagination and for that
one must stand absolutely still as though
in the center of a leap.

John Cage, in "Silence" 1939
Foto: Nadar, "Baudelaire"



O que penso & o que sinto podem ser
minha fonte de inspiração mas também são os meus
antolhos. Para ver deve-se ir
além da imaginação e para isso
deve-se ficar totalmente quieto como
no centro de um salto.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

para dora ribeiro

escrava das imagens
balizas o rumo
do espaço

o aqui e o nunca
sentidos
sem peso

na linha d’água
destruída narciso

a imagem
(que volta)
abstrai

de ti
o incorpóreo
deste vaso


(oswaldo martins)

Alto dos Passos

pedras
que atraem
para baixo
pisos
que descansam o penar
pedras
que chamam
para cima

circundam
pulsam
em cinza azul
branco
negro

pisos
que descansam o penar

tudo respira
elas vigiam
e quentes
confortam


(Luiz Fernando de Carvalho)

deixo-te aqui
neste lugar de vão inverso
mundo esquerdo de um
universo recém-explodido

deixas-me aqui
vestida de música
aérea e passeante
quase nua

não há palavras
para regular o espaço
vazio
apenas deixamos o
abandono regressar
ao seu posto de vigília


(in "Olho Empírico", inédito)
Foto: "White Vase" de Mappelthorpe

Diário de viagem

I

vai-se à Fátima
vai-se ao Louvre
vai-se ao Fado
vai-se ao Prado
vai-se às Torres
vai-se aos Arcos
vai-se aos Touros
vai-se à Notre-Dame
vai-se à Compostela

como se vai à Fátima
como se vai ao Louvre
como se vai ao Fado
como se vai ao Prado
como se vai às Torres
como se vai aos Arcos
como se vai aos Touros
como se vai à Notre-Dame
como se vai à Compostela



II

o turista é um peregrino?
o peregrino é um turista?


III

passeei pelo Douro
passeei pelo Sena
fotografei o Tejo
e com alegre necessidade
mijei no Mondego


IV

o largo das Camboas não é largo
nem são altos os degraus
da porta da casa em que nasci

pernas curtas
grande passeio


V

as Ninfas do Mondego
ah! as Ninfas ...
não estão mais lá


VI

foi bonita a festa, pá
mais bonito do que rever a pátria
foi rever gente
entregar o corpo aos abraços do corpo
e deixar mãos estar com mãos


Elesbão

Viagem à minha aldeia

Em quatorze de julho faz 55 anos que estou no Brasil. Desta vez, comemoro os meus anos brasileiros em Portugal, para onde embarco no dia 11/07/ 07.
Já está agendado um passeio pelo rio da minha aldeia. Não sei o quanto ele dista do Tejo, se comparado com o Tejo, mas há de ser tão mentiroso quanto o Tejo, se comparado com o rio da aldeia do Caeiro.
Tenho-me posto a desenhar o mapa da minha aldeia. Sento-me no chão, no largo das Camboas, encostado à parede, onde me sentava para aquecer-me com o Sol. Se subir esta rua à esquerda, hei de encontrar a venda do tio Luiz Bailio e, em frente à venda, um campo de couves, onde apanhávamos cabos das couves e lutávamos espada. Ao chegar lá em cima, se dobrar à direita passo pelas escolas em que meus irmãos eram desasnados. Uma escola de um lado e a outra doutro. Suponho que seguindo por essa rua se chegue à igreja e ao cemitério.
Se, ao contrário, dobrarmos para a esquerda, encontramos os Bombeiros e a Escola Dramática. Na Escola Dramática fazia-se teatro e passava-se cinema. Foi lá qu’eu vi Joana D'arc (Ingrid Bergman?) a arder em chamas e Ofélia a boiar na água; foi lá qu’eu vi Sir Lawrence Olivier por-se a falar.
Um pouco mais abaixo está a venda do meu tio Manuel, irmão de minha mãe. Sobre o balcão um pipo de vinho; atrás, meio pipo, donde podíamos tirar-lhe algumas azeitonas. Se completarmos a curva pra esquerda, vamos pro cento da cidade. Ocorre-me agora que a igreja e o cemitério estejam aqui à direita.
Volto ao largo das Camboas, onde me aqueço com o Sol. Sobre o meu ombro esquerdo está a rua em que morei e nela a casa em que nasci. Seguindo-se por ela, vai-se chegar àquela estrada que nos leva ao centro do Porto. Foi por ela que vi meu pai ir/ vir para o Brasil.
Um pouco mais adiante, mas à direita, há um beco que se tiver saída, vai dar na estrada por onde se chega ao Porto.
Em frente a mim, há uma rua em curva qu’eu não sei em que lugar vai dar. Havia lá uma casa com uma pereira, mas nunca fui além das peras que comia.
Ainda para a direita, há uma ladeira que desce, que é continuação da primeira rua, aquela que sobe. Por esta ladeira, hei de encontrar a casa dos meus padrinhos. Por ela, hei de chegar à casa da minha tia Alice, irmã da minha mãe, e à casa das irmãs do meu pai.
Pois bem, desço a ladeira, mas não sei se sigo em frente ou se dobro à esquerda: por que caminho chego ao Douro? - o rio deu menino.

Ps- A UNESCO designou em 14 de Dezembro de 2001 a região vinhateira do Alto Douro (45°68' N, 5°93' W) na lista dos locais que são Património da Humanidade, na categoria de paisagem cultural.

Elesbão

domingo, 6 de janeiro de 2008

Camões/Diogo Bernardes

Alma que nesta vida despediste
Quanto ao Céu podia desviar-te,
Com Maria escolhendo a melhor parte,
Esquecida ti, Cristo seguiste.

Depois que desta vida te partiste,
Tristeza do meu peito não se parte,
Sem ti me vejo tal em toda parte
Que o menos mal que sinto é ver-me triste.

Inda que meconsola ter por certo
Que lá nesse alto coro recebida
Gazas do sumo bem, que tanto amaste:

Agora vendo claro e descoberto
O doce esposo teu, por quem a vida,
E todos os bens dela desprezaste.

Comparem com o poema de camões retirado de Petrarca, do qual, por conecido cito apenas a primeira estrofe:

Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.


Há dúvida por que razão conhecemos Camões e não Diogo Bernardes?

Onde acharei lugar tão apartado

Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.

Luís de Camões

The Wind Shifts















This is how the wind shifts:
Like the thoughts of an old human,
Who still thinks eagerly
And despairingly.
The wind shifts like this:
Like a human without illusions,
Who still feels irrational things within her.
The wind shifts like this:
Like humans approaching proudly,
Like humans approaching angrily.
This is how the wind shifts:
Like a human, heavy and heavy,
Who does not care.

Wallace Stevens in "Harmoniun" (1937)



É assim que o vento muda:

Como os pensamentos de um velho humano,

Que ainda pensa intensamente

E desesperadamente.

É assim que o vento muda:

Como um humano sem ilusões,

Que ainda sente coisas irracionais dentro dela.

É assim que o vento muda:

Como humanos se aproximando orgulhosos,

Como humanos se aproximando enraivecidos.

É assim que o vento muda:

Como um humano, pesado e pesado,

Que não se importa.



(Imagem: Detalhe do túmulo de Camões, Lisboa)

sábado, 5 de janeiro de 2008

Matula

I

Acumular
- longe da usura
no intervalo do clic
no descanso das coisas -
provisão
para imprevistos
cioso
de que este farnel
não deixa esquecer
os lugares

II

A máquina febril
cessa
e os sons
exultam
corguinho
corguinho
brisa
trinados, folhagem
ramos rumos rumores


(Luiz Fernando Medeiros de Carvalho – nos 31 de dezembro de 2007, em Tiradentes).

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Livrai-nos do mal do mau leitor

Gosto muito de todo o livro Tempo espanhol, que contraria a inaceitação do catolicismo em versos murilianos. Comunguemos. O livro nos leva de volta à milenar gruta de Altamira, patrimônio e matrimônio. A edição foi portuguesa durante o salazarismo franquismo. Eis Espanha não oficial do sueño republicano, a servir o vinho e partindo o pão na cara da fome.

(Cláudio Correia Leitão)

Latrinas

Sempre que, em templos de Kyoto ou Nara, sou conduzido a uma escura e antiguada latrina impecavelmente limpa, sinto renovar-se em mim a admiração pela arquitetura japonesa. Zashiki, as salas de estar japonesas, são belas, não há dúvida, mas na minha opinião as latrinas oferecem paz de espírito aos usuários. Construída invariavelmente longe do corpo da casa, à sombra de arbustos e em meio à folhagem e ao musgo de verde fragãncia, a ela se chega transpondo corredores, quando então, acocorado em meio à baça claridade refletida pelo shoji, considero simplesmente indescritível a sensação de contemplar o jardim pela janela e me perder em pensamentos. Segundo dizem, o escritor Seseki Natsume contava as idas matinais ao banheiro entre os prazeres de sua vida, e delas auferiq êxtase fisiológico. E para experimentar tal êxtase não há em minha opinião lugar mais adequado que uma latrina em estilo japonês, onde, cercado por sóbrias paredes de madeira de requintado veio, pode-se contemplar tanto o céu azul como o frescor verdejante das plantas.
(Junichiro Tanizaki - Em louvor da sombra)

Numancia

Prefigurando Guernica
E a resistência espanhola,

Uma conuna mantida
No espaço nulo de outrora.

Fica na paisagem térrea
A dura memória da fome,

Lição que Espanha recebe
No seu sangue, e que a consome.

(Murilo Mendes - Tempo Espanhol)

janeiro

solidão
o estertorar das cigarras

amigas que vêm se vão
pelos azuis

nas dobras do pensamento
a inclemência do sol

o tom seco
de quem espera

a última voz
o último tema

e se finda quieto
no círculo

das borboletas


(Oswaldo Martins – Janeiro 2008)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Grogotó

Quando vi nas livrarias o título do livro de Evandro Affonso Ferreira, confesso que o comprei levado pelo impulso da lembrança que o nome me sugeriu. Grogotó era o nome de um bairro de minha cidade, de um hotel. Não li o livro imediatamente, havia outros na fila de livros que deveria ler primeiro. Até que ontem à noite, terminado o romance que estava lendo, peguei o volume e o li.

Tinha uma apresentação do José Paulo Paes, o que sempre é um bom indício. Os contos são curtos – lembrou-me os de Dalton Trevisan, não só pela temática como pelo recorte que faz da realidade. Certa violência que aqui e ali desponta seca, cruenta e definitiva. Não é a meu ver uma obra definitiva. Parece que é a primeira que o autor escreveu; depois se seguiram outras.

Não tenho um valor definitivo sobre os contos – uns me agradaram mais que os outros, mas no geral gostei do que li. Há uma questão de linguagem que é perigosa – isso de criar palavras e mantê-las no léxico compreensível, verossimilhante pode faze desandar o texto, o que, aliás, não é o caso. Além de, é claro, me induzir a novamente tomar contato com o que o autor escreveu; apenas uma outra notação: a economia excessiva do autor pode fazer do texto apenas uma piada. Este talvez seja o risco do texto mínimo, que termine como o soneto, com uma chave de ouro.

Oswaldo Martins
Rio, janeiro de 2008.