segunda-feira, 30 de junho de 2008

Só se comparam os da mesma grandeza

Outro dia a Folha saiu-se com uma enquete: Rosa ou Machado. Efemérides que não nos levam longe. Mas um pouco por conta disso, achei-me às voltas com este texto. Não pretendo desenvolvê-lo ou desdobrá-lo. Vai aí o que queria dizer.

Mário Faustino falava dos poetas perigosos. Há níveis de perigo que os artistas podem oferecer. E digo níveis pensando na gradação ou mesmo hierarquização que se deve estabelecer entre os poetas, principalmente se forem da mesma grandeza. É claro que o barômetro é o leitor (e eu, aqui, biruta).

Há poetas que podem formar perigosos novos leitores da literatura e do mundo. Outros perigosamente podem deixar o leitor perdido entre os píncaros da expressão e os baixios da imutabilidade em sua dimensão humana. Pharmakon, esses, são para almas já formadas, capzes de dosar-lhes a leitura, e extrair-lhes o o exato centesimal hahemanniano. Daqueles, uma faca só lâmina; desses, uma lâmina de dois gumes.

De um desses comemoramos o centenário de nascimento. Vêm-me inquietando as leituras deslumbradas que meus alunos de literatura andam fazendo de Rosa. Ficam meio abestados com as pirotecnias de expressão e ponto. Suspendem a resposta sem sequer tangência do difícil humano daqueles textos. Viram estátua de sal quando deparam que o bruxulear da chama dá-se mesmo no geométrico cristal da palavra e a linguagem-convite-a-travessia vira canto de sereia. Perigoso perigo o desse poeta. Falta à introdução da obra Rosiana uma advertência como aquela que Lispector apõe a G.H., gostando que fosse lida apenas pelos espíritos formados. Nesse ponto, o vaqueiro das gerais escreve-se mais ingênuo. Ou não.

Acontece que a aura modernista asa da palavra tartamudeia o submundo. Fico pensando nas minhas questões com a periferia, com os meus pobres, ditos marginais, a terceira classe do terceiro mundo sem terceira via, que ingressa nas letras, nas ciências humanas e vai penando nos magistérios públicos de 300 contos por mês. E então me vem que o perigo a palo seco daquele é melhor: minha pobreza é tal que muita coisa não trago. A literatura severina, em pequenas partidas cada dia é um caminho para se chegar às goiabas da jaqueira e às jacas da goiabeira. Trocando em miúdos, para infeccionar a miséria, uns são antibióticos do SUS, outros homeopatia de unicista.

E ainda há o J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história, ou seja, entre Guimarães Rosa ou Machado de Assis, antes Graciliano e João.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

POEMAS DE LUIZA NETO JORGE

AS CASAS VIERAM DE NOITE

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas


A QUEM SE INTERESSE

A quem se interesse
por tecidos, peles
sistemas de ocultação

lembro Bartolomeu
santo, mártir, manequim

o que há séculos passeia
sobre os ombros
ou dependurada no braço
feita capa
a sua pele escorchada

adereços:
os pés e as mãos,
a murcha máscara
da cara.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Luiza Neto Jorge editada pela primeira vez no Brasil

Diário de Notícias, 22 de junho de 2008
Fernandes da Silveira e Maurício Matos são organizadores
Colada à boca a desordem e o rigor. Assim é a escrita de Luiza Neto Jorge, uma das maiores da poesia portuguesa que tem, nos anos 60/70, o auge da sua obra, documentada em A Lume, publicado a título póstumo, em 1989, e em Poesia 1960-1989, em 1993 (Assírio & Alvim).
A poeta está representada em antologias no Brasil, mas livro seu só surge agora em volume organizado por Jorge Fernandes da Silveira - professor de Literatura Portuguesa há quase 40 anos na UFRJ (Univ. Federal do Rio de Janeiro), com tese de doutoramento sobre a Poesia 61, e Maurício Matos, doutorado pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em Literatura Portuguesa com tese sobre a lírica de Camões.
19 Recantos e Outros Poemas acaba de sair pela 7 Letras (Rio de Janeiro) em bela edição com apresentação de Jorge Fernandes Silveira, ensaísta de fulgurâncias e argúcia, especialista, entre outros, em Camões, Fiama e Llansol. A biobibliografia é escrita por Gastão Cruz, transcrita do n.º 18 da Relâmpago, sobre Luiza (2006).
A antologia segue a ordem da publicação dos poemas pela primeira vez em livro, os Dezanove Recantos estão na íntegra. A obra - revolucionária no que se refere aos "instrumentos de estilo e composição" -, a de "um corpo em estado de alarme, alarmado e alarmante" -, é dissecada pelo ensaísta que acaba de lançar O Tejo é Um Rio Controverso, António José Saraiva contra Luís Vaz de Camões (7 Letras), em que prossegue a aventura lusíada.
E é reler esta escrita, na revolta das palavras e tendo em conta a linha da reconstrução do discurso que se seguiu a Poesia 61 (Fiama, Luiza, Teresa, Gastão, Casimiro): "Estes versos rigorosamente irregulares, cortados por elipses frasais e semânticas, por uma exultante contundência."
Antiquíssima e nova, violenta e desagregada na sua harmonia composicional, a poesia de Luiza, no acto ou desacato da transgressão semântica, sintáctica, metafórica, metonímica, é libertária. Ao falar da queda, da vertigem, do corpo, do medo, do amor em bruto, da morte dir-se-ia táctil e mínima. Pode ser agora (re)lida no Brasil.
(Ana Marques Gastão)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira)

segunda-feira, 23 de junho de 2008

IMPRESSÕES DIGITAIS 2

IMPRESSÕES DIGITAIS
de Cesar Cardoso

17 COYOTES À SOLTA!

Onde é que você pode encontrar poemas do escritor chileno Roberto Bolaño, traduções de Gertrude Stein, uma antologia de seis poetas brasileiras, entrevista e tradução de textos do ensaísta e poeta romeno Andrei Codrescu, autores novos daqui e de fora, um trabalho gráfico tão ousado quanto a linha editorial que juntou isso tudo e mais e mais e mais?
A resposta é o número 17 da revista de literatura e arte Coyote, que já está à venda nas boas casas do ramo, também conhecidas como livrarias, ou no site da Editora Iluminuras (www.iluminuras.com.br), onde também podemos encontrar os números anteriores da revista. O 17 traz 52 páginas de invenção pelo precinho camarada de dez pratas. Coyote existe há mais de 5 anos e é editada em Londrina pelos poetas Ademir Assunção, Marcos Losnak, Maurício Arruda Mendonça e Rodrigo Garcia Lopes. Olha o e mail deles aí: revistacoyote@uol.com.br. É uma ótima leitura, uma pechincha e até mesmo um presentão.

O PORTUGUEZ DO SECULO DEZOUTO

www.ieb.usp.br/online. Este é o site do Instituto de Estudos Brasileiros onde se encontra à disposição de todo mundo informatizado o “Vocabulario Portuguez & Latino”, do padre Rafael Bluteau. Suas mil páginas formam o primeiro dicionário monolíngüe da língua portuguesa (os anteriores eram todos latim-português). São dez volumes com 44 mil termos, que foram publicados entre 1712 e 1728. Este verdadeiro trabalho de Hércules, uma parceria entre a Universidade de São Paulo, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e a Biblioteca Guita e José Mindlin, foi coordenado pela historiadora Márcia Moisés Ribeiro. Além de ser uma fantástica relíquia e uma curiosidade ímpar, a obra é fonte importante de pesquisas.


FLA X FLUS DA LITERATURA

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim

Torquato Neto é o autor de “Cogito”. Letrista da Tropicália, parceiro de Gil, Caetano e Edu Lobo, entre outros, jornalista, ator, agitador (contra) cultural e um grande poeta, Torquato era multimídia. Nasceu em 1944 em Teresina e se matou no Rio, em 10 de novembro de 1972, deixando um bilhete onde dizia: “pra mim chega”.

Podemos encontrar nas livrarias tradicionais o abrangente “Torquatália”, em dois volumes, editado pela Rocco e organizado por Paulo Roberto Pires. O livro reúne a obra de Torquato, enfeixando todas as várias áreas de trabalho onde ele atuou. Em sebos e também na internet achamos “Os Últimos Dias de Paupéria”, reunião de seus poemas. Há também o site www.torquatoneto.com.br, onde se tem uma boa visão geral da produção torquatiana e se pode até fazer o download de diversas canções dele. Toninho perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.” Vaz escreveu uma biografia do poeta intitulada “Pra Mim Chega”. E um documento raro é o disco “Torquato Neto”, que reúne suas principais composições e foi lançado em 1985 pela RIOARTE. Deve ser difícil encontrá-lo. Uma possibilidade é a loja da FUNARTE, que fica embaixo do Palácio Gustavo Capanema, no centro do Rio.

O legado de Torquato não é apenas sua obra, mas também sua intensa participação na discussão e construção de uma arte de vanguarda, que se mistura com a vida e não abre mão das utopias, ao contrário dos tempos bunda-moles de hoje. Fala, Torquato: “leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do

sexta-feira, 20 de junho de 2008

José Maria

Mariinha recebia em seus domínios a vasta rede de relações humanas da cidade. Velhos coronéis, médicos, professores, amanuenses, alguns padres e os bêbados contumazes que ali iam ter um pouco de proteção e carinho. Suas meninas serviam, sentavam-se para um dedo de prosa desinteressado, que sempre terminava num dos quartinhos, reservados para a boa companhia. Os moradores tinham em sua casa aconchego e paz.

O Padre José Maria, que do púlpito de sua igreja, vociferava contra os desregramentos – comparando a cidade à Sodoma, à Gomorra – ameaçava com o sal, com a chaga, com a lepra. Apontava o caminho do Carmo, o leprosário que era mantido pela irmandade órfã das carmelitas. Tantas fez o padre que acabou sendo chamado a descanso e oração por seus superiores. Do que não se sabia era a razão da volta triunfal de José Maria à cidade.
Fanfarras, prefeito municipal e até o capitão, que comandava o destacamento local, acorreram na demonstração de apreço e laços de amizade. José Maria sorria, feliz.

No quinto dia, após o beija-mão das beatas, convocou Mariinha para uma conversa na casa paroquial. Aí havia de – ah, se não havia – remoía nossa grande dama. Quando o coroinha, menino de uns doze anos, levou-lhe o recado, esquecera-se de dizer o dia em que o padre a esperava. Pensou em chamá-lo, mas esperou e em seu lugar gritou por Gracinha, mulata nova e sorridente.

Gracinha, que tinha do nome a leveza e os atributos que levaram o Doutor a apelidá-la assim, acorreu.

__ Dona?

A papisa estendeu a mão e convidou-a a sentar. Gracinha, com os peitos meio a descoberto, brejeira, sorrindo, sussurrante, fala aos ouvidos de Marrinha:

__ Doutor?

Sorri, passa a mão sobre a cabeça de Gracinha e espera. Olha a seu redor, a casa estava bonita, pintada de nova, com cadeiras e poltronas confortáveis – a mesa era farta, as meninas, escolhidas a dedo. Diligenciara a decoração da casa – a cor penumbrosa, convidativa, lembrava os meios tons de uma sacristia. Fizera de propósito, sua experiência mostrava que os homens gostavam de gozar e depois se arrepender. As mulheres de seu tempo, em sua casa, sempre conheceram o recato da sala e soltura da cama – entre a santa que sabia ouvir e a puta que pedia mais e deixava-se bater. Agora José Maria, voltado em triunfal volta e poder.

__ Gracinha, vá e diga ao padre que de uns dois dias estarei lá, que boa devota sou e não posso recusar o chamado de meu pastor. Mas, óia, faz com que ele te bata. Se voltar sem ter apanhado uma surra, esquece minha casa.

Recompôs os peitos para dentro da roupa, foram para dentro de casa e voltaram, com Gracinha pronta para cumprir seu dever. Em sua bolsa levava algumas outras pequenas coisas, além de uma espórtula para as obras da igreja. Saiu sorridente – sua carreira de puta começava bem. Primeiro o Doutor, agora o padre.

__ Vim a mando de dona Mariinha, seu padre.

Com o cenho fechado, o padre hesitou. Aparentava uns quarenta e poucos anos e tinha a tez dos morenos de além mar. De boa compleição, mesmo bonito podia dizer-se que o padre era. Ao ameaçar fechar a porta, encontrou meio corpo da mulata já em sua casa, que, rápida, pulou pra dentro. José Maria tremia, o rosto cada vez mais fechado.

__ Dona Mariinha, manda que eu vince vê o pastô. E descuidadamente faz um gesto de retirar algo dos seios. Com molícia falava e esperava, aturdia o padre.

__ Dona Mariinha...

José Maria não pensava, apenas via, em seus domingos gloriosos de púlpito, beatas vestidas, vestidas. Entrara cedo para o seminário e o mundo para ele havia sido desde então aquelas mulheres de roupas enegrecidas. Odiava-as. Mas essa parecia diferente, lembrou-se do capeta.

__ Dona Mariinha pediu... e esperava. Pediu que entregasse pra ocê, sinhô.

E enfiava a mão nos seios, cada vez mais os descobrindo. Num gesto meio estabanado, de quem sente vergonha, Gracinha toca as mãos do padre, que recua. Lembra-se das duras noites de frio do seminário. Sorri para o padre. Retira um papel e o movimento se faz de tal jeito que, ao mesmo tempo em que ela desaba sobre o padre, seus seios pulam para fora do vestido. O padre a empurra, ela se abandona sobre ele, que se enfurece e a empurra com mais vigor. As mãos da mulata apertam seus braços contra o chão. Os joelhos dela se dobram ao longo da cintura do padre, que não se mexe. A voz de Gracinha soa fresca, feliz:

__ Dona Mariinha, mandou que eu vince, eu vim para dizê pru sinhô que dispois de manhã pela tardinha estaria aqui pro mode de falar com o pastor.

Sente o corpo do padre enrijecer, depois relaxar e, lentamente, solta as mãos de José Maria que se mantém crucificado no chão. Com certo receio, passa a mão sobre o rosto, os dedos tocam os lábios e inesperadamente começa a bater no rosto do padre devagar, devagar. Seus seios balançam. José Maria fecha os olhos e os abre, quando sente a mão de Gracinha descair de encontro a sua face com uma força cada vez maior. Grita. Em vão. Gracinha continua a espancá-lo. José Maria sente-se como que espetado pelo tridente do demônio. Derruba-a de cima de si. Ela luta. Seu vestido se desfaz cada vez mais. Suas pernas enroscam-se às pernas de Maria. O padre busca puxar-lhe os cabelos. Gracinha ri. Rolam pela antecâmara do quarto.

Após a noite do padre, Gracinha procura recompor-se – assim como o Doutor e Mariinha lhe ensinaram algumas das artes de sua profissão, fizera ao José Maria sua iniciação como instrutora e amante. Sabia que Mariinha ficaria satisfeita – galgara um degrau na hierarquia das putas.

Recolheu suas coisas, beijou o padre na testa, em gesto maternal e falou:

__ José, dona Mariinha pediu pra avisar que vem, mas me mandou antes para falar com o sinhô.

O padre respirou lentamente. Pensava.

__ Diga à dona Mariinha que a espero na igreja, no próximo domingo.

Alguns anos depois, quando viajamos de férias para o litoral, encontramos Mariinha numa praia quase deserta, esquentando ao sol. Acompanhava-a a divina Graça, com seu sorriso. Sentamos ao lado das duas.

__ Doutor, vou ficando velha. A arte de domar meus cabritinhos, de conduzir a sociedade, com segurança e tranqüilidade, passo a outras mãos, querendo dispor. E riu apontando Gracinha. Para mim, entre convidativa e festeira:

__ E o menino, quando aparece?

Ao nos afastarmos, o Doutor certo de que seu tempo havia chegado junto ao de Marrinha; eu, louco para que acabassem as férias, percebemos ao longe a figura de um velho padre que nos acenava, reintegrado à vida.


(oswaldo martins)

terça-feira, 17 de junho de 2008

Educação silenciosa

para o cláudio leitão

A presença constante dos amigos em nossa casa é um reflexo da educação silenciosa que meus pais intuíram. Sempre tivemos a presença de outras pessoas – que não as do ciclo familiar. Uns, como foi o caso do Sisson, amigo de muitos anos de papai, moraram conosco durante um período. Era interessante verificar sua presença no processo de educação. Palpitava à larga, na mesa, no diário da família, sempre apoiados por nossos pais. O Marcier – quando em Barbacena – sempre a parecia para uma conversa e para os intermináveis jogos de xadrez com meu pai. Ouvíamos, sem nenhuma censura, o que falavam, comentavam, sobre a vida, o amor, conselhos. De certa forma, também participávamos do último quadro que pintava. Para minha alegria, fui retratado por ele duas vezes. Uma, aos seis anos; outra, aos vinte e um. O Seu Paulo, que decorou nossa casa e era conviva da amizade e que, além de nos levar os móveis coloniais mineiros. Uns, originais; outros, cópias perfeitas de não sei que cômodas, que arcazes, que camas, que cadeiras. Fazia com que nos deslocássemos constantemente até Tiradentes – uma diminuta Tiradentes com poucos turistas e vida pacata. Uma Tiradentes onde ainda se colhia a pimenta do macaco e o deliciosos cambucá, nos quintais das casas.

Lembro-me, especialmente, do Sisson à mesa num dia em que se serviu jiló e um de nós recusou-se a comer a iguaria. Ante a hesitação – não sei se fingida, ou se real – de minha mãe, que presidia o almoço, ordenou – não há outra palavra – que nos fosse servido o prato sem que nada do que houvesse para o almoço pudesse ser esquecido ou negligenciado. Comemos, é claro. Agradeço a esse tio querido – pois era com esse tratamento que ele se inseria na família – o fato de nos fazer ter provado alguns pratos. Convivemos com ele – mesmo depois que ele foi morar em apartamento próprio, em Barbacena, e mesmo depois quando voltou para o Rio.

A presença destas pessoas ensinou-nos principalmente a diferença, a percepção do respeito pelas suas escolhas, pelas suas individualidades e, sobretudo, a percepção de que havia outros mundos para além do encerrado em casa, um outro mundo para além das escolhas familiares.

(oswaldo martins)

sábado, 14 de junho de 2008

ALMANAQUE CAPIVAROL 2008

ESPELHO MEU

Aos domingos, gosto de passear nas Lojas Americanas. São tantas ofertas, tantos produtos, embalagens, prateleiras... E é tudo pra mim, pra mim.
Um dia ainda faço uma loucura e compro aquela manteigueira de inox. Como brilha a manteigueira de inox. Dá até pra ver o meu rosto nela.


FUTURO

Agora estou melhor. É um bom emprego e trabalhar com água é muito agradável. Primeiro eu tampo a pia, depois abro a torneira e deixo encher. Quando a pia está cheia, fecho a torneira, pego o conta-gotas e encho, fazendo a sucção. Daí é só sair da casa, atravessar a ruazinha de terra e já estou na praia. Vou até o mar e esvazio o conta-gotas. Depois volto e vou repetindo a operação até esvaziar a pia. Então é só encher de novo e recomeçar. Tem alguma coisa a ver com as marés, eu ainda não entendi muito bem, mas o importante é que eles estão satisfeitos com o meu trabalho.


DE VOLTA AO SÍTIO

A casa branca, de cômodos espaçosos, restou semi-abandonada. A menina largou a boneca num dos quartos e se masturbava toda noite com o sabugo de milho. Até descobrir que com o primo era muito mais divertido e engravidar dele. A velha empregada anda pelos cantos com muita dificuldade e com medo de tudo, contando as estripulias do menino que pita o dia inteiro um fumo que eu nunca que vi e que faz ele ficar com uns olhos vermelhos e rindo à toa que só pode ser coisa do demo, sabe sinhá? Mas a sinhá não sabe mais nada e apenas ri, olhando para aquela mulher que ela não faz a menor idéia de quem seja.


O MUNDO COM AS PERNAS

Abracei o mundo com as pernas. Apertei para que ficasse imóvel. Como ele ainda se debatia, com a mão direita cortei de leve sua garganta e rapidamente encostei o caco de vidro em seu olho. O mundo parou. Daí minha mão esquerda desvestiu-lhe as calças e, com concentração, cuidado e prazer, currei três vezes o mundo.


O TÁXI

Acordou, espreguiçou-se, levantou, fez a barba no banho, escovou os dentes, passou o perfume, vestiu o jeans com uma camisa de malha qualquer, calçou o tênis, pegou a pasta, botou os papéis na pasta, sentou para tomar café, abriu a pasta, tirou o revólver, matou a mulher, mordeu a torrada, foi ao quarto dos filhos, matou o caçula, foi ao banheiro, bateu na porta, aguardou, matou o mais velho, voltou para a sala, acabou de tomar o café, ligou a secretária eletrônica, pegou as chaves, bateu a porta, desceu pelo primeiro elevador, cumprimentou o porteiro, atravessou a rua, olhou para a esquina e se preocupou.
Não havia táxi no ponto.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Comentário à Mulher de Lot 1

Seu blog inspira Urânia:

para castigo dos deuses
o caos ante os olhos
é a glória dos condenados
1

de ouvir

o saxofone
e sua forma curva

feminina

rebenta

o sopro
torvo

cultiva
no semblante

sombra
e lamparina

(oswaldo martins)

A Mulher de Lot 1

toda vez que ordenem:
tua cidade –

antro

– segue-me e a abandone

olharei para nossas coxas
para o busto

e

vertiginosa

deixarei que o sal
minha pele transforme

em pergaminho


(oswaldo martins)

terça-feira, 10 de junho de 2008

Musse de musas - Urânia

Um poema de Safo, várias postagens abaixo, me levou a este, que na verdade é uma contradução:

às estrelas todas abençoa
a dinda lua, tolas ignoram
que seu brilho luz da Terra

Mas depois cheguei a este:

quando morrem estrelas
são olhos que brilham
no desterro das lunetas

E este:
pais de família
mossas na calota
do planeta mãe
Por enquanto só. Mas continuo tentando outros, para compor Urânia, mais uma musa (esta será impressa em páginas negras como a do blog) desse musse in progres.

sábado, 7 de junho de 2008

Da amizade

para dora

A amizade nunca se interrompe. Podem os amigos passar dias, meses, anos sem se verem. Retomam as conversas sempre inacabadas, sempre prontas para se reatarem de um ponto quimérico qualquer. Desta quimera surgem, como se ontem, um tempo que não se finda, que não se esvazia. A fruição dos pequenos detalhes, dos grandes abismos da vida se contém, deixando espaço para o mais simples e profundo estar. Dora escreveu uma vez um lindo poema sobre esta amizade, que nos traz lucidez e nos faz pensar desarvoradamente.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Cineclubismo - convite para o lançamento do livro


Cineclubismo: Memórias dos anos de chumbo

Como entender a vitalidade do movimento cineclubista num momento em que “a nossa pátria mãe... era subtraída em tenebrosas transações?”.
O que era este fazer coletivo cineclubista sob a repressão política da ditadura militar nos anos 70 do século passado?
Que tipo de formação esta experiência proporcionou àqueles jovens estudantes envolvidos com a política, com a cultura, com o prazer e com as apreensões do momento em que viviam?
Neste livro, Rose Clair recolheu memórias do movimento cineclubista através da narrativa de vida de alguns de seus protagonistas, tendo como referência teórica os conceitos de experiência (erfahrung) memória e narrativa de Walter Benjamin. E procurou compreender como esta experiência possibilitou a construção de ações coletivas, traduzidas numa prática político-cultural que ampliava o exercício da cidadania num momento em que pensar e agir coletivamente era “caso de polícia”.
As narrativas construídas neste processo de rememoração são manifestações de memória coletiva vistas como expressões individuais e como produções culturais. Elas possibilitam compreender que os sujeitos subjetivam a cultura, por terem capacidade de reflexão e interpretação do mundo e de suas experiências nessas mediações.
Rose Clair percebeu que na tensão entre um momento político sufocante e de esvaziamento de relações podem surgir processos sociais mais comprometidos com o devir humano.

Imre Kertész

*
É possível que suportemos a vida tão somente por ela ser tão improvável; por outro lado. a consciência procura investigar o tempo todo a chamada realidade, deseja a realidade.
**
A pergunta singularmente desconfortável com a qual Wittgenstein não pára de se atormentar: será que o que escreve tem valor? Parece a ostra observando as flutuações do preço de mercado da pérola enquanto produz no fundo do mar: deve-se reconhecer que a natureza da pergunta de Wittgenstein é radicalmente diferente da natureza da ostra.

(Kertész, I. Eu, um outro. Planeta - 2007)