terça-feira, 31 de julho de 2012

Pilulinha 23


Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, editado pela Alfaguara e ganhador do prêmio Cidade de São Paulo, do ano de 2008, é um livro fantástico. A narrativa se desenvolve no sertão nordestino, com elementos típicos de nossa época – lap-tops, celulares e televisão – mas a eles se contrapõe um mundo extinto, feito de lendas, segredos e intrigas, ao fundo uma história do consumo e dos despeitos familiares.

Desde o patriarca até o narrador, a história obedece a um plano exato de criar e não desvendar as mazelas que se desgarram do romance e criam um espaço entranhado na experiência de nossas vidas. O autor parece sugerir que, embora o aspecto rural de nossa personalidade como país ainda subsista nas memórias coletivas, ou mesmo por esta subsistência, somos um povo de desgarrados; mal colocados nas cidades e deslocados do campo, não encontramos espaço que nos integre e crie a ilusão coletiva de um destino comum.

A questão da identidade na qual diversos estudiosos mergulharam está presente em Galileia, como uma faca afiada pronta para ferir. Tem, ainda, a virtude de não intentar as respostas e apresentar sem disfarces a esquizofrenia e o estado de atonia dos tempos atuais. Parecendo ser um livro sobre o sertão profundo que trazemos, é, na verdade, uma analise cruenta dos novos tempos.

(oswaldo martins)

amor 3


amor 3

não ames
o outro é um blefe

não ames
tu és um blefe

o amor é um pano verde.


elesbão
30/07/12 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Para dizer a verdade ou os mortos desaparecidos


Romance XLIX ou de Cláudio Manuel da Costa


“Que fugisse, que fugisse...
- bem lhe dissera o embuçado! -
que não tardava a ser preso,
que já estava condenado,
que, os papéis, queimasse-os todos...
Vede agora o resultado:
mais do que preso, está morto,
numa estante reclinado,
e com o pescoço metido
num nó de atilho encarnado.

- Isto é o que conta o vizinho
que ouviu falar o soldado.
Mas do corpo ninguém sabe:
anda escondido ou enterrado?
Dizem que o viram ferido,
ferido, e não sufocado:
de borco em poça de sangue,
por um punhal traspassado.

- Dizem que não foi atilho
nem punhal atravessado,
mas veneno que lhe deram,
na comida misturado.
E que chegaram doutores,
e deixaram declarado
que o morto não se matara,
mas que fora assassinado.

E que o Visconde dissera:
“Dai-me outro certificado,
que aquele ficou perdido
por um tinteiro entornado!”
E quem vai saber agora
o que se terá passado?

- Talvez o morto fosse outro,
em seu lugar colocado.
A sombra da noite escura
encobre muito pecado.
Talvez pelo subterrâneo
fosse ao Palácio levado...
Era homem de muitas luzes,
pelo povo respeitado;
Secretário do Governo,
que vivia em grande estado:
casa de trinta aposentos,
muito dinheiro emprestado,
e do velho João Fernandes,
dono do Serro, afilhado!

- Não creio que fosse morto
por um atilho encarnado,
nem por veneno trazido,
nem por punhal enterrado.
Nem creio que houvesse dito
o que lhe fora imputado.
Sempre há um malvado que escreva
o que dite outro malvado,
e por baixo ponha o nome
que se quer ver acusado...

Entre esta porta e esta ponte,
fica o mistério parado.
Aqui, Glauceste Satúrnio,
morto, ou vivo disfarçado,
deixou de existir no mundo,
em fábula arrebatado,
como árcade ultramarino
em mil amores enleado.

(Cecília Meirelles – O Romanceiro da Inconfidência – Parte 3)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

flaubert/monet


em rouen madame
em rouen madame
ou em paris

a grande arte do lambe-lambe

(oswaldo martins)

bandeira/dias


luzir atlânticos olhos
em versos debruados
sobre a glória

(oswaldo martins)

*


o equilíbrio entre o sequer dizer
em silêncio produz efeitos
de luz no quadro das palavras

(oswaldo martins)

domingo, 22 de julho de 2012

uma mulher encorrilhada

(quase ao modo de joão cabral de melo neto)

uma mulher encorrilhada
difere de uma fruta encorrilhada
uma fruta encorrilhada
tem sabor de velhice

a uma mulher encorrilhada
cabe saber com que mordidas
quer ser comida.

elesbão
22/07/12

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ode aos calhordas


Os calhordas são casados com damas gordas

Que às vezes se entregam à benemerência:

As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas

E cumprem seu dever com muita eficiência


Os filhos dos calhordas vivem muito bem

E fazem tolices que são perdoadas.

Quanto aos calhordas pessoalmente porém

Não fazem tolices — nunca fazem nada.


Quando um calhorda se dirige a mim

Sinto no seu olho certa complacência.

Ele acha que o pobre e o remediado

Devem procurar viver com decência.


Os calhordas às vezes ficam resfriados

E essa notícia logo vem nos jornais:

“O Sr. Calhorda acha-se acamado

E as lamentações da Pátria são gerais.”


Os calhordas não morrem — não morrem jamais

Reservam o bronze para futuros bustos

Que outros calhordas da nova geração

Hão de inaugurar em meio de arbustos.


O calhorda diz: “Eu pessoalmente

Acho que as coisas não vão indo bem

Pois há muita gente má e despeitada

Que não está contente com aquilo que tem.”


Os calhordas recebem muitos telegramas

E manifestações de alegres escolares

Que por este meio vão se acalhordando

E amanhã serão calhordas exemplares.


Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder

E são recebidos pelas Embaixadas.

Gostam muito de missas de ação de graças

E às sextas-feiras comem peixadas


Rubem Braga

Heitor dos Prazeres.

Aniceto do Império Em dia de Alforria

Xangô da Mangueira = Ensaio

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Ajmátova Réquiem Ахматова Реквием Akhmatova

Paul Celan liest Ossip Mandelstam, "Diese Nacht, nicht gutzumachen"

Анна Ахматова - Муза (Anna Akhmatova - The Muse)

gonzaguiana


para horácio e rose

1

um país só se inventa no chiste
na alegria das moças
que requebram ao som de gonzaga

das entranhas retira o fogo sagrado
heidegger o indica em höderlin
ou na coisa desvista

que o poeta prevê


2

um mito do juazeiro ou exu
o fundamento do forró dos forros
abre sua asa branca

sobre o sertão


3

se canta o galo triste

a noite de são joão
multicolorida

uma beleza
de balões no ar

inventa o cangote cheiroso
do lirismo feito de cama

e precipício


4

a boate cosacou
toca xote
o russo dança maxixe

esquecido dos generais
que dançam as marchas

da decapitação


5

a mulher-macho de lua
não se parece nem um pouco com a betty

nem com o louvor
das viragos dos tempos modernos

a mulher-macho de lua
anuncia os novos tempos

de afirmação e festa


6

o nome luí

se em um cabe como lua
se cabe como luva

em outro cabe como lula

no que luí
representa para sua gente


7

a história
não se constrói como fato

se constrói com o que de memória
um povo guarda

se constrói na sanfona de luiz gonzaga
no ita de caymmi
na voz alerta de seus poetas

populares


8

facilita

com essa saia
com essa blusa,

bastiana,

facilita,
para dançar o xenhenhém.


9

você tem que me voltar
dezessete e setecentos

os doutores multiplicandos
incipiandos

doutoram-se em doutorandas
tabuadas

incipientes do saber
governam o mundo

doutores honoris causas
de coisa alguma


10

lorota boa

entre catervas de asnos se meteu,
entre corjas de bestas se aclamou,
naquela salamanca se doutorou,
e nesta salacega floresceu.


só uns risquinhos, seu delegado
pois sou homem dereito

filho de boa família

(oswaldo martins)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

três poetas

1
uma terça de vinho e cordeiros
a deslocarem-se pelas rochas

lua cheia

rosas ensinam bailar as jovens
entre os fios do cabelo
laços de mirtilo

em lesbos tomavam-se pelas mãos
de safo – a poeta

de versos delicados


2
pelas mãos de anna
iósif faz chorar a rússia

o cachorro perdido vaga nas ruas
são escuras – não como um lamento –
as noites de petrogrado

há  uma guerra a enfrentar – sem heróis
a dissolução dos homens é mais triste

que a procissão dos enforcados

3
a voz do poema na neblina é como um farol
– não dos que iluminam a noite dos poetas –
que cava teoria e destruição, acaso em beijing

ou aqui

a voz do poema delibera o pensamento
faz surtir os efeitos das ondas

e a nós os de então balançar ao sopro
violento

como a cor explode nos quadros abstratos
da contenção

(oswaldo martins)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Anna Ahkmatóva


A MULHER DE LOT
Anna Akhmátova

“A mulher de Lot, que o seguia, olhou
para trás e transformou-se numa estátua de sal “
                           Gênesis

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.

Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:

"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".

Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.

E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.

Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?

E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.


Anna Ahkmatova por Amadeo Modigliani




quinta-feira, 5 de julho de 2012

manto



pode um corpo quebrar em ponta de faca
se internas são as construções dos arcanos
fios da mandrágora

tecer devem os esquecimentos com as quinas
insondáveis das palavras
bem aqui

fazer brotar não o fruto não a flor
mas os arabescos indecifráveis
do estupor

desfiar as roupas pô-las a fio
e vestir nas roupas
o desafio

da nudez dos manitôs
a conduzir enigmas
cristalizados

e reconstruir  o universo
abstruso nos vestígios
da pele

se de rato se de rasgo
quê! o mantô
da arte

(oswaldo martins)

terça-feira, 3 de julho de 2012

mulher


Pablo Picasso

para tiago


usufruir

a petição
do rosto

que o azul

essa alegoria
das cores

dissimula

(oswaldo martins)

O garoto nu


Pablo Picasso


para mateus


quando
o quadro do menino nu
foi visto

o riso da francaria
tocou as raias

da estética

(oswaldo martins)

La danza


Pablo Picasso

para bárbara

o fauno e a dançarina
não dançavam

mas a dança
que iludiam

iludia
a menina

destes olhos

(oswaldo martins)