sexta-feira, 30 de maio de 2014

O barco – A aldeia

Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas estou lá – onde seis homens a bordo não veem que somos
[sete.

Assisti á construção de um barco desses, parecia um alaúde enorme sem cordas
Na ravina da pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apupos rufavam contra as chapas
[do veículo.


(Tomas Tranströmer – Tradução Alexandre Pastor)

terça-feira, 27 de maio de 2014

aforismos

1
a bucetinha dela era como o cordel encarnado

2
as trombetas do sono preparam orvalhos de mijo

3
a folha emancipa as árvores; a vulgata, a língua

4
as tragédias visitam a ética; o desastre, a culpa

5
camas só servem se soltas no espaço

6
a sibila das noites insones cumpre apenas os fados

7
a leveza de um haicai perpassa a linguagem como uma seta

8
a música é a trepada dos ouvidos

9
uma taça emborcada é como um corpo sobre outro

10
o mar amniótico é uma invenção dos diabos como o ulisses de Joyce

11
a viagem o único porto que se conhece

sexta-feira, 23 de maio de 2014

por este rio



por que está triste aquele homem a beira do rio
amou demais
respondeu-lhe o barqueiro
e como pode um homem ficar triste pelo amor que devota
talvez tenha amado mais a si
afogam-se muitos por este rio


elesbão ribeiro

poemetos

degas I

se lavam nas bacias
lânguidas das últimas trepadas

com o jarro deixam escorrer
sobre a buceta a água morna

esfregam e fazem descer pelas coxas
a espuma azul das noites incontestes


degas II

de costas o rasgo da bunda
sobre o vermelho da almofada
um paraíso adornado pela composição

dos quadros


verbo intransitivo

de quatro a velha matrona
rebola

do jovem idiota que a
empolga

a mestra dos prazeres
gargalha


cabaret mineiro

havia uma dona
que sorvia a fumaça do cigarro
pela boceta
e a soltava pelo rabo

as gentes vinham de longe
só para vê-las


tradição

entre salvador, são paulo, rio
minas é a puta mais nova
da federação


(oswaldo martins)

A Prima

La cousine

L'hiver a ses plaisirs ; et souvent, le dimanche,
Quand un peu de soleil jaunit la terre blanche,
Avec une cousine on sort se promener...
- Et ne vous faites pas attendre pour dîner,

Dit la mère. Et quand on a bien, aux Tuileries,
Vu sous les arbres noirs les toilettes fleuries,
La jeune fille a froid... et vous fait observer
Que le brouillard du soir commence à se lever.

Et l'on revient, parlant du beau jour qu'on regrette,
Qui s'est passé si vite... et de flamme discrète :
Et l'on sent en rentrant, avec grand appétit,
Du bas de l'escalier, - le dindon qui rôtit.

(Gerard de Nerval)

A Prima

Tem o inverno prazer; e, aos domingos, frequente,
Se à terra branca traz um sol ouro e semente:
Pode-se com uma prima, airosa, ir passear...
- E não vos faça aqui esperar para jantar,

- Diz a mãe. E eis que a ver nas Tulherias, vestidas
De flor e mansidão árvores negras, puídas,
A jovem sente frio... e vos faz perceber
Que o nevoeiro da tarde, aos poucos, vem-se erguer.

Voltamos e, do dia, enfim, só se reclama
Ter se ido tão depressa... e com discreta chama;
Na casa então se sente, entre o apetite e a caça,
Bem debaixo da escada, - o bom peru que assa.

(trad. Mauro Gama)


A Prima

No inverno, quando o frio ataca, suores
Outros do desejo penetram a carne.
A prima, entre os membros da família,
Se destaca.

Há nas tardes, antes que o sol caia,
Certos rubores e comichões antigos
Que os olhares comunicam e o sono
As cabeças cabisbaixam.

Daí à escada, onde os humores do peru
Se enaltece, retira-se a saia e a calcinhola
Para que intentem os primos
O amplo pacto da vara


(oswaldo martins)

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Pilulinha 38

Ratos, de Ronaldo Medeiros e Albuquerque, editado pela 7 letras é um livro que se lê de um fôlego só. Sem interrupção. Se é boa literatura, talvez não, talvez sim. Um misto de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ali se enlaça. Há momentos que vejo um, outros em que vejo outro. A proximidade pode produzir fascínio, mas pode também causar o certo dissabor do já escrito. Às vezes o livro resvala para a piada, sem que o estatuto da própria piada seja aprofundado ou revisto. A rapidez não encanta e corre o risco de desguardar da memória.

Talvez quando Ronaldo Medeiros e Albuquerque se desligar do pastiche venha a se tornar um mestre do gênero, principalmente se insistir nas relações de incesto para além do incesto, isto é, quando o incesto for uma deriva que aponte para a linha que se distancia da letra escrita e alce possibilidades de compreensão dos fracassos a que estão destinados todos os homens.

Entretanto, Ratos é um livro que se lê com prazer.


(oswaldo martins)

tríptico para o rio de janeiro

ipanema

linhas se perdem
no rastro da miséria

o automóvel azul
o fluxo

das carreiras

as narinas dessangram
sobre o ícone

dos jasmins

*
a cidade imperial
americanizou-se
sob o sol dos trópicos

**

centro

o anjo dos gorós
é uma relíquia
nos nichos da cidade

*

o porto via prostitutas bonitas

a trepada sob os viadutos
que proibiram

**

madureira ressurge
como um infinito
de linhas férreas

*

no viaduto
ainda se desce
até o chão


(oswaldo martins)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Pilulinha 34

A leitura de Mayombe, romance de Pepetela, publicado pela Editora Leya, em 2013, é um livro que se lê agradavelmente. Entretanto, não é um obra que permita grandes ilações estéticas, como toda literatura de fundo realista. As experiências narradas ao longo do livro possuem desfechos mais ou menos pré-sabidos. É como se estivéssemos lendo o vigésimo livro de Jorge Amado e suas intermináveis personagens femininas.

Ondina, a personagem emblemática da revolução, o MPLA, o heroísmo dos guerrilheiros, tudo convoca o leitor a observar de maneira direta o que a literatura dos anos 30/40 fez no Brasil, e que certa literatura, que se quer um misto de memória e realismo tenta fazer hoje no momento em que as feridas do golpe militar dos anos 60 voltam a ser abertas. As experiências da tortura, o desmanche das estruturas mentais, o rasgo aberto nos corpos da sociedade ainda não tiveram seu interprete nem se aperceberam totalmente da força destruidora que dominou e domina os alicerces da cultura. Apenas raros escritores perceberam de fato a deriva que aponta para um tipo muito específico de luta pelas liberdades e que incluem – em combate – as vozes diferenciadas que forma o tecido social.

Não é grande literatura; o livro de Pepetela permite que certo leitor se compraza consigo mesmo e com o gigantismo do heroísmo evocado pelas reminiscências do narrador. Em tempos obscuros, nos quais se busca o experimentalismo a toda prova, Mayombe, com seu nacionalismo, com as questões que coloca, tendo como centro das discussões o dirigismo, acaba funcionando como uma válvula de escape para aqueles que escrevem e pensam – ainda – num nacionalismo tão difuso e folclórico, que implica numa percepção rasteira da história e das tradições de seus países.

O pior, entretanto, não é o livro de Pepetela, mas a crença difundida aqui e ali, nas escolas e nas mídias formadoras de leitura, de que este é o caminho mais profícuo – e também o mais fácil –  para se formarem leitores.


(oswaldo martins)

domingo, 4 de maio de 2014

demócrito de abdera


de todas as coisas os átomos e o vazio
em que se encerra a descarga letal do amor

o mundo queda ali na mobilidade inerte
dos corpos minúscula atração do phatos

a ética trágica dos desejos e a insalubre
vocação para o desastre que se se abateu

sobre as cidades

(oswaldo martins)