Ao ser convidado para participar desta mesa, cujo tema é o itinerário de um retirante: a literatura nordestina dos anos 30, decidi por traçar um pequeno desvio. Sabendo que a literatura de trinta, especialmente a nordestina, se preocupa em criar condições para que se pudesse melhor entender a história do país e, desta história, a constituição de sua economia, parece-me lógico nela perceber uma imediaticidade realista. Daí a necessidade de questionar brevemente o significado e os conteúdos de uma obra realista.
Para tal, cito duas passagens retiradas de um texto de Luiz Costa Lima, o segundo capítulo do livro A metamorfose do silêncio. Vamos, então, à primeira:
“Quando as pessoas não se querem entender, se perguntam sobre o significado das palavras. Concebida usualmente como sistema de comunicação, a linguagem é antes veículo de enganos. Ao conjunto dos mesmos chamamos senso comum. Nem por isso, é verdade, ela deixa de comunicar: também o engano é comunicativo, mais ainda se conta com o apoio da opinião generalizada”. (Costa Lima, Luiz. Realismo e Literatura in Metamorfose do Silêncio. Livraria Eldorado. RJ. 1974)
A segunda passagem diz o seguinte:
“... o realismo é um destes emplastros por onde fluem tranqüilos analistas, críticos e historiadores da literatura. Socorremo-nos, no máximo, de adjetivos e compomos expressões do tipo alto/baixo realismo, realismo fantástico, crítico, alegórico ou cósmico. As expressões cunhadas então parecem driblar o vazio, como se o adjetivo pudesse cobrir o equívoco do nome.” (Idem)
Das duas passagens selecionadas, alguns aspectos interessam-me. A consideração de que a linguagem do senso comum não permite uma reflexão sobre a própria linguagem, pois tal reflexão a tornaria incapaz de cumprir sua eficácia comunicativa, corresponde o seu contrário: a linguagem que não se aplica ao cotidiano, por não se referir a uma troca efetiva com algum interlocutor, abre um determinado espaço no qual sua função específica deve cumprir-se. O que cumpre tal linguagem, deslocada de seu espaço originário, é necessariamente a reflexão. Provocar, pois, a reflexão seria sua tarefa. Quanto mais a obra se afasta do desejo comunicativo mais a linguagem forja brechas para a necessidade de reconfigurar o mundo, para a necessidade de repensar o mundo e o que sobre ele, via comunicação, deu lugar às certezas não matizáveis do senso comum.
A esta linguagem pertencem não só a linguagem ficcional como a linguagem da sociologia, da historiografia, da ciência. Todas elas não se apresentam a partir da necessidade comunicativa. A historiografia, a sociologia, enfim, o saber produzido pelo mundo, depende do domínio de um repertório significativo sobre o qual se possa debruçar e apreender como sentido. Todas, em menor ou maior grau, são ficções.
Como ficções, entretanto, têm caráter diverso e se separam umas das outras por diversas necessidades, e muito embora todas tenham a preocupação de criar determinados modelos interpretativos sobre o mundo, assim o fazem para esconder a fraude do ficcional, isto é, para apagar o estatuto da linguagem deslocada do senso comum. Delas a linguagem literária se desloca, pois o seu próprio estatuto é assumir-se enquanto fraude. O pacto que leitor e obra se fazem é necessariamente presidido por esta fraude.
O conceito realismo, ao procurar esconder esta fraude, dá à obra ficcional uma característica que apaga o percurso de sua própria constituição, por isso o cair no vazio, o transformar a literatura em documento, isto é, o transformar a literatura no que ela não é.
A partir desta reflexão, podemos verificar que tanto algumas obras da literatura de trinta quanto os que sobre elas se debruçaram incorrem num engano. O de tomar a obra como espelho, como apagamento da intermediação ficcional, ao propor que – por exemplo – no ciclo da cana de açúcar, escrito por Zé Lins do Rego, veja-se a caracterização do país, de sua cordialidade, de sua identidade como nação. Este discurso não nasce de dentro da reflexão literária, mas da obra de Gilberto Freyre, isto é, é um reflexo, uma reduplicação das considerações do sociólogo. Sua recepção, por outro lado, acentua esta reduplicação como qualidade e assim a propõe como sistema.
Linha auxiliar dos vários discursos que sustentam a identidade da nação – sob a égide da literatura de trinta foi o discurso sociológico e econômico que comandaram a festa – a literatura brasileira, ao longo do tempo, vai estar marcada por esta necessidade de validação, pois, pouco afeitos à indagação da linguagem, nos contentamos em ter a literatura como auxiliar que dissemina e valida os outros saberes.
(oswaldo martins)
Para tal, cito duas passagens retiradas de um texto de Luiz Costa Lima, o segundo capítulo do livro A metamorfose do silêncio. Vamos, então, à primeira:
“Quando as pessoas não se querem entender, se perguntam sobre o significado das palavras. Concebida usualmente como sistema de comunicação, a linguagem é antes veículo de enganos. Ao conjunto dos mesmos chamamos senso comum. Nem por isso, é verdade, ela deixa de comunicar: também o engano é comunicativo, mais ainda se conta com o apoio da opinião generalizada”. (Costa Lima, Luiz. Realismo e Literatura in Metamorfose do Silêncio. Livraria Eldorado. RJ. 1974)
A segunda passagem diz o seguinte:
“... o realismo é um destes emplastros por onde fluem tranqüilos analistas, críticos e historiadores da literatura. Socorremo-nos, no máximo, de adjetivos e compomos expressões do tipo alto/baixo realismo, realismo fantástico, crítico, alegórico ou cósmico. As expressões cunhadas então parecem driblar o vazio, como se o adjetivo pudesse cobrir o equívoco do nome.” (Idem)
Das duas passagens selecionadas, alguns aspectos interessam-me. A consideração de que a linguagem do senso comum não permite uma reflexão sobre a própria linguagem, pois tal reflexão a tornaria incapaz de cumprir sua eficácia comunicativa, corresponde o seu contrário: a linguagem que não se aplica ao cotidiano, por não se referir a uma troca efetiva com algum interlocutor, abre um determinado espaço no qual sua função específica deve cumprir-se. O que cumpre tal linguagem, deslocada de seu espaço originário, é necessariamente a reflexão. Provocar, pois, a reflexão seria sua tarefa. Quanto mais a obra se afasta do desejo comunicativo mais a linguagem forja brechas para a necessidade de reconfigurar o mundo, para a necessidade de repensar o mundo e o que sobre ele, via comunicação, deu lugar às certezas não matizáveis do senso comum.
A esta linguagem pertencem não só a linguagem ficcional como a linguagem da sociologia, da historiografia, da ciência. Todas elas não se apresentam a partir da necessidade comunicativa. A historiografia, a sociologia, enfim, o saber produzido pelo mundo, depende do domínio de um repertório significativo sobre o qual se possa debruçar e apreender como sentido. Todas, em menor ou maior grau, são ficções.
Como ficções, entretanto, têm caráter diverso e se separam umas das outras por diversas necessidades, e muito embora todas tenham a preocupação de criar determinados modelos interpretativos sobre o mundo, assim o fazem para esconder a fraude do ficcional, isto é, para apagar o estatuto da linguagem deslocada do senso comum. Delas a linguagem literária se desloca, pois o seu próprio estatuto é assumir-se enquanto fraude. O pacto que leitor e obra se fazem é necessariamente presidido por esta fraude.
O conceito realismo, ao procurar esconder esta fraude, dá à obra ficcional uma característica que apaga o percurso de sua própria constituição, por isso o cair no vazio, o transformar a literatura em documento, isto é, o transformar a literatura no que ela não é.
A partir desta reflexão, podemos verificar que tanto algumas obras da literatura de trinta quanto os que sobre elas se debruçaram incorrem num engano. O de tomar a obra como espelho, como apagamento da intermediação ficcional, ao propor que – por exemplo – no ciclo da cana de açúcar, escrito por Zé Lins do Rego, veja-se a caracterização do país, de sua cordialidade, de sua identidade como nação. Este discurso não nasce de dentro da reflexão literária, mas da obra de Gilberto Freyre, isto é, é um reflexo, uma reduplicação das considerações do sociólogo. Sua recepção, por outro lado, acentua esta reduplicação como qualidade e assim a propõe como sistema.
Linha auxiliar dos vários discursos que sustentam a identidade da nação – sob a égide da literatura de trinta foi o discurso sociológico e econômico que comandaram a festa – a literatura brasileira, ao longo do tempo, vai estar marcada por esta necessidade de validação, pois, pouco afeitos à indagação da linguagem, nos contentamos em ter a literatura como auxiliar que dissemina e valida os outros saberes.
(oswaldo martins)
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