sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Campo de flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.



(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

monumento à poesia

poucas são as moças
em tempos bicudos
de moralismo e nojo
que se põem a cavaleiro
da poesia

quem mais ousa
o poeta de costas
para o mar
quem mais ousa
a moça que o enlaça
nas coxas

por mim se um dia
estátua preferiria
que a moça sobre os ombros
voltasse às montanhas
as costas
e me escancarasse o mar


(oswaldo martins)

"2 variações do mesmo rio":

I

dos nós de nosso contexto,
textos são feitos diversos.
de muitos fios que se tecem,
no conforme de portar
os ciclos, e suas voltas,
por dentro de vias e vaus.
e seguimos, por cuidado,
em turnos e tubos, mas
só comemos o coturno
dos dias. do singular
agudo de um rio vivo --
natural -- embarco o rio;
não medido pelo fundo,
nem pelo estanque das margens.

II

um rio, são rios de água vária,
que na avaria do terreno encontra
percurso. um rio tem muitos caminhos,
que em si deságua pedra, queda bruta.
que não por navegar, mas de ser levado
a beber dele -- o remoinho -- um rio
que corre sem córrego, natural
da força donde se cria a si, sem
freio -- puro dínamo de ser rio
corrente, uma usina de não caber
em comportas -- não se estagna em remanso.
nos damos muito próximos à dança
mobilizados ao tremor dos dias.
brandos, somos dois; somos como bandos.

(André Capilé)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Poesia mexicana

TÚ NO MERECES MEJOR POETA

X

La única venganza
que encontramos los poetas
contra las amadas esquivas
es escribirles versos malos.
                                                                 
(Dante Medina)

TU NÃO MERECES POETA MELHOR

X

A única vingança
que nós poetas encontramos
contra as amadas esquivas
é dedicar-lhes versos ruins.


(trad. Antonio Miranda)

domingo, 14 de fevereiro de 2016

fragmentos para uma poética

1

a realidade é um mero acaso, dela só nos aproximamos quando a construímos, por isso ela é intransferível.

2

as palavras com as quais os homens se ao mundo são pretensas e nada dizem do que se quer dizer.

3

a melancolia pode ser uma forma possível de ver; a euforia também: a única forma de ver é desver. o mundo visto do sovaco.

4

uma perna diz tanto do andarilho quanto um poema do seu criador, i. é, nada.

5

uma borboleta pode não ser uma borboleta; o cão um objeto contra a vontade do próprio cão.

6

eu – o colecionador de cabeças.

7

as cabeças do alheio – uma forma de pensar o eu

8

os franceses inventaram um eufemismo que nos esconde – a pequena morte é uma visão religiosa do sexo

9

minimalhas
do alheio

ou

a iluminação
do imenso

10

os nus de modigliani são mais reais
que a buceta de coubert

(oswaldo martins)


Egon-Schiele





sábado, 13 de fevereiro de 2016

beleza

dizia kant que a beleza,
ora,

se faz à superfície da pele
e que o abismo do sublime

eram águas revolutas
dos quadris

porque creio em tua boniteza,
digo que kant estava certo,

embora no seu pequeno burgo
não entendesse

que a beleza é um tufão
moreno

que aninha a alma
dos boêmios


da lucidez

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

vermelho, nu, modigliani, mas não só

pixa
amor

pixa
no muro

in

de rastro
o amor

pixaim

(oswaldo martins)






Três caminhos

Inferno - Canto 1

Dante Alighieri

Nel mezzo del cammin di nostra vita    
mi ritrovai per una selva oscura           
ché la diritta via era smarrita.   

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura  
esta selva selvaggia e aspra e forte

che nel pensier rinova la paura!


Nel mezzo del camim...

Olavo Bilac
  
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.


No meio do caminho

Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
  
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Posfácio de Silviano Santiago para o manto


                O poema de Oswaldo Martins não está lá na página para ser lido. Ele padece de afasia acústica. Está escrito e exposto no livro Manto menos para ser lido e mais para ser visto.
                Ouvir a cadência das letras faz parte da vida cotidiana comunitária. Ouvi-las e as reconhecer no modo como, pelo sopro fonético, elas se combinam e se articulam de maneira popular ou convencional, de maneira arbitrária ou estética, em palavras, legitimando – ou apenas sabotando aqui e ali, com luvas de pelica − o todo-poderoso dicionário e a gramática normativa. Em poesia, a métrica, a rima e às vezes a forma fixa corroboram as delicadezas do bem azeitado labirinto auricular letrado e canônico, que se revela muito, pouco ou em nada sutil (cada caso é um caso).
O poema de Oswaldo não bate continência à tradição poética auricular, ou falada. Nem a despreza completamente. Em seu lugar, ele instaura a pedra-de-toque da “desmesura”, que diz não! a tudo que, ditatorialmente, exige a leitura em linha reta e em crescimento progressivo. [1] O poema de Oswaldo não reconhece métricas que encadeiam sons ad infinitum. Padece de afasia acústica. Requer ser visto aos cacos. Por estarem encarcerados por detrás dos interstícios de dentes falhos da grade de cárcere, os cacos devem ser pinçados e recompostos pelo exercício dos olhos de leitor no momento em que o próprio texto nega − à cadência retilínea das letras e ao único reconhecimento das palavras pelo ouvido − o funcionamento cotidiano e histórico, artístico e autoritário da língua escorreita, dita nacional.
Os cacos que se escrevem nas falhas do poema se apresentam para serem recompostos e apreciados pelo leitor em semelhança e harmonia ao espetáculo oferecido pelas assemblagens (vocábulo que serve de título ao mais radical de todos os poemas de Manto) dos artistas plásticos. Se apenas lido, o poema de Oswaldo estará sempre descarrilando pelos trilhos do labirinto auricular, causando uma barulheira infernal. Pergunta-se: estes versos iniciais (“o albatroz o manco o abanico as horas / não dia noite tarde tempo o outrossim”) serão fala? Lá estão na página de Manto para ser lidos? Não! lá estão para ser vistos.
                Em se tratando do longo e insano trabalho de compreensão da linguagem humana pela filosofia ocidental, não é arbitrária embora seja judiciosa e inadiável a recente desarticulação operada pela ascendência da visão (a escrita) sobre o ouvido em cadência e ritmo temporal (a fala).
Jacques Derrida fincou os pés na desconstrução do fonocentrismo linguístico, cujas pegadas nos foram legadas por Platão e aprimoradas por, entre outros e muitos contemporâneos, Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss e Jacques Lacan. Antes de se apresentar como mera inversão de valores, ou seja, uma teologia às avessas, a desconstrução derridiana dramatiza um modo de convivência de posturas e valores opostos (fala/escrita) em que o sujeito transgride e enfraquece a hierarquia em posse do cânone (a fala) para hipotecar esperança na pesquisa (a escrita). O futuro pertence à linguagem poética des/articulada como poetou Herberto Helder: “Movem-se margens / Fundações afundam-se / Mundo. / Não mundo / só o amálgama”. Pertence, ainda, à linguagem dos interstícios como postulou Aby Warburg no seu Atlas Mnemosyne. Pertence finalmente ao espaçamento como alertou premonitoriamente Stephanne Mallarmé nos idos do século 19.
                A frase – para abandonar as letras e as palavras do parágrafo inicial e retomar o raciocínio da tradição linguageira pelo viés amplo da organização sintática em oração – sempre foi composta pelo ouvido de maneira a estabelecer a hierarquia formal entre os elementos, hierarquia montada em consonância com o sentido (ou com o fluir) do tempo. [2] A vontade suprema da frase – também chamada et pour cause de oração[3] é a de ordenar o convívio humano pelas regras da sociabilidade coercitiva e divina, relegando ao segundo plano o papel da escrita, mais exposta aos reclamos da democracia e do humano demasiadamente humano anarquismo, e que nos leva a acreditar que podemos nos entender sem as irremovíveis constrições temporais, pré-determinadas pelo encadeamento fonético.
                A razão (também chamada de clareza ou de casticismo pelos manuais de estilo) dita a cadência na corrida dos cem metros com barreiras da frase, que se inicia pelo sujeito, fazendo-o suceder pelo verbo que ele comanda e os poucos ou muitos complementos com que pinta as circunstâncias. A desconstrução do fonocentrismo se faz acompanhar da desconstrução do logocentrismo.
                O poema de Oswaldo se escreve para que a frase, ao se descentrar, se abra à vista do leitor como espetáculo em palavras e em sintagmas soltos. Dilate-se e se equacione [4] em filigranas. O poema deixa a descoberto suas ramificações secretas, como pranchas botânicas dispostas em papel, onde se dissecam em epigramas a folha, a flor ou o fruto. O poema “o estandarte da sensatez” diz: “a arte como se faz retalhar o mundo e surgir um outro // em seu lugar”.
                Por o poema de Oswaldo Martins estar preocupado em desconstruir o império da razão, da clareza e do casticismo que é imposto aos súditos pela obediência às regras fonéticas e à norma culta, autenticadas pela língua nacional, ele questiona em radicalidade não só o centramento repressor da phonè como também o centramento excludente do logos. A escrita liberta as palavras do recalque fonético imposto pela fala para que se as leia nos dentes falhos da (chamada) loucura humana. Desconstrói-se a armadilha [5] operada pela razão imperiosa e também, no caso do artista, pecuniária.
                                                                              •   •   •
                Inscrita num dos mantos (22 de dezembro de 1938), a frase de Arthur Bispo do Rosário que serve de epígrafe a Manto, de Oswaldo Martins, não escreve lição diferente da que este posfácio vem afirmando:
Eu preciso destas palavras – escrita.
                Gloso Arthur Bispo. Sou aquele que a comunidade de doutos julga louco e, por isso, estou encarcerado no hospício, onde moro. Não falo as palavras de que necessito, escrevo as de que preciso para a minha proteção, sobrevivência e salvação. Leitor meu, não as enuncie fonetica e equivocadamente; veja-as pelas des/articulações mobilizadoras da atenção, rearticulando-as pela leitura dos olhos. Sou um artista plástico das letras, das palavras, da escrita. Tudo em mim, para mim, por mim e para todos é assemblagem. Cacos que ganham corpo próprio e autossuficiente, escrita e identidade libertária.
                                                                                   •   •   •
                Oswaldo Martins sabe que há que dar de presente à linguagem (da poesia) a liberdade que só os destituídos – ou seja, os desprovidos daquilo que vulgar e eruditamente se chama de razão, clareza e casticismo − conquistam no recolhimento diante das asperezas do mundo, dos homens e dos ditadores de normas.  Estou citando e acentuando, claro, os adjetivos livre e tortos neste verso: “A vida livre dos homens tortos” (“da cidade 2”). Os destituídos são providencialmente (?) recolhidos (vale dizer: excluídos, afastados, retraídos, encobertos, abrigados, encarcerados em Colônia... – que rica e desconhecida é a polissemia do repúdio social providenciado pela razão). Os destituídos/recolhidos são os tortos-livres do mundo. Na divisão em partes do social, do político, do econômico, etc., os destituídos/recolhidos são, no entanto, os que, apesar da queixa pelo alto custo e pelos grandes gastos que acarretam à comunidade, ficam sempre com a pior parte. Em falta.
                Destituído e recolhido em Colônia, Arthur Bispo tece e borda o próprio manto que na verdade deve ser o único a recobri-lo de modo autêntico (no tempo da vida) e a protegê-lo de modo duradouro (na eternidade do labor artístico), pois é ele que o apronta – prepara, aparelha, maquina − para o Juízo Final. O livro de Oswaldo Martins dramatiza o acerto de contas do tempo e da eternidade com o homem. O manto de Arthur Bispo se metamorfoseia em Manto, tecido e bordado em cacos de frase que brilham para que também sejam vistos quando recobrem postumamente as figurações e as palavras do artista. Leia-se o poema “barbante”:
palavras de avaras possibilidades e desconexas
patas a roer o mundo que arthur quis em direta
descomunhão de uma sintaxe visgo do silêncio.
               
                Não há que ser generoso com os destituídos. Não os sentimentalizemos. Não há que escutar os recolhidos, aprendamos. Os destituídos/recolhidos não esperam dos pares a mera escuta ou a esmola. Nós já sabemos, distanciemo-nos, pois, dos catecismos de variada espécie.
                Eles aguardam um poema, aquele que faça justiça não só ao recolhimento tornado libertário pela escrita do ser humano, artista no recinto da Colônia Juliano Moreira, como também ao prazer do corpo que, destituído e recolhido, procura ser visto e ser admirado pelo seu labor artístico, e não apenas escutado pelos lamentos ou pelos gritos da dor. Oswaldo Martins estampa seus poemas na página em branco como Arthur Bispo do Rosário ostenta suas obras no espaço de recolhimento em que obrigaram o sergipano a sobreviver no Rio de Janeiro.
                                                                               •   •   •
                Não é por querer ser contemporâneo dos investimentos tecnológicos na arte ou por ser sensível ao modismo dos estilos de época atuais (a referendar o uso de imagem em obra escrita), que o poema de Oswaldo Martins requer ser mais visto que lido.
                Em Manto, não há foto, fotograma, desenho ou reprodução de quadro ou objeto artístico, não há arabesco, calligramme (à la Appolinaire) ou  ideograma (à la Fenollosa/Pound). O livro não se parece com os dos poetas concretos ou neoconcretos nem se assemelha aos dos contemporâneos de Manto, como os do poeta e cantor Arnaldo Antunes. O poema de Oswaldo nem mesmo está sintonizado com as modernas ondas hertzianas. Sua eletricidade é abscôndita, a da descarga infalível de raios e de emoções na página em branco. Sua vanguarda é a da palavra escrita e é outra, como estamos tentando provar.
                Seu poema estaria mais sintonizado – já que o tópico é a intercomunicação entre pares − com alguns de João Cabral de Melo Neto que seriam configurados formalmente pela estética da falta – da falta de água no Nordeste natal. Poemas da terra, poemas configurados formalmente pela estética da seca, da fome, da miséria. (Pela estética dos dentes falhos de Arthur Bispo.)  Representativo da série de poemas a que estamos nos referindo pode ser “Rios sem discurso”, que se encontra em A educação pela pedra.
                Citemos João Cabral: “Em situação de poço, a água equivale / a uma palavra em situação dicionária; / isolada, estanque no poço dela mesma / [...] porque assim estancada, muda, / e muda, porque com nenhuma comunica, / porque cortou-se a sintaxe desse rio, / o fio de água por que ele discorria”.
                Sem a generosidade da água que brotaria na nascente e jorraria desde a nascente, o rio se desenvolve parado, em poças/poços pela planície árida. As poças/poços se cristalizam em recolhimento pelo sol inclemente e se assemelham a uma palavra solta no dicionário ou a sintagmas perdidos por causa da interrupção abrupta do discurso, tornando-se desprovidos do caudal fluido e sintático de água que a tudo entrelaçaria e rebentaria e daria ritmo, conduzindo até o mar, que é a morte, como aclara o célebre poema renascentista de Jorge Manrique.
                Mas na planície do sertão, as imagens cadavéricas de animais e de humanos − a imagem solitária da morte (até mesmo a causada pela putrefação pantanosa de O cão sem plumas) já está na falta de correnteza, na estagnação. A morte não é – como nos poemas da razão − consequência do fluir natural da água, do rio, da vida.  [6] Animais e humanos são seres desprovidos de movimento que serão recolhidos pela própria casa, como no poema “Cemitério paraibano”: “Uma casa é o cemitério / dos mortos deste lugar”. Ou recolhidos pela canoa de Guimarães Rosa que, graças à força diuturna dos braços de remador, permanece contra-a-corrente na terceira margem do rio. Ou recolhidos pela própria Colônia Juliano Moreira.
                No poema de Oswaldo, cada palavra é também “visgo do silêncio” e, por isso, muda e para os olhos. Na falta da correnteza do discurso no poema, cada agrupamento de palavras em sintagma solto é poça. É poço de profundidade desconhecida e misteriosa. E sobrenatural. “É muito fundo o poço do passado”, nos alertou Thomas Mann diante de outra escrita poderosa, a de José e seus irmãos. Em mantos de Arthur Bispo e no Manto de Oswaldo, cada palavra/sintagma/imagem, cada concreção/poça/poço é também – sem ser necessariamente figurativa − uma representação do humano. É um enigma, a que tememos e ousamos qualificar de humano e poético porque sua ressonância – por não ser discursiva − padece de afasia auricular embora ganhe – até mesmo no desprezo do poeta Oswaldo pela grafia espetacular de letras em maiúscula − os ares litúrgicos de Escritura Santa. Escrituras em mantos. Arthur Bispo e Oswaldo.
                O enigma humano e poético se manifesta por um labirinto que não se esparrama horizontalmente pela página em branco. Ele se esparrama em verticalidade e suspensão, em fendas e em suspense, ele se infiltra no amplíssimo espaço da história carioca e da vida dos destituídos pela broca da palavra/poça e do sintagma/poço. Para não se putrefazer, ele se desorganiza organicamente em “assemblagens”.
                                                                                   •   •   •
                Como não há estória a investigar ou a decifrar, como não há trama a levantar, [7] não são os poemas na sua integridade, serão as imagens na sua parcialidade emblemática que reganharão o palco da página – do seu caderno de notas, por exemplo, caro leitor – a fim de que, perfilhadas pelo juízo crítico na pia batismal do vosso gosto e prazer estético, possam explicitar o que é (e existe e significa) e o que não é (e não existe e não significa) no universo dos mantos de Arthur Bispo do Rosário e do Manto de Oswaldo Martins.
                Não selecionaremos algumas imagens. Pediremos a todo e qualquer leitor que as escolha e as apresente em listagem − aqui, ao final da leitura, como este posfácio. Lidas e relidas em recolhimento, à semelhança do recolhimento criativo de Arthur Bispo na Colônia ou do encolhimento poético de Oswaldo em Laranjeiras, que essas imagens sejam matéria de muito sentir e muito sofrer, de muito apropriar e muito alegrar-se, de muito imaginar e muito afirmar, sejam matéria de muito refletir.
                A listagem de imagens desmesuradas e sua leitura desregrada terão algo de uma bela sequência cinematográfica da loucura (do amor). Essa sequência paralela não está nos mantos nem em Manto, está para ser (re)vista no Google. Refiro-me ao final do filme A dama de Shangai. Refiro-me à sala de espelhos, Hall of mirrors, onde, às vésperas do beijo, se refletem Rita Hayworth e Orson Welles, perseguidos pelo marido ciumento. Há revólveres, tiros e vidro espatifado pelo chão.
                Refiro-me também e finalmente aos triangulares, especulares, circulares, mirabolantes, mágicos e perturbadores da ordem qs de Oswaldo. Estes: “anquê do inquê / q desdiz qs // do dês de dizer / é”. Ou estes: “revoam os qs dos ratos / num sibilar constante / sem tempo ou espaço”.  E ainda: “o céu aberto deste quê”.
                               Cacos de vidro no fundo de minha casa
                               são para construir muros
– escreve um aforismo afiado, a evocar tanto os muros intransponíveis (transponíveis só por ordem superior) da Colônia Juliano Moreira quanto os muros da leitura que perfilam, contra o horizonte da poesia brasileira atual, o artista plástico Arthur, o poeta Oswaldo e os seus atrevidos leitores. Nós. Tudo que ontem foi lido como espelho, hoje é visto como caco de vidro.




[1] Cf. : “a métrica da ordem  / a métrica da régua / a métrica da fita // o carretel o novelo / o dedal e a tesoura / o plano da obra // não! // o casaco a blusa a calça / o pijama de prisioneiro / a nudez // o vestido madeiro / a madeira e a lata / e seu dente falho ”.
[2] “La Phrase est hiérarchique: elle implique des sujétions, des subordinaions, des rections internes. De là son achèvement : comment une hiérarchie pourrait-elle rester ouverte ?”. Roland Barthes, Le plaisir du texte.
[3] Por a figura homenageada pelo poeta ser um profeta, um místico em estado selvagem, note-se que mesmo a “oração” será desconstruída. Leia-se o poema “igreja” e nele o final: “a terra permite no invólucro leve // o eu”. Leia-se ainda a série “anjo”.
[4] “o azul é para o céu / o que a equação é para o ócio”, do poema “Aforismos”.
[5] Segundo Antonin Artaud, a loucura é um “coup monté” (uma armadilha) em mãos dos psicanalistas e dos mercadores de obras de arte.
[6] Leia-se de Cabral estes versos de O rio: “A um rio sempre espera / um mais vasto e ancho mar. / Para a gente que desce / é que nem sempre existe esse mar, / pois eles não encontram / na cidade que imaginavam mar /senão outro deserto / de pântanos perto do mar”.
[7] Para informações sobre a vida do artista, consultar Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto, de Luciana Hidalgo (Rio de Janeiro: Rocco, 2011).

Pela TextoTerritório, a segunda edição do lucidez do oco


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

jornalismo

1
os dois barbudos
foram vistos juntos
em convescote

2
sob as ordens de deus
do papai e da mamãe

3
embora nas oropas
frança victor hugo
e bahia

4
embora nos sertões
de surrão chinelas
e toco de pedra

5
os dois barbudos
foram vistos juntos
em argentinos piqueniques

6
os dois em patranhas,
ora se


(oswaldo martins)