sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um Poema de Lúcia Leão


culinária cósmica

a máquina de moer tempo
moeu todos
os meus retalhos

confesso ter imaginado
ser preciso, demorado
mas o tempo foi muito rápido

pois já tudo havia sido cortado
sem molduras ou traçados, minhas vidas
emboladas em pó se empilhavam

de onde veio a máquina eu não sei
disseram depois que era herança
mas eu acho que foi um hacker

há muitos deles por aí
surfando por todos os lados

confesso ter considerado
a possibilidade de fraude
no selo de validade 

confesso ter implorado
para que tudo tivesse sido mentira,
um truque, inventado

mas a máquina de moer tempo
tinha mais de uma velocidade
e por mais que eu tentasse

ela moeu também
até de mim a saudade.

(Lúcia Leão)

Pelo orgasmo a explicação do mundo: o erotismo político de Oswaldo Martins


Larissa Andrioli*

Um texto, independente de seu conteúdo, é sempre um fato cultural. Portanto, depende da época, dos valores, do escritor, dos grupos sociais, da cultura em que foi elaborado. Assim, era de se esperar que uma sociedade que a cada dia tenta se mostrar mais liberal, que leva ao ar programas de TV de cunho sensual em horário nobre e invade cada vez mais a vida privada do ser humano recebesse um livro de poemas eróticos de forma não necessariamente natural, mas no mínimo crítica.  Era de se esperar que o público o recebesse como recebe qualquer outro livro, e em torno dele girassem discussões como as que giram em torno de Saramago, Tezza, Ruffato ou qualquer outro escritor, ou seja, que problematizasse o texto publicado sem rebaixá-lo antes de se aprofundar nele. Certo? Não. Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após publicar  Cosmologia do impreciso (2008), seu quarto livro, e ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque, onde trabalhava, para falar na sala de aula sobre o trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico pornográfico.1

A representação erótica é muitas vezes colocada no nível das coisas nãos érias, das manifestações imorais, uma espécie de piada infame que se conta escondido, da qual todos riem disfarçadamente e classificam de “humor negro” ou politicamente incorreto – o que traduz os pensamentos de boa parte da sociedade.
                                              
[i]Da mesma forma, o sexo é sempre negado: o prazer é sujo, é baixo, carnal (“Não me arrependo do pecado triste / que sujou minha carne, suja toda carne”, já dizia Drummond) – e, portanto, deve ser rechaçado e superado. Entretanto, um detalhe é esquecido: o sexo é universal e indispensável. Extrapolando o discurso religioso de que
o sexo é necessário para a procriação, é possível dizer que, mais que instrumento de procriação e preservação da espécie, ele é, antes de tudo, necessário para viver.

Para suprir essa necessidade, não bastam as cenas eróticas que aparecem nas novelas: a orientação do prazer (a representação erótica prevista pelo discurso de autoridade, ou seja, aquela representação autorizada e legitimada que vai ao ar em filmes, novelas, etc.) não só limita e anula o prazer, como também favorece a preservação de preconceitos correntes na sociedade. A necessidade de controlar o sexo (e daí a orientação do prazer) está ligada à sociedade do trabalho. Um corpo guiado pelo prazer nunca se volta ao trabalho alienado e à produção, que embasam a sociedade em que vivemos. O prazer guia, sim, a um trabalho – mas ao trabalho criativo, e não ao produtivo:

A reativação da sexualidade polimórfica e narcisista deixa de ser uma ameaça à cultura e pode levar, ela própria, à criação cultural, se o organismo existir não como um instrumento de trabalho alienado, mas como um sujeito de auto-realização – por outras palavras, se o trabalho socialmente útil for, ao mesmo tempo, a transparente satisfação de uma necessidade individual (Marcuse: 1975, 183).

Entretanto, à medida que a sexualidade é organizada e controlada, a fantasia afirma-se, principalmente, contra a sexualidade normal, ou seja, se manifesta no campo das perversões: As formas inumanas, compulsivas, coercitivas e destrutivas dessas perversões parecem estar associadas à perversão geral da existência humana em uma cultura repressiva, mas as perversões têm uma substância instintiva distinta  dessa formas; e essa substância pode perfeitamente expressar-se em outras formas compatíveis com a moralidade na civilização de elevado grau (Marcuse: 1975, 178).3

É possível que, numa organização sexual menos repressiva, a libertação de Eros possa criar novas e duradouras relações de trabalho. Tudo isso para dizer que Cosmologia do impreciso  é uma leitura essencial: combate a separação entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado pelo passo à frente, pela afirmação de algo fora de circulação. É o que acontece, por exemplo, no poema “lições oswaldianas”. As ideias do poema “Erro de português”, de Oswald de Andrade, que pode ser visto abaixo,

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português (Andrade: 2003).

reaparecem no poema de Oswaldo Martins:

as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá (Martins: 2008, 34).

A partir da leitura do poema de Oswald, Oswaldo Martins cria sua tese de liberdade através da nudez, e é nesse poema que se encontra uma ideia essencial para a compreensão de  Cosmologia do impreciso: “a celebração do corpo e do espírito”. Pois é disto que trata a poesia de Oswaldo: celebração. E, a partir da celebração de algo reprimido na sociedade, transgride e busca a libertação. A epígrafe geral do livro fala desse par: “a boca é vinho tinto / as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer”  – tais versos de Aldir Blanc misturam elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o elemento sublime, puro (por nascer). Mais que mistura, unem no mesmo 4 corpo e tornam, então, o corpo e o espírito inseparáveis e indistinguíveis: na medida em que os elementos se confundem, é impossível dizer o que é ou não profano, e a polaridade se dissolve: a carne, símbolo do profano, assume tom sagrado e o espírito torna-se profano.

Se já é impossível ler um livro de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Mais uma vez, o poeta retoma a tradição: vai ao século XV e resgata a forma de poetar de Aretino, que não só expressa o sexo em sua poesia como o coloca como questão existencial:

Fottiamci, vita mia, fottiamci presto, 
Poi che per fotter tutti nati siamo,
E se il cazzo ami tu, la potta io bramo,
Chè il mondo saria nullo senza questo.

[Fodamos, meu amor, fodamos presto,
Pois foi para foder que se nasceu,
E se amas o caralho, a cona amo eu;
Sem isto, fora o mundo bem molesto] (Aretino: 2000, 68-69).

Oswaldo Martins tem seu equivalente: em Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas” pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de corpo e espírito com que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo o poeta está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.

quando quadros e livros
bucetas são

não são bucetas que se levam
aos livros e quadros

senão que quadros e livros
buscam

o que de bucetas
são
(Martins: 2008, 93).

O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não está somente na utilização da linguagem sexual para abordar outros assuntos, como o poema acima citado mostra. Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta voltase para a religião: começa por desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores,  finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de sexo. Fala de Deus e de sexoao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.

A virgem de olhos doces tece intrigas
para conquistar os favores
de deus

para isso usa de artifícios
finge no olhar vazio
ser a menina dos olhos

depois diz para isabel:
fodi com deus.

ah, isabel, isabel,
com ele
é como se fodesse com todos os homens (Martins: 2008, 105).

Nesse poema, aparece uma questão interessante: aqui o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa, carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.

Depois, retoma os “Ensaios sobre a pintura”, de Diderot, em que o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade, caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo:

Se nossa religião não fosse uma sombria e insossa metafísica, [...] se esse abominável cristianismo não se tivesse estabelecido mediante assassinato e o derramamento de sangue, [...] se todos os nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz [...] se a Virgem Maria houvesse sido a mãe do prazer, [...] se, nas bodas de Canaã, Cristo, tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana [...] veríeis o que fariam nossos pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção
(Diderot: 1993, 94-95).

A transposição para a poesia é feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida desenvolvidos por Oswaldo Martins:

4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças

e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas

as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia

mais que a morte

seria a carne
nossa unção (Martins: 2008, 112).

A grande questão levantada nesse poema é o erotismo, que ao mesmo tempo em que  se relaciona à vida, também  é vida. E mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que nos foi passada como exemplo de conduta.

A adoção do erotismo como postura política é uma visão possível durante a leitura de  Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da proposta modernista, mas o erotismo não é um recurso criado pelos modernistas. No século XV, houve o já citado Aretino, e no Brasil temos Gregório de Matos e Bernardo Guimarães como representantes do uso desse recurso. Essa postura, usada como forma de atacar diretamente a moral hipócrita, é defendida por Aretino no início de seus Sonetos:

Diverti-me [...] escrevendo os sonetos que podeis ver [...] sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita (Aretino: 2000, 5).

Essa perspectiva é retomada no Modernismo como uma dentre as tantas formas utilizadas para promover a liberdade (os poemas-piada de Oswald de Andrade, os versos brancos e os versos livres). Resgatar uma visão pré-cristã do corpo e dos atos que este pratica, valorizar o sensual e desconstruir os valores consagrados da moral estabelecida são preceitos de uma poesia erótica, já que a sociedade cristã destituiu o erotismo dos seus valores primários de celebração da vida. A crença em Eros contribuía para a livre transição do erótico na sociedade. Eros, para a tradição filosófica, une sombra e luz, matéria e espírito, sexo e ideia –contribui com a passagem do caos ao cosmo. É um dos deuses primordiais da cultura pré-cristã e representa a vida e os prazeres vitais.

O ataque aos valores da sociedade judaico-cristã que reprimiu Eros é uma forma de retomar os valores eróticos primários e reafirmar a liberdade, que na sociedade capitalista é tão precarizada em detrimento da ética, que se torna outra questão central de Cosmologia.

a alice no país das baboseiras
é uma garota esperta

prefere foder com a coleguinha
usar batom
celular

cortas as cabeças
dos mendigos (Martins: 2008, 41).


Aqui, aparece a polissemia do verbo “foder”: ele deixa  de significar sexo para expressar a falta de ética cada vez mais presente e tolerada nas relações humanas. Diante da necessidade de cooperação, mas tendo de conviver com os impulsos egoístas, a sociedade elaborou regras e leis morais que regulam as ações humanas. Essas leis e regras baseiam-se numa espécie de “jogo de interesses”.

Assim, necessitando da ajuda de grandes massas, mostra-se ao outro as vantagens de participar desse sistema de trocas. A ideia defendida pela ética capitalista é a de que, para construir o bem-estar da coletividade, é melhor apelar não ao altruísmo da humanidade, mas à defesa dos interesses desta em relações de mercado. Dessa forma, apresenta-se o egoísmo como melhor solução para os problemas de determinado grupo social. Os juízos morais passaram a ser pautados na eficácia econômica do sistema de mercado, que se tornou o critério ético fundamental. No capitalismo, a ética se reduz a uma questão de pura técnica. É um sistema em que, de algum modo, a ideia de realização está sempre ligada à satisfação material  – seja obtendo bens materiais, seja tendo maiores oportunidades de lazer, seja ostentando aparência de poder.

Assim, é interessante notar que, no poema de Oswaldo Martins, as atitudes de “foder com a coleguinha” e “usar batom/ celular” são postos como sinônimo de esperteza. É um poema que se encaixa na realidade do pensamento capitalista e, por isso, traduz  – em tom de crítica  – as características da sociedade moderna. Símbolo da civilização moderna, o consumismo egocêntrico transforma as relações sociais numa arena, onde a força e a esperteza fazem o vencedor. Num ambiente em que o objetivo é o lucro a qualquer custo, as considerações éticas são as primeiras a perder seu valor. É isto que Oswaldo Martins critica no poema: o detrimento da ética de convivência solidária que, bem como o erotismo, foi se perdendo e sendo reprimida durante a construção da sociedade capitalista.

O erotismo não é a sexualidade, e sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: creio que o texto erótico possa ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser melhor entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua poesia  – ele utiliza elementos do sexo para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das apreciações”:

quadros
assim como livros

cheiram a buceta

há livros e quadros
bolorentos

dir-se-iam uma buceta
sem uso

como dizem das bucetas
bem usadas

há quadros e livros
que relampejam (Martins: 2008, 58).

A “buceta” do poema não é física. É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte em sexo, em fonte de prazer antes de qualquer coisa. Por isso,  Cosmologia do impreciso é mais que um belo livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós, na qual todos deveríamos pensar e sobre a qual discutir: até que ponto falta tornar nossa vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra, ou seja, vital.

Referências
ANDRADE, Oswald. Obras completas. Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2006.
ARETINO, Pietro. Sonetos luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Campinas: Papirus, 1993.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975
MARTINS, Oswaldo. Cosmologia do impreciso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Si

Publicado em Poesia e prosa: hoje, agora em setembro 2010


[i] * Graduanda em Letras (Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF).
1
A Escola Parque não declarou isto abertamente; alegou “diferenças ideológicas”.
Entretanto, foi a reclamação de alguns pais de alunos que desencadeou a demissão.
Cf. entrevista com Oswaldo Martins e matéria sobre o assunto disponível em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/06/professor_demitido_da_escola
_parque_diz_que_nao_recorrera_justica-548591970.asp. Acesso em 22 jun. 2010.
Cf. matéria também em:
http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2008/10/05/demissao_de_professor_da_es
cola_parque_que_escreveu_poemas_eroticos_alvo_de_criticas-548563161.asp.
Acesso em 22 jun. 2010.2


Os dez melhores livros de 2011


1 – Olho empírico – Dora Ribeiro
2 – Junco – Nuno Ramos
3 – 2666 – Roberto Bolaño
4 – Inferno – Strindberg
5 – O Terceiro Reich – Roberto Bolaño
6 – Enfermaria nº 6  - Anton Tchekhov
7 –  Ó – Nuno Ramos
8 – Imaginação, Erotismo, Visão Decorativa – Matisse
9 – Cuentos memorables – Borges
10 – Nos penhascos de Mármore – Ernst Jünger

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Memórias esotéricas 4


Fui moça do balacobaco. Os babacas me seguiam na rua com os olhos, um chiste aqui outro acolá me fazia sorrir, principalmente se acompanhada de alguém. Usava vestidos bem curtinhos, as pernas à mostra, feliz de provocar e poder escolher. Muitas vezes andava sem calcinha, fazia pose para que me vissem. Meu corpo dispunha de todas as artes liberais – era uma enciclopédia do sexo e gostava disso.

Comprei um Karmanguia vermelho conversível e deixava os cabelos – que os usava ondulados e soltos – ao vento. Ao chegar em Copacabana, recostava-me em seu para-lama e fazia cara de quem não quer nada e pode tudo, uma perna decaída para o chão a outra recolhida, abraçada por minhas mãos de unhas longas e vermelhas. Era moda fazer-se de pin up. Muitas tinham vergonha o que era uma vantagem a mais no combate feroz pela alegria.

A vida para mim sempre foi conduzida por essa busca; ainda agora neste exílio do mundo, busco reavivar as boas lembranças, afinal cri nelas e posso fazer com que as mocinhas de agora saibam que o importante na vida não é correr feito loucas atrás da tão maldita segurança – seja através do casamento ou do trabalho. Já dizia o Aretino, escritor libertino do século XVI, que a profissão mais atraente para uma mulher aceder ao poder é de cortesã.

(Jurema Silva)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Memórias esotéricas 3


Estava sentada na cama, velha pelancuda e nua em um quarto pequeno e pobre. Olhava para o nada, concentrada na memória que não estava ali. Fazia frio e o aquecedor velho chiava. O calor soltava pequenos fragmentos de brasa, mas meu peito estava ressequido, meu colo depunha camadas de colares naturais, como cascatas de pérolas sujas.

A pensão, como um retrato deste tempo que já não é o meu, estava vazia e silenciosa. Velhos como eu habitavam seus quartos e pouco saíam de suas camas. Os estudantes estudavam, os motoristas dirigiam seus carros, os condutores conduziam, trabalhadores trabalhavam e os relógios marcavam o tempo zero e nunca repetiam as cinco horas do chá nem deliquesciam as horas dúbias de dali.

Havia pressa e ninguém mais fazia do sexo sua arma fatal contra a hipocrisia das famílias, todos trepam mulheres homens gays em comunhão com o santo cristo e a família eclesiástica dos inventores da morte e do casamento de que pretendem herdar com a segurança dos que se pretendem eternos.

Estar sentada aqui nua, coma s pelancas fazendo-me as vezes de colar pode ser considerado um ato de resistência contra o mundo.

(jurema silva)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

cartão de natal


veio Jesus ao mundo
a mando de seu Pai
veio punir os ímpios
e redimir os justos

era menino!

elesbão
(22/12/11)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Estudo 2 para o Capoeira de Besouro



“Eu vim da Bahia”, ouve-se Pixinguinha dizer na histórica gravação que Almirante fez da música que ele, o santo, Donga e João da Baiana fizeram para a música Patrão, prenda seu gado. Ouvir os berimbaus de mestre Camisa e Lobsomem é de alguma forma reouvir o prato e faca de João da Baiana. 1917/2011 quase um século de diferença e a inesperada confirmação da dobra mimética tanto lá quanto aqui.

Se o prato e faca remonta ás dificuldades a à inventividade do brasileiro para dispor do que não havia para a celebração do ritmo e da existência, para o andamento arrastado do miudinho, o berimbau que se pratofaqueia em Idalina, por exemplo, tem essa dobra de que se apoderaram os divinos compositores de 1917 e que – outra e após dobra – Paulo Cesar Pinheiro reatualiza

Elo entre o samba baiano e o país herdado dos capoeiristas também na voz prato e faca de Cristina Buarque. Elo entre o samba carioca e os compositores que fundaram a forma de resistir às nuances negativas da vida. Dobra atrás de dobra.

(Oswaldo Martins)

Estudo 1 para o Capoeira de Besouro


O episódio fundador da identidade nacional, secundado pelo livro magistral de Euclides da Cunha, foi o de canudos. Ali, apesar pelo massacre e extermínio do grupamento humano que se reunia em torno do conselheiro, percebe-se uma unidade que determina o existir e a resistência possível na Republica das elites que se firmava no europeísmo distante e cruel, especializada na praticada escravidão e de todo tipo de repressão econômica.

A guerra de Canudos foi desenvolvida a partir de técnicas bastantes distintas; se os republicanos utilizavam armamentos pesados e modernos, a técnica dos conselheiristas era feita de esquivas – “de mão no chão, e pernas no vento – tesoura, banda, rapa, soco, tapa e sola” [i]  Em Canudos aprendeu-se o continuísmo da republica recém inaugurada e da velha monarquia, mas, ao mesmo tempo, reavivou-se a luta dos quilombolas, aluta dos ideias democráticos e igualitários. A urbe do conselheiro se baseava neste princípio.

Os anos de 1896/1897 viram a derrocada da pretensa força motriz da nação e o surgimento de outras derivas para a reafirmação dos valores étnicos e culturais dos que não podiam, não puderam e ainda não podem participar da construção das vozes que demarcam e formulam – no revés do vento – uma ficção possível para a identidade múltipla dos Brasis.

Entre 1895 e 1897 nasceu Manoel Henrique Pereira, o Besouro, que continuou nascendo como afonso Henriques, Luiz Carlos, Graciliano, Carlos Marighela, Abdias e Paulo Cesar Pinheiro, para tocar fogo nos paióis da pátria.

Ouçam, filhos de canudos, o toque de cavalaria.

(Oswaldo Martins)






[i] - Extraído do CD Capoeira de besouro, de Paulo Cesar Pinheiro. Toque de Cavalaria.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Datas coincidentes:


Entre 1896 e 1897 aconteceu Canudos, em 1895 ou 1897 nasceu Manoel Henrique Pereira, o Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O CORDÃO PARTIDO

O cordão partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

(Berthold Brecht)  
Tradução de Paulo Cesar de Souza

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

banhei / brisa

banhei

cama banhada
com perfume, no
frasco diz: sexo


brisa

entrava pela noite
rasgando o lençol do tempo
e amanhecia prematuramente




(anelise freitas)

Caminho

nós duas dirigimos
(ainda sem chegar)

e mandamos postais
e escrevemos cartas
enquanto rasgamos livros
e arranhamos discos
e estilhaçamos copos

enquanto isso -
é melhor acreditar:
voltar pra casa não importa

nenhuma estrada supera
a extensão das memórias.

(Larissa Andrioli)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Poemas da solidão


1
pernas descabidas
alheias ao movimento

sustentam pilastras
um mundo estático

tiro fotos
que ninguém olhará


2
quando
uma vidraça
não faz barulho

o tempo se desfaz
resoluto

uma vidraça se quebra,
se quebra, sempre

no relativo exato
deste segundo


3
onã,
o fabuloso

me faz comer
todas as mulheres

do mundo


4
a coxa pediu-me carona
dei-lha

a coxa possuía belos seios
boca carnuda

sentou-se ao meu lado
no longo sofá do carro

jamais novamente a vi
e ela rodava pelas madrugadas

quando, manco,
corro atrás dos amores impuros

5

*
os zeros são números neutros
nada indicam
de positivo
ou negativo

quietos como quem morre
ou ainda não nasceu

os zeros apenas
rugem nos fictícios arranjos
da poesia

**
pensar na matemática
é como descobrir
universos

ou

teorizar micro células
invisíveis
ao olhar humano

ou

a raiz quadrada
da poesia


6
o dia brilha
para o cão
para o boi, no pasto

na buceta inchada
na mão de minha mãe
na mão de meus irmãos

na coxa que um dia
fodi


7
eram dois desesperos
zeros
por isso se bastavam

como se dois sexos
abertos do universo
fossem

(oswaldo martins)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Poema do dia

o mundo terminou as suas funções
pedagógicas esta manhã

há horas encontrei
esta nova era
coisa já viciada nos seus
preconceitos regulares
nas deliciosas armas de
construir o pensamento

há horas vivo sem
poder responder ao desejo
esse clássico da errância humana

(Dora Robeiro - olho empírico)

Prosa avulsa 1


Todos conheceis a pro0funda melancolia que nos acerca, ao recordarmos tempos felizes. Eles são irrevogáveis, e deles somos cruelmente separados por uma distância maior que todas as distâncias juntas.

(Ernest Jüger – Nos penhascos de mármore)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Haver





Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

variações poéticas sobre o corpo matemático da mulher de Tales de Mileto


variações poéticas sobre o corpo matemático da mulher de Tales de Mileto


I

a mulher de Tales
tinha pernas matemáticas.

II

eram poéticas
as pernas
da mulher de Tales.

III

foi nas pernas
de sua mulher
um pouco mais acima
que Tales
viu o triângulo.

IV

estando deitada
sua mulher
contemplando-lhe
dos pés
           à cabeça
à beleza do corpo
Tales vislumbrou
o triângulo isósceles.

V

quando de bruços
viu
sua mulher deitada
Tales deduziu que o diâmetro
                             divide
um círculo em duas
                             partes.


elesbão
(26e27/11/2011)

Fotografia


sábado, 26 de novembro de 2011

A respeito dos zum-zuns


Cantiga de longe, de Edu Lobo, lançado no ano de 1970, traz uma composição composta por seu pai, Fernando Lobo, e Paulo Soledade. Zum Zum, feita a partir do acidente com o avião da Panair, um constellation. Embora composta para homenagear o amigo, comandante da avião Constellation, da Panair, a música ganhou ares carnavalescos em 1951, quando Dalva de Oliveira a gravou.

A gravação de Edu Lobo é feita, nos EUA, com vinte anos de diferença, adquire um andamento mais lento, lamentoso. Há nesta gravação duas leituras possíveis, a de que Edu Lobo tenha reinterpretado o andamento original da música, o que teria um valor memorialístico bem específico de recuperar a origem da composição, o que certamente é importante. Entretanto há outra possibilidade, que creio ser mais importante, pois, além de englobar a perspectiva anterior, cria uma possibilidade de leitura de sua época, em que a tortura, o exílio e a prisão se tronaram ações constantes e causa de depressão social, com a qual convivemos até hoje, pelos estragos que os governos militares fizeram na educação pública, nas instituições democráticas e na participação popular.

Das diversas composições e interpretações que se fizeram e se tornaram, com justiça, uma espécie de hino, a partir do qual podíamos extravasar a frustação da participação social, prefiro este protesto silencioso e pungente.

(Oswaldo Martins)

Fotografia - cigarros são sublimes



quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Camonianas


dedicatória

ña senhora, tenho-vos mandado uma enxurrada de versos que não são de minha autoria , são versos que me veem dos tantos versos que li, mas o amor de que falam é meu – é o amor que tenho por si.

I

amo-te tanto
de um amor tão grande
para uma vida tão curta.
II

olhos
só os tenho
para ti.

III

estava assim tão cansado
de amores desenganados

quando Circe pôs sua mão
sobre minha mão.

IV

amo-te
de um amor tão grande
quem me dera
fosse amor pequenino.
V

estando de AMOR
desiludido e magoado
a sofrer danos por gestos
ousados

vi em Circe
bela e comedida
um mover de olhos, brando e piedoso,
um riso brando e honesto
um doce e humilde gesto.

VI

dizei-me senhora
por que me queres o corpo
se vos ofereço a alma?


VII

de todo o meu amor
não serás senhora
de todo o teu amor
não serei escravo.

VIII

não é a tua beleza
que me intimida
temo os deuses
que por desobediência minha
e inveja deles
me tolham as mãos

IX

que me dizes AMOR
agora que te venço

X

que me dizes agora AMOR
que tenho sobre teu peito
a ponta da minha espada.
XI

sei senhora
medir bem o amor
que vos dedico
sei por vossa recusa
e pelas penas e mágoas tristes
em que vivo.

XII

não devias senhora
recusar-me um sorriso bondoso
não devias senhora
recusar-me um olhar piedoso.

XIII

Nise
estar ao pé ti
é estar sentado
                     à sombra
                    dum álamo copado.


XIV

esta impaciência
       que me impacienta
é a impaciência
       do amor


elesbão
(14/05/2011-19/11/2011)

sábado, 19 de novembro de 2011

pilulinha


Dois novos livros de poesia chegaram esta semana a minhas mãos. O olho empírico, de Dora Ribeiro e o Junco, de Nuno Ramos. Aliás, dois grandes livros, em tudo dessemelhantes, mas próximos pela alta qualidade que possuem e faz deles um dos melhores lançamentos da poesia brasileira neste ano.

Olho empírico – como é saboroso isto – não traz a mínima pista de quem é a autora. Seco, não contém mais informações que as necessárias para o leitor – apenas os poemas em sua nudez, nenhuma informação adicional. Basta ao leitor que leia os poemas e com eles se conforte e frua a excessiva beleza que contêm.

Junco, ao contrário, é prodigo em informações sobre o autor. Data de nascimento, prêmios recebidos, livros publicados, uma bela orelha de Flora Sussekind e a informação adicional de que o autor, cujas obras são belas, é também artista plástico. 

desimitação de augusto dos anjos

meia-noite
sóbrio

enquanto
um bicho de antolhos

me resguarda
não a consciência

ou o olho
do não vivido

expresso no funéreo
ferrolho

de um teto

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Três poemas

desimitação de olavo bilac

para tom zé

bem no centro do olho
do crânio

lugar típico onde
se tomam decisões

há um buraco negro
que sem ora direis

reapaga as estrelas
da via-láctea


1
os articulados com por cento
fazem ginástica em apartamentos
fechados

leem em o globo
as novidades da hora

e
no econômico jornal
da moda

as sandices repetidas
ad nauseam



2

este
o pulso do poema

a sinistra capsula
a queda

a indução

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Fotografia 5


Willy Ronis

Olhar

estava a reparar no pombo pousado
no muro da minha casa com a outra casa

estava pousado numa perna só
(seria manco?)

pou, joguei-lhe uma onomatopéia

com calma elegante desceu a outra perna
e foi a voar

elesbão
(23/10/2011)

olhar

cá está o pombo outra vez sobre o muro
e agora é ele quem me olha
olha-me com um olho amarelo
e vira-me o bico
vira-me o olho e vira-me o bico
com que olhos me vê este pombo?


elesbão
(26/07/2011)

sábado, 29 de outubro de 2011

BLOOMSDAY TUPINIQUIM

Com toda essa brida provocada pela invenção tupiniquim do bloomsday, em homenagem ao nosso pretenso e poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, senti vontade de voltar a um texto fundamental para ler a obra do grande poeta, lido no curso de mestrado que fiz na UERJ, sob a orientação de Luiz Costa Lima.
Publicado em livro que então se produzia, “Drummond: As metamorfoses da corrosão” (1989) lançava novas perspectivas de leitura para sua poesia. No texto – exponho-o de maneira sucinta – procura-se verificar a existência de um princípio que ordenaria a poética drummondiana, desde seu primeiro livros e que aos poucos, à medida que as experiências vivenciais do poeta se colocam, vão se modificando e construindo outras identidades e possibilidades de leitura.
No texto de Costa Lima, lemos que o princípio da corrosão, “em sua primeira recolha, confia na técnica da fragmentação e no papel da ironia para formular o caráter problemático do mundo que lhe foi dado”. Embora permaneça em livro que abre nova perspectiva na obra de Drummond, “o privilégio da ótica irônica- fragmentadora” que se opõe “à grave dicção do sublime” formula em o Sentimento do Mundo num novo elemento: o sentimento de participação, que novamente se metamorfoseará quando a dicção mais elevada de Claro Enigma pressupuser outra deriva.
O texto de Costa Lima é fundamental para que se possam surpreender não só os caminhos trilhados por Drummond, mas para também perceber que esgotada as vertentes da corrosão, a poesia de Drummond se dirige à aclimatação do poeta às exigências do leitor, perdendo a elaboração formal e tornando-se “uma espécie de consciência pública média”.
O nosso bloomsday, ao entronizar o poeta na consciência do público, pode correr o risco de fazê-lo por um viés mais imediato e facilitador e daí celebrar não mais o poeta, mas o cronista. Portanto, tenhamos prudência, que o santo pode se revelar de barro.
(Oswaldo Martins)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

antiode para uma certa senhora social-democrata

para ubiratan braga

se de lúcia preferes a senhora que por trás governa para ser governada
estou fora, histrião
se a dor no peito
se o aperto no peido

se preferes a higiene das bem nascidas o ai não me toques das moças donzelas
estou fora
das beldades de empréstimo que quando deixam cair a roupa deixam cair as máscaras das propagandas, do rímel, da falsa bunda ao siliconado peito ou da calça jeans apertadinha sobre os amplos beiços da boceta
vestes então do despudor a voz altiva que comandou escravos que comandou homens até a hora agá gagá senhora de vinte e poucos anos já automatizada em roubar as sibilas do tempo por isso pintas os cabelos pintas o contorno dos olhos a boca e botocuda de botox já não ris senão da desgraça das pobres moças que não têm de seu senão as flores gonocócicas da verdadeira impudicícia, as destroçadas moças as altissonantes moças que bebem que gritam que estridulam com os cabelos desgrenhados pelas esquinas que marcam de roxo o rosto que maceram de nada os sonhos e fazem guris em penca para cuidarem os outros ou para abandonarem os tristes bastardos da pátria ao relento do crack, da cracolândia ou da faca que o feitor de teu tempo constrói nos reformatórios da cidade
onde então tomam porrada

estou fora, senhora
pois que propões para a miséria o medo e suas prisões ou para as favelas o caveirão o caveirume da porrada de antanho, disfarçada, senhora disfarçada, de alento para quem não tem alento e escondes as escolas, fazem com que sonhem com bulevares e lhes dão falésias e felonia e um monte de roupa suja

estou fora, senhora
dos twitters que propõem discutir a segurança pública e reinventam a burla do pão e do circo que reinventam o funk como codinome do samba que tanto odeias
tua rebeldia – senhora sempre envilecida – é pouca teu sonho de liberdade pífio

ah, senhora,
queria te ver no asilo, de camisola queria te ver na esquina, pedindo esmola queria te ver na frente de uma pistola, toda frajola de longo e salto alto na padiola que boa bola
na lida queria te ver na linha de passe entre a cachaça e o rufião entre o tiro e a linha fronteiriça do bem e do mal te ver cagar nos vasos sujos dos botequins de terceira entre as moças
de calças largas e bocetas apertadas

(oswaldo martins)

sábado, 15 de outubro de 2011

Picasso

Quando alguém, visando a beleza de um produto, a ele dá um nome de um pintor, de um poeta, de um músico, falseia a relação do produto com o público e mostra a destruição que a obra do artista sofre pela exposição midiática. A emulação grosseira pressupõe a falta de leitura daqueles que os mestres da publicidade pensam ser o público alvo do produto oferecido.
Dirigimos um Picasso, bebemos a cerveja que Vinícius nunca bebeu, que vende a minha pátria para o Banco Bamerindus, Drummond, um bom ano novo ou uma calça, Bandeira, que nunca vendeu sabonetes, vira garoto propaganda. Ainda virão a penicilina Noel Rosa, a calcinha Leonardo, o motel Jorge Amado ou Gabriela.
Nos restaurantes antigos comemos o Oswaldo Aranha, nos modernos toda uma sorte de artistas, pintores e demais personalidades desomenageadas pelo prato preferido à doré. Moramos em mansardas ou mansões chopin, strauss ou villa-lobos e carlos gomes, e deseducamos as crianças em pretensas vanguardas – arautos do atraso e da arte da propaganda. Quantos sairão dali prontos para o mercado?
Quando Baudelaire disse que o poeta iria ao mercado vender a alma, como as putas vendem o corpo, não disse ou justificou a mixórdia do mercado – senão que dele fez lugar de preferência para passear a inaptidão do sujeito, sua radical redução à aberração denunciatória dos novos tempos recém-inaugurados.
Quando Caetano entra na justiça para proibir que um investimento qualquer roube-lhe a tropicália para nela fazer morar mal-pensantes que pensam comprar a modernidade e o paraíso, merece, novamente, nossa absoluta aprovação.

(oswaldo martins)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

diário da queda


Há duas atitudes a tomar diante da inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares. A primeira é a do meu avô, e tudo o que penso a respeito eu acho que disse para meu pai aos treze anos, da forma como ei conseguia na época, e lembrando hoje da briga e da maneira como meu pai me olhou na briga e da conversa que tivemos no dia seguinte à briga e da forma como ele passou a agir depois eu percebo que ele secretamente me deu razão, e que já sabia disso desde sempre, e que seria capaz de dizer as mesmas palavras que usei na época, as que fui capaz de escolher, e até então ninguém havia sido tão direto ao lembrar o meu pai de que meu avô se agarrou a um pretexto, um álibi dele, a aura que o tornava uma espécie de mártir, um santo por haver estragado a vida de meu pai embora tenha seguido à risca as previsões das toneladas de páginas e milhares de filmes e infinitas horas de discussões sobre a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares e como terminaram todos os que tiveram contato com ela, mesmo que ela tivesse um nome tão simbólico e acima de qualquer discussão como Auschwitz.

(LAUB, Michel. diário da queda. Pag135 -136 – Cia das Letras, 2011)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Verdes adoráveis

Verde que te quero rosa

Verde como céu azul a esperança
Branco como a cor da Paz ao se encontrar
Rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida
É negra toda tristeza se há despedida na Avenida
É negra toda tristeza desta vida
É branco o sorriso das crianças
São verdes, os campos, as matas
E o corpo das mulatas quando vestem Verde e rosa, é
Mangueira
É verde o mar que me banha a vida inteira
Verde como céu azul a esperança
Branco como a cor da Paz ao se encontrar
Rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida
É negra toda tristeza se há despedida na Avenida
É negra toda tristeza desta vida
É branco o sorriso das crianças
São verdes, os campos, as matas
E o corpo das mulatas quando vestem Verde e rosa, é a
Mangueira
É verde o mar que me banha a vida inteira
Verde como céu azul a esperança
Branco como a cor da Paz ao se encontrar
Rubro como o rosto fica junto a rosa mais querida
É negra toda tristeza se há despedida na Avenida
É negra toda tristeza desta vida
Verde que te quero Rosa (é a Mangueira)
Rosa que te quero Verde (é a Mangueira)
Verde que te quero Rosa (é a Mangueira)
Rosa que te quero Verde (é a Mangueira)

(Cartola)


Romance sonâmbulo

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.

Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.

Mas quem virá? E por onde?...
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.

Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!

Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.

Romance Sonámbulo

Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,
verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana,
las cosas la están mirando
y ella no puede mirarlas.

Verde que te quiero verde.
Grandes estrellas de escarcha,
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
La higuera frota su viento
con la lija de sus ramas,
y el monte, gato garduño,
eriza sus pitas agrias.
¿Pero quién vendrá? ¿Y por dónde?
Ella sigue en su baranda,
verde carne, pelo verde,
soñando en la mar amarga.

--Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los puertos de Cabra.
--Si yo pudiera, mocito,
este trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
--Compadre, quiero morir,
decentemente en mi cama.
De acero, si puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
--Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
--Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas,
¡dejadme subir!, dejadme
hasta las verdes barandas.
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.

Ya suben los dos compadres
hacia las altas barandas.
Dejando un rastro de sangre.
Dejando un rastro de lágrimas.
Temblaban en los tejados
farolillos de hojalata.
Mil panderos de cristal
herían la madrugada.

Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento dejaba
en la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
--¡Compadre! ¿Dónde está, dime?
¿Dónde está tu niña amarga?
¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara,
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!

Sobre el rostro del aljibe
se mecía la gitana.
Verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Un carámbano de luna
la sostiene sobre el agua.
La noche se puso íntima
como una pequeña plaza.
Guardias civiles borrachos
en la puerta golpeaban.
Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
El barco sobre la mar.
Y el caballo en la montaña.

(FEDERICO GARCIA LORCA)