sábado, 30 de abril de 2011

Poema do dia

ARTE DE FURTAR

O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
criações no permanente processo de linguagem da poesia

O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem da poesia

O poeta se confessou um criador tributário de outros na
linguagem de sua poesia

O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores

O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros criadores

O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas

O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas

O poeta é um deslavado apropriador de linguagens

O POETA É UM PLAGIÁRIO

(Affonso Ávila)
De O discurso da difamação do poeta.
São Paulo: Summus Editorial, 1978]

terça-feira, 26 de abril de 2011

Keith Jarrett in Rio

O pássaro negro senta-se ao piano, estende as mãos, começa a tocar
levanta-se, emite gemidos inteiros, bate os pés como um neandertal foca
o contratempo
o pássaro quebra paradigmas
o som da boca é mesmo um ahymé!
do piano surge um improviso melismático, contracenando com algum tango, algumas células de Stravinsky
o piano vai a ele numa atração mútua, aquele sistema se rearranja para caber numa dissolução nova
agora o pássaro estica-se todo
agora o pássaro enrola-se sobre o próprio corpo e aproxima a cara do teclado como se quisesse ouvir a voz da madeira
totalmente pássaro, uma parte dobra-se enquanto a outra olha para nós
volta para o tris, chegando rente ao público como um pingüim aquecendo-se um pouco.
Dobra-se todo na escuridão da humildade.

Luiz Fernando Medeiros, 9 de abril de 2011

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Poema do dia

ou delfos ou

mulheres proféticas
nascem do perfume
que sai da terra

florescem no gás inebriante
servido fora do sexo
para ver as coisas
do mundo e da guerra

o transe oracular
cresce da fenda na rocha
e só depois
de tomado o corpo feminino
falam os deuses

(Dora Ribeiro – A teoria do jardim)

domingo, 10 de abril de 2011

III. O poeta da deseducação

Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque a falar na sala de aula sobre seu trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico-pornográfico. A reclamação veio dos pais de alunos que, após ouvirem a fala do professor, foram buscar sobre ele na internet e se depararam com seu blog. Também na web, o escritor possui publicada uma releitura dos Sonetos luxuriosos, de Pietro Aretino, denominada I modi². A abordagem de Martins difere da de Drummond: sua poesia é feita para transgredir. E se O amor natural era transgressor, o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sintomaticamente grafada com u), “foder”? Em Cosmologia do impreciso (2008), sexo e vida se confundem. Onde lemos “bucetas” podemos ler “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de corpo e espírito que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo, o poeta está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.

quando quadros e livros

bucetas são


não são bucetas que se levam

aos livros e quadros


senão que quadros e livros

buscam


o que de bucetas

são (MARTINS, 2008, p. 93)


O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não aparece somente na utilização da linguagem sexual para se referir a outros assuntos, como o poema acima citado mostra. O que vemos é uma subversão do discurso sexual do poder de que fala Michel Foucault (FOUCAULT, 1988): se a sociedade é permeada pela verbalização do sexo de forma técnica, classificatória, como forma de, pela dissipação, banalizar e repelir a prática, o que temos na poesia de Oswaldo é o discurso poético sobre o sexo. Longe de ater-se a minúcias biológicas, seu texto faz a sexualidade trocar frequentemente de posição com a arte. O discurso sexual, aqui, está fora do âmbito do poder; não se trata de uma de suas ramificações que se estabelecem à medida que o sexo é verbalizado e normatizado.


Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa por desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores, finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de sexo. Fala de deus e de sexo ao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.

A virgem de olhos doces tece intrigas

para conquistar os favores

de deus


para isso usa de artifícios

finge no olhar vazio

ser a menina dos olhos


depois diz para isabel:

fodi com deus.


ah, isabel, isabel,

com ele

é como se fodesse com todos os homens (MARTINS, 2008, 105)


Neste poema aparece uma questão interessante: aqui, o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa, carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.


Depois, Oswaldo retoma os “Ensaios sobre a pintura”, de Diderot, onde o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade, caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo.

Se nossa religião não fosse uma sombria e insossa metafísica, (...) se esse abominável cristianismo não se tivesse estabelecido mediante o assassinato e o derramamento de sangue, (...) se todos os nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz (...) se a Virgem Maria houvesse sido a mãe do prazer, (...) se, nas bodas de Canaã, Cristo, tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana (...) veríeis o que fariam nossos pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção. (DIDEROT, 1993, 94-95)


A transposição para a poesia é feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida desenvolvidos por Oswaldo Martins:

4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças


e com os olhos inebriados de tesão

tocasse aqui uma teta

ali as curvas


as portentosas nádegas

da mulher que se oferecia


mais que a morte

seria a carne


nossa unção (MARTINS, 2008, 112)


A grande questão levantada neste poema é: o erotismo, ao mesmo tempo em que se relaciona à vida, também é vida – mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que nos foi passada como exemplo de conduta.
ANDRIOLLI, Larissa. Corpos abertos e silêncios rasgados: o recurso poético e político do erotismo na contemporaneidade. Mafuá, Florianópolis, ano 9, n. 15, março 2011.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Dois sonetos Camões e Vinícius

Sentindo se tomada a bela esposa
de Céfalo, no crime consentido,
para os montes fugia do marido;
e não sei se de astuta, ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
de amor cego e forçoso compelido,
após ela se vai como perdido,
já perdoando a culpa criminosa.

Deita se aos pés da Ninfa endurecida,
que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.

Ó força de afeição desatinada!
Que da culpa contra ele cometida,
perdão pedia à parte que é culpada!

(Luis de Camões)

Soneto de devoção

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei os
Carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher e um mundo! - uma cadela
Talvez... - mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela.

(Vinícius de Moraes)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Desomenagem 1

Soneto futurista

Noite. calor. Concerto nos telhados.
Cubos esferoidaias. gatas e gatos.
Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos.
Melindrosas. poetas assanhados.

Rabanetes azuis. Sóis encarnados.
Comida no alguidar. Cuspo nos pratos.
Três rondas a cavalo. Mil boatos.
Prosa sesquipedal. Tropos safados.

Avenida deserta. Bondes. Grama.
Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló.
Carros de irrigação. Salpicos. Lama.

Vacas magras. Esfinge. Trste. Só.
Tumor mole. São Paulo. Telegrama.
Dois secretas. Cubismo. Xilindró.

(Carlos de Laet)

Soneto em desomenagem a Graça Aranha.



segunda-feira, 4 de abril de 2011

horizonte


para Sophia de Mello Breyner Andersen

"Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu".

Fernando Pessoa

olho o mar
depois do mar há o céu
o céu é maior que o mar
se der as costas ao mar
ainda assim continuarei a ver o céu

gosto mais do mar
não por ser mais pequeno

no céu há estrelas, há galáxias
há muitas galáxias no céu

no mar há peixes
há também árvores plantas e montanhas

no céu não há árvores

no céu há estrelas
as estrelas iluminam é verdade
mas há planetas
bolas imensas que amedrontam

no céu não há árvores
sentado neste cais a olhar o mar
balanço as pernas de contentamento
sei que depois do horizonte
só verei o céu
se voltar as costas ao mar

para ver o céu
(onde não há sombra
porque não há árvores)
basta erguer a cabeça
para chegar ao mar
é preciso ir a caminho



elesbão ribeiro
(11/02/11 e 03/04/11)

antiode para maria bethânia

senhora
ouve nesta voz o que cantam os terreiros o atabaque do sangue a plurilíngua entre comedimento e descontenção vê que giram as moças com suas saias suas marcas de suor de desprendimento giram pela santo pela santa mameluca africana curiboca nega maluca nega fulô
voz que foi tua – cantora dos atabaques baianos das dores dos amores dos carcarás e batéis do moço virago loiro a vagar nas ruas da lisboa de sophia ou mar caýmico onde iemanjá distribui beleza e reino em que a oxum mais bonita mais que os cafés soçaites vive sob a brisa dos que distribuem riquezas e ouro nas carapinhas em suas 365 igrejas
voz de pessoas caetanos e chicos
de mário, via gullar
brasileiro como eu como você como o samba de silas aniceto aldir
e tantos outros que sambam no diapasão da poesia
vozes sem a decrepitude dos mercados sonantes retirados aos novos talentos que se fazem, senhora da canção, sem que sejam necessários grandes investimentos grandes gastos ou ganhos desmesurados
talentos e não talentos como o ouro dos tolos ou de gregos, troianos ou baianos
senhora da cena muda das rosas dos ventos de pés descalços como se num templo deusa entre as deusas
sai de teu castelo e vem
como os mortais
como as belas baianas a carregar o vaso da lavagem
como o canto de trabalho a dança a ânsia sagrada de comemorar
como as rainhas negras da voz, mães de todos nós
*
ouve o que diz a letra de aldir
da canção no canto de moacyr
senhora dos luxos,
despe essa máscara
e vem ouvir o que teus ouvidos esqueceram
vem dançar na farra do povo rir dos açoites dos estrambotes melancólicos dos sonetos das marcas profundas que se afixaram no rosto romântico e parnasiano de um canto frouxo de um poema frouxo onde os castelos de marfim edulcoraram as explosões do coração
cante ainda a petúnia resedá do morro de são carlos ou a puta de rua o poema de carlos cabral milano haroldo
o poema de oswald
vê que amor humor é mais que uma proposta de poesia que nela se esconde a irrisão dos ácidos fortes do gargalhar da melancolia na própria lavra dos fonemas e letras que os tornam diferenciados e iguais.
ria, pois
dos demônios – tão medievais –
da candura do corpo e da voz
da mesmice do repetitório – sem comentários
com que se calam os homens,
com que se calam os jovens
com que se calam o negro
com que se cala a nudez da palavra
que outrora protagonizavas
ou o cinema brasileiro
nesta besteira que vem a ser o lope romântico ou os lixos anatômicos de vik muniz – matérias de mercado e consumo e falsa poesia
*
ah, senhora da canção.
(oswaldo martins)

sábado, 2 de abril de 2011

irrisão

os pequenos burgueses nas entrelinhas
querem seus filhinhos gênios
quando a mesmice

repete que repete
o ilusório repetitório
dos astros e atrizes

do cinema

pedem vanguardas
bem firmados no contrapé
da ultrapassada ilusão

do romantismo
tupiniquim

(oswaldo martins)