sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

rodilha

perguntou-me sobre o tempo a passar por mim
nunca me dei conta do tempo a passar por mim
lembro-me do vento
a me enrodilhar
a me deitar ao chão
a me enrodilhar
a me erguer prau alto
lembro-me do vento
lembro de ver
tuas saias levantadas
lembro de ver os lençóis pendurados
pendurados nas cordas do quintal
a ondular e
a sibilar ao sopro do vento

elesbão ribeiro

22e 24/02/17

domingo, 19 de fevereiro de 2017

QUASE ODE

Noto que agora minha voz treme, fica rouca,
e a dela também, nas mensagens que trocamos.

De noite, antes de dormir, naquele nicho entre
o que não se realizou no dia e o que será esquecido,
minha respiração soluça.

Teimo em adiar resoluções como se fossem
um produto de qualidade inferior,
mas ainda assim removo as teias da casa.

Ela me fala de uma tal sabedoria
de antes da guerra, os nomes dos filhos
seguindo as estações,  e as óperas.

Temos nomes curtos, ela e eu,
que cabiam numa almofada bordada
pelas mãos das nossas avós, em azul celestial.

Trocamos textos sem culinária alguma,
sem preparo, renovando os votos de sobressalto,
mas ainda assim, o nicho.

A voz dela rouca e escrita sobre a minha
me sublinha.  A voz dela rouca e escrita

sobre a minha. 

(Lúcia Leão)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

a flor irritada

de barro ou ferro a flor
torcida

a ponto de bala
na ponta dos canhões

flor que explodisse
em cravos

os estrategos da miséria

*

ou a flor de carmona
a única que serve ao ofício

a flor dos toureiros de espanha
não a flor marinha que cavalga

no lombo de cavalo
puro sangue

**

ainda a flor que recende a palafita
e faz reflorir o oco da lucidez
flor nordestina

***

mais, flor de ausência
sem futuro e sutil

que exale apenas o putrefato
dos fodidos

à merda carcerária

****

flor nenhuma por fim

matéria rude
em que explodem os cravos
do poema


(oswaldo martins)





quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Não recuses

       para cesário  verde

não recuses
se te pedir um beijo

e se recusares eu entendo

mas não recuses
a caixinha de cajus
que mandei entregar
à tua porta

elesbão ribeiro

14/02/17

sábado, 11 de fevereiro de 2017

a lição barbosa

fazia a oração aos moços
rezava a imitação de cristo

acabou se achando um justiceiro
de faroeste americano

tão falso quanto a mocinha
que beijava os pés do sapo

só exterminava os selecionados
pelo sistema da crueldade

ou pelo que rezava a cartilha
da justiça partidarizada


(oswaldo martins)

desimitação da esculhambação

ora, vá ouvir estrelas

ora ora direis
nunca fostes a bora-bora

direis ora ora
em idioma francês

eita ora ora
o poema coseis

ora ora abraçai
os verdes anos

e sigam bilaques
e os de abreu

para o panteão dos beócios
poetas de outrora

(oswaldo martins)


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

ESTA NOITE CRUZEI-ME COM OS MEUS PAIS

Esta noite cruzei-me com os meus pais,
duas sombras pálidas reciprocamente atraídas,
à luz branca de um candeeiro.

Tendo em conta a felicidade demonstrada,
eu ainda não era nascida. Eram jovens e muito apaixonados.
Uma grande tristeza anuviou-me
porque eu sabia a continuação da história.

Ela soltava gargalhadas por causa de algo que ele lhe tinha sussurrado.
Ele ria alto como ainda costuma fazer.
Trocámos um cumprimento bem-educado e
depois cada um seguiu o seu caminho.

‘Vão ver’ gritei-lhes depois de passarem,
‘ainda havemos de nos encontrar’.

De braço dado, dobraram a esquina em silêncio.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

ócio

para walnice

cingi o colo de mirto
em arabescos
caíam flores

sobre o colo
um redor de palavras

quais flores eram
em outra língua

explodam coroas
de ninfas

para guiar
o acaso do mundo


(oswaldo martins)

partição

1
as interrogações do vento

2
Esboroam-se ante a imagem
que desmanchado borrão
anfixa a explosão dos sóis

3
brota
em manobras escusas
a cisão dos esgotos

a céu abjeto

4
quando uma bosta
o mundo

cogumelos venenosos
cicatrizam

flores de ferro

5
ventos
os postulados metafísicos

na merda


(oswaldo martins)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Provérbios y cantares

I

Nunca perseguí la gloria
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos e gentiles
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse
de sol e grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse.


(Antonio Machado)

Um mílímetro pra saída

Sem forçar os olhos, sem
sequer abri-los, posso vê-la
boiar de cara pra baixo,
a cabeça imersa no breu.

Ela largou os
adictos anônimos
por nunca conseguir dizer
meu nome é tal e tal e eu sou —

Nas marés
de um quarto estranho
ela vaga um milímetro
pra saída e volta um metro.

Como posso, assim sem peso,
trazê-la pro lado aceitável.
Salvá-la, escorraçá-la —
daria no mesmo.

Tall Nitzán, poeta israelita

Trad. Guilherme Gontijo Flores