terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Sarau Poético de Manguinhos


Pra não dizer que não falei das flores - Geraldo Vandré (1968)

TOM JOBIM e CHICO BUARQUE - Sabiá (1968 e 1986)

Tom Jobim, Chico Buarque, Danilo e Dory Caymmi - "Provei / Três Apitos" ...

Dori Caymmi - O porto - Heineken Concerts 96

SÉRGIO RICARDO - "Beira Do Cais" (Sérgio Ricardo) 1973

Sergio Ricardo - Antonio das Mortes

Sergio Ricardo - Perseguição

Egon Schiele




Memórias esotéricas 5


Egon Schiele. Seu erotismo era apenas um sinônimo para ver o mundo com alegria. Na minha fase da mais aguda magreza, gostava de me sentar com o Pretinho no colo. Demoradamente minhas mãos ao longo de seu dorso faziam com que ele e eu ficássemos arrepiados. Meus olhos sempre manchados de tinta escura, o peito desnudo. Era capaz de ficar assim dias inteiros, buscando a pose adequada, sentindo a cauda entre as pernas, quente, quente.

O chapéu do início do século, que conseguira num brechó, deixava-me com ares de pequena puta – eu, moça de 25 anos, sabedora ainda dos poucos mistérios da vida. Com o Pretinho aprendi certas safadezas, principalmente nas artes a que ainda não tivera acesso e que me faria um ser completo, como usar os seios, quando o desejo de me despir se fazia necessário e urgente.

Usei muito os seios e as mãos em mim, nas mulheres e homens com que trepei. Para se aprender uma arte é importante praticá-la. Se não me engano foi o nosso poeta João Cabral quem disse sobre outro pintor –

Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.

A experiência de Miró e as poses de Egon me fizeram aprender a usar o corpo para o prazer. Era ainda jovem, e o caminho que escolhera para vida me permitia algumas ousadias a que se chega apenas pelo entendimento sobre as artes. Tudo para que os bobocas e as bobocas ficassem de quatro por mim, sem saberem que o guizo lhes punha eu.


(Jurema Silva)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

día de muertos


día de muertos

vivo
en mi cuerpo
involucrada

tu
el tuyo
habitas

cambiamos de casas
en una
desesperación de partida

hoy

todos los bares ya anochecerán
cerrados
y  desnutridos.  


*día de muertos


vivo
no meu corpo
envolvida

você
o seu
habita

trocamos de casas
num
desespero de partida

hoje

todos os bares já anoitecerão
fechados
e desnutridos.  


(Lúcia Leão)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Quando o luar bate na relva


Alberto Caeiro, poeta personagem inventado por Fernando Pessoa, é tão fingidor quanto o próprio criador.
Caeiro está sempre negando uma relação de semelhança, que estabelecemos pela linguagem, entre duas coisas:

Aquela Senhora tem um piano 
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.

Entre a natureza: o correr dos rios e o murmúrio das árvores, e sua representação: os sons do piano; o poeta escolhe a natureza.

Num outro poema diz:

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

E noutro, estes versos, em que reafirma a primazia da natureza sobre a linguagem:

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

E por inteiro a canção XXXV, que será desmentida mais adiante quando este  pastor de rebanhos estiver doente:

O Luar Através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.


Alberto Caeiro não é uma pessoa, é um personagem; e como tal é linguagem. Não poderia desconstruir a linguagem  por inteiro. Desconstruiria a si mesmo.
Fingidor como Fernando Pessoa, seu criador, Alberto Caeiro, a criatura, adoece. E nesta doença fingida se reconcilia com a linguagem:


    XV

As Quatro Canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...

Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira
Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.

Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário.



A quarta canção:


XIX

O luar quando bate na relva
Não sei que coisa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...

Se eu já não posso crer que isso é verdade
Para que bate o luar na relva?


elesbão
(22/01/12)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Tenzone


TENZONE

Will people accept them?
(i.e. these songs).
As a timorous wench from a centaur
(or a centurion),
Already they flee, howling in terror.

Will they be touched with the verisimilitudes?
Their virgin stupidity is untemptable.
I beg you, my friendly critics,
Do not set about to procure me an audience.

I mate with my free kind upon the crags;
the hidden recesses
Have heard the echo ofmy heels,
in the cool light,
in the darkness.


Ezra Pound


TENZONE


Será que as aceitarão ?
          (i.é., estas canções).
como tímida fêmea perseguida por centauros
          (ou por centuriões),
Elas já vão fugindo, urrando de terror.

Ficarão comovidos pelas verossimilitudes ?
           Sua estupidez é virgem, é inviolável.
Eu vos imploro, meus críticos amistosos,
Não saiais por aí procurando-me um público.

Deito-me com quem é livre em cima dos penhascos;
             os recessos ocultos
Já têm ouvido o eco de meus calcanhares
             na frescura da luz
             e na escuridão.

(tradução de Mário Faustino)

domingo, 15 de janeiro de 2012

As edições de Carpeaux


Resenha Eletrônica  
 
   
   
 Uma história  da esperteza editorial
 Revista Época - 09/01/2012 
 
   
 O relançamento de "História da literatura ocidental", de Otto Maria Carpeaux, pela editora Leya, é uma cópia fiel da edição  feita pelo Senado. Antes disso, a Leya publicou uma biografia autorizada do presidente do Senado, José Sarney.
 
 
 MURILO RAMOS

 
 
 

História da literatura ocidental, de  autoria do austríaco Otto Maria Carpeaux (1900-1978), é  uma obra monumental. Um intelectual brilhante, radicado  no Brasil, aonde chegou em 1939 da Europa, Carpeaux, um  judeu convertido ao catolicismo para fugir do nazismo,  adotou o sobrenome afrancesado em substituição ao  original Karpfen, de origem germânica. Ele discorre na  obra, de forma fluente e erudita, sobre 8 mil  escritores, desde Homero, na Grécia Antiga, até os  autores modernos da década de 1970. Uma preciosidade de  fôlego enciclopédico, sem similares no mundo, a obra,  até 2011, só tinha tido três edições: uma em 1959  (Edições O Cruzeiro); outra em 1978 (Editorial  Alhambra), revisada e atualizada pelo próprio Carpeaux;  e a terceira em 2008 (editora do Senado). No fim do ano  passado, História da literatura ocidental foi relançada  pela editora Leya em quatro volumes, sendo vendidos ao  preço de R$ 179,90 exclusivamente nas lojas da rede da  Livraria Cultura (que coassina a edição).

Num  país ainda tão pouco afeito à leitura, o relançamento de  uma obra tão seminal só poderia ser digna de aplausos e  elogios. Não fosse por uma questão. À exceção da capa,  contracapa e das páginas iniciais, a edição da Leya (uma  editora comercial de origem portuguesa) é uma cópia fiel  da edição do Senado. Ela só foi possível graças a uma  daquelas ações financiadas em parte com dinheiro  público, bem típicas de certas rodinhas do mundo  cultural. A cópia feita pela Leya é tão flagrante que  até detalhes do projeto gráfico criado para os livros  publicados pela editora do Senado são reproduzidos na  nova edição. Uma das marcas características da coleção  de livros do Senado é um pontilhado nas capas e no alto  das páginas. A edição recente de História da literatura  ocidental da Leya reproduz o mesmo pontilhado em suas  páginas.

O projeto gráfico dos livros do Senado  foi feito pelo publicitário Achilles Milan Neto. Ele  venceu uma concorrência pública no fim dos anos 1990  para desenvolvê-lo e recebeu R$ 10 mil na ocasião (cerca  de R$ 24 mil em valores atualizados). Milan Neto  frequentou as dependências da Gráfica do Senado para  adaptar suas criações às necessidades específicas e aos  equipamentos de seu cliente. "Defini espaçamento, corpo  da letra, entrelinhas e a capitular que seriam usados  nos livros. Deixei uma espécie de apostila com  orientações aos servidores do Senado", afirmou. Ele se  declarou surpreso com a reprodução de seu projeto  gráfico na nova edição do livro de Carpeaux e disse que  consultará advogados para saber se terá direito a  receber parte dos recursos obtidos com as vendas  realizadas pela Leya.

A Leya teria feito, então,  um plágio descarado da edição do Senado? O problema não  pode ser resumido assim. A editora portuguesa fez  questão de dar os créditos do projeto gráfico do miolo  do livro a Milan Neto (mesmo sem seu conhecimento), de  registrar um agradecimento ao Senado pela "cessão dos  direitos da obra" e de atribuir a edição ao  vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, Joaquim  Campelo Marques. O próprio diretor editorial da Leya,  Pascoal Soto, reconhece que houve uma cópia da edição do  Senado. "Reproduzi a edição que ele (Campelo) fez. É  igual. O Campelo me autorizou a fazer do jeito que eu  fiz e estou orgulhoso disso", disse Soto a  ÉPOCA.

Para copiar a edição da forma como foi feita, o mais barato e rápido, para a Leya, seria simplesmente reimprimir um arquivo digital recebido do Senado. Mas Pascoal conta outra história. "O Senado não cedeu nada. Tenho a edição impressa. Temos recursos para  reproduzir. Digitamos e reproduzimos tal como foi feito  pelo Senado", diz. Essa é uma versão considerada pouco verossímil pelos conhecedores dos meandros das impressões gráficas. "Seria um trabalho gigantesco para a Leya digitalizar as imagens para pôr no mesmo formato da edição do Senado", diz o editor José Mário Pereira, dono da editora Topbooks.

A história da cópia da  edição da História da literatura ocidental poderia se  limitar a uma trapalhada nota de rodapé, mal contada por  seus autores, não fosse a proximidade da Leya com o  presidente do Senado e do Conselho Editorial, José  Sarney (PMDB-AP), e o vice-presidente do Conselho,  Joaquim Campelo. A biografia autorizada de Sarney,  escrita pela jornalista Regina Echeverria, que traça um  retrato simpático do político do Maranhão, foi publicada  pela Leya. Na semana passada, Sarney também entregou à  editora seu livro de memórias, que deverá ser publicada  no segundo semestre deste ano. A Leya, segundo confirmou  Pascoal Soto, também examina a possibilidade de publicar  um dicionário de autoria de Campelo.

Maranhense  da cidade de Viana, Campelo, de 80 anos, é amigo de  Sarney desde a década de 1940, quando estudaram no mesmo  colégio. Campelo foi amigo de Carpeaux, ajudou a revisar  a edição de sua obra pela Alhambra em 1978 e ganhou fama  ao auxiliar Aurélio Buarque de Holanda na elaboração do  dicionário mais conhecido do Brasil. Casado com  Margarida Patriota e cunhado do ministro das Relações  Exteriores, Antonio Patriota, Campelo assessora Sarney  desde a Presidência da República, no fim dos anos 1980.  Ele era responsável por preparar discursos para o então  presidente e por ler documentos importantes antes da  assinatura presidencial. Como vice-presidente do  Conselho Editorial do Senado, comanda a editora do  Senado. Foi ele quem negociou com Soto a edição recente de História da literatura ocidental.

A suspeita  de que a Leya foi favorecida é reforçada porque havia  editoras concorrentes interessadas na reedição da obra  de Carpeaux. José Mário Pereira, da Topbooks, disse que prepara a edição de História da literatura ocidental há alguns anos e foi surpreendido com o relançamento da Leya. "Estimo gastar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil com os três volumes que vamos lançar. Esse é aproximadamente o montante economizado pela Leya quando o Senado cedeu os direitos da obra à editora", diz Pereira. "O Senado ajudou uma editora estrangeira. Por que escolheu ela?"  No cálculo feito por Pereira, estão as previsões de  despesas com pesquisas, revisões e  digitalizações.

Tanto Sarney como Campelo  defendem-se e dizem que não houve nem favorecimento à  Leya nem cessão de direitos de História da literatura  ocidental, uma vez que se trata de uma obra de domínio  público. Uma obra torna-se de domínio público 70 anos após a morte de seu autor ou quando o autor não deixa  herdeiros, caso de Carpeaux. Mas há aí também uma confusão. Segundo a advogada especializada em direitos autorais Sônia Maria D"Elboux, ainda que uma obra seja de domínio público, uma editora que se utiliza da criação intelectual de outra, constituída pela seleção, organização ou disposição desse conteúdo estará violando direitos autorais. "Para que haja proteção autoral,  exigem-se criatividade e originalidade", diz  Sônia.

Para o público interessado em literatura,  o relançamento da obra de Carpeaux trouxe um duplo  benefício. Além de tornar o livro mais acessível a novos  leitores, a reedição permitiu uma redução do preço pago  pelos quatro volumes. Até o final do ano passado, a  História da literatura ocidental, editada pelo Senado,  só podia ser comprada pela internet ao preço de R$ 200.  Alertado de que a Livraria Cultura vende os quatro  volumes a R$ 179,90, o Senado, na semana passada,  resolveu baixar seu preço para R$  170.

Mais uma

À consulta sobre as interpretações da Melodia Sentimental, soma-se esta de Maria Bethânia. Decidam. Mônica Salmaso; João Bosco; Elizeth Cardoso ou a de Bethânia. Eu continuo com a de Elizeth.

Maria Bethânia - Melodia Sentimental

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Mariinha, o cônego e o doutor


Mariinha disse quando foi ao confessionário da Igreja. O cônego era ser amigo já de alguma data. Com os proverbiais segredos de alcova e sacristia, se entendiam às maravilhas. Se o padre dava a extrema-unção e acalmava a consciência pesada das moças; Mariinha, a grande senhora, oferecia de seus préstimos e de suas pupilas, é claro, para as pequenas obras da igreja e era quem fazia a ceia do natal de jesus cristinho da casa paroquial.

Eram perus que não acabavam mais, farofa de miúdos, rabanadas e, preferência do cônego, baba de moça, bem molhada. O religioso se refastelava. Mariinha, que ali se introduzia com cuidado, passando por uma porta lateral e vestida à moda de então, capa de boiadeiro e chapéu, se via na condução da cozinha enquanto era pronunciada a missa da meia-noite. Quando o padre – solitário – voltava tudo estava pronto e Mariinha já voltara para sua casa onde presidiria o natal dos desertados da cidade. Deixava apenas uma das suas moças para servir a janta do clérigo.

Tantos foram os natais em que a cena se repetira que foram aos poucos se descuidando e como era inevitável cruzaram-se o cônego e Mariinha, nas antessalas da casa. Meio atrapalhados, os dois se cumprimentaram e travaram um pequeno diálogo sobre seus negócios. Como estavam bem se despediram e foram cada um a cumprir o papel que lhes cabia.

Quando já morto o cônego e Mariinha envelhecida, em uma consulta, me contou que, na famigerada noite, a frase que o padre soltara quase ao acaso e que lhe ficara na cabeça durante anos foi como uma absolvição de seus pecados. Circunspecto dissera “você sabe, Mariinha, que, neste mundo de Deus, a única coisa que dá mais que minha paróquia é sua casa e suas meninas”.

Levantou-se, despediu-se e me disse com a cara mais santa que podia “hoje, Doutor, eu pago a consulta, o que, sem dúvida, não aceitei”.


(Oswaldo Martins)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Acervo origens

http://soundcloud.com/acervo-origens/tracks?page=1


Enviou-me o Paulinho esta maravilha! Clique para conferir.

Abraços,
Oswaldo

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL


I - AVE-MARIA

       Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

       O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

       Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

       Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

       Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

       E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

       E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

       Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

       Vazam-se por arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

       Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

       Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


II - NOITE FECHADA

       Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

       E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

       A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

       Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas,
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

       Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

       E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

       Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

       Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Ao lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

       E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

       E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.


III - AO GÁS

       E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

       Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

       As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

       Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

       E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

       Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

       Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

       E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

       Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

       Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros,como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tomam-se mausoléus as armações fulgentes.

       “Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim?


IV - HORAS MORTAS

       O teto fundo de oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de transmigrar.

       Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

       E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

       Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

       Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

       Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

       Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

       E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

       Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

       E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

       E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


(Cesário Verde)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

a voz do anjo 8


quem ali cede aos movimentos
dos mínimos ritos sacrificiais
cede os seios, a boca, a vida

a cama – rosa dos tormentos –
quê das noites dúcteis demiúrgicas
colinas que empilho no sonho

permanente dos vícios – a hora quê
não bate e sempre as cinco lebres
os navios dos navegadores ilúcidos

singram o desespero ordenado das
últimas vestes da artesania na nudez
que vela a lícita filha morena

de zeus

(oswaldo martins)