terça-feira, 27 de junho de 2017

1

o aniquilamento

nas ações sobre o acaso dos dementes
resta a estultice dos nefastos
julgamentos

quando dispõem das vozes os astutos
se deuses fossem os que julgam
rompem-se naufrágios

a pimenta do reino curte nos amavios
que se faz água e insossa voz
dos arautos penosos

como patos bem vindos servem com ares
de grão-senhores o vestuário
sem freios da vendeta                             

(oswaldo martins)

terça-feira, 20 de junho de 2017

memórias sentimentais de um leitor randômico 2

1

Sempre gostei de ler autores que nunca li e alguns a que volto continuamente. Dentre estes últimos está o Sergio Sant’Anna, autor de grande capacidade crítica e percepção da vida, talvez seja hoje nosso principal autor vivo, o que não é pouco. Seu último livro, O Conto Zero, determina uma ordem de leitura que permite o leitor passear por pelo menos cinquenta anos de literatura.

2

A dura escrita de Cesar Cardoso disfarça-se de humor, mas é rascante e ferina, como o rasante de uma ave rapinante. Seus Urubus – procure, leitor desatento, saber deles – abrem voos sobre a fabricação da vida, abrem voos sobre as feridas expostas do nosso cotidiano. Assim como Sérgio, Cesar nos faz passear pelos milênios da boa literatura, sem conceder uma mínima brecha que seja ao sossego burguês de todos nós. Mas o que mais me delicia nos livros dele, e nesse, em particular, é a presença da prosa poética que atinge os limites da perfeição.

3

Não gosto da literatura umbigo. Não gosto da literatura como verdade – lembra-me o coitado do Alvarez de Azevedo que queria nos dizer a verdade, toda a verdade. Não gosto da poesia sentimental. Não gosto da literatura que põe a emoção antes da palavra, a palavra antes da sintaxe, da sintaxe como torneio para o nada dizer. Por isso não gosto de Bilac, nem de Quintana. E não tolero o tolo Casimiro e duvido muito, mas muito mesmo, de quase todo o século XIX brasileiro. Quem nos salva o século é Machado, é Souzandrade e talvez a putaria explícita do único Guimarães possível, o Bernardo.

4

Cruz e Souza tinha pretensão demais, acabou poeta católico.

5

Cuidado, Adélia!


(oswaldo martins)

CLASSIFICADOS 1 – CONTENTAMENTO

Para Gabriela Amaral

É um bom emprego. Trabalhar com água é muito agradável, melhor do que com gente.
Primeiro tampo a pia, depois abro a torneira e deixo encher. Quando a pia está cheia, pego o conta-gotas e faço a sucção. Daí é só sair da casa, atravessar a ruazinha de terra e já estou na praia. Vou até o mar e esvazio o conta-gotas. Depois volto e repito a operação até esvaziar a pia. Então é só encher de novo e recomeçar.
Tem alguma coisa a ver com as marés, mas eu ainda não entendi muito bem. O importante é que eles estão contentes com o meu trabalho.


(Cesar Cardoso – Urubus em círculos cada vez mais próximos – editora oito e meio)

domingo, 18 de junho de 2017

rescaldo

cigarros no cinzeiro fazem-se quimeras vãs
quietos falam de coisas sob nossas cabeças
murchos e amassados pendem e fingem-se
desapercebidos da vida que queima os rins

o fósforo brilhará nas lixeiras ou nas covas
a que é destinado o corpo dos desprezíveis
acessos de tosse daqueles que por ventura
estarão ali ao lado - prontos para o consolo

a mão na bunda das boas senhoras vetustas
que à sopa dos arranjos sociais se percebem
vivas e caminham solícitas à amizade proba
dos velhos que de esguelha olham de banda

para sentirem na medida a exatidão a oferta
do ombro amigo e o cálculo da lágrima caída
no prato sujo de cinzas que se deixou findar
à espera da mão dos dias para os porem fora


(oswaldo martins) 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

de braços dados


a minha amiga anda a esquecer
nem sempre se  lembra
é compreensível estamos velhos
vamos esquecendo aos poucos

levei-a hoje à feira-livre
que há na rua em que mora
compramos jabuticabas e as uvas que ela gosta
recusei-lhe goiabas por não poder comer

quase se aborreceu comigo
por hesitar comprar uma posta do peixe que ela queria

amanhã
é mais certo depois de amanhã

hei de levar a minha amiga a passear
em lugares por onde andamos
e de que ainda possa se lembrar

elesbão ribeiro

14/06/17

quarta-feira, 14 de junho de 2017

El Sacrificio


Y estas ganas de matar
no a un ser vivo, oh no, no, no
jamás a un ser inocente…
Yo quiero matar,
sacrificar a un dios,
ese que no sabe nada de la vida ni del amor,
y volverme hacia mis criaturas
con las manos y la boca bañadas de sangre
para poderles decir:

“Amores míos, os he vengado”

Papá, mamá:


Qué solos estamos
sin nuestra Mili, sin nuestro Argán
tratando de armar con el cansancio,
con la rutina,
algo parecido a la felicidad,
como quien prepara un plato de comida
con las sobras de un festín.

(Malena de Mili)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

fora da margem do naufrágio

1

o silêncio queda  
na espessura da borda

os acessos de tosse
dos moradores de rua

tangem gados
de cabeça alta

2

nos colchões rasos
um piolho canta

o mundo incômodo
em vigília

guarda objetos
próximos ao cosmo

3

verruma um pedaço
de pau um dente de
alho podre um prego
de metatarsos pegos
o espeto das garrafas
bebidas o para além
do corte da sedação


4

depois faz as trouxas das salivas
e se põe fora como um engolidor
de lua



(oswaldo martins)

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Memórias sentimentais de um leitor randômico

1

Jorge Amado, no A descoberta da América pelos turcos, vai, nas primeiras páginas da novela, classificar as bocetas. A classificação que mais chamou minha atenção – até porque a personagem principal é detentora de uma – foi a boceta de chupeta. O desgraçado me fez até hoje buscar por essa boceta – néctar dos deuses.

2

Foi no Emissário do Diabo, de Gilvan Lemos, que li pela primeira vez a proximidade de Deus com o sexo. Não com o sexo etéreo dos anjos, mas o sexo carnal, lambuzado e sofrido, como uma consciência pesada. Desde então tenho procurado desafiar as alturas do divino.

3

Li – não sei mais onde – uma entrevista, decerto – um autor alemão dissertar sobre a questão da leitura, ou melhor, do gosto pela leitura. Dizia o tedesco que fez seus filhos se apaixonarem por livros, deixando no banheiro alguma obra libertina, como se fosse um esquecimento. Apliquei o método com meus filhos. Acho que deu certo. Por isto, agradeço ao Decamerão, ao grande poeta português Bocage e ao velho Aretino. Entretanto, agradeço à boa literatura que Henry Miller nos deixou, certo gosto por obras ousadas e pelas nomeações claras dos desejos.

4

Mais que por Bukowski, encantei pela nudez de Ornella Mutti que contracena com Bem Gazarra, no filme de Marco Ferreri, Crônica de um amor louco. Depois que li o americano, continuo preferindo o filme.

5

José de Alencar é bom para fazer chorar, de raiva.

6

O livro de contos do Carlos Drummond. Como contista, o poeta mineiro é tão ruim como o Machado poeta, com aquelas baboseiras sobre a Carolina. Romântico e babão.

7

Junikiro Tanizaki tem um livro que me encanta mais que os outros escritos por ele. Elogio da sombra. Entre as diversas narrativas e descrições preciosas que nos dá, diverte-me imaginar que os haicais tenham sido escritos enquanto os poetas, fazendo uso dos belos banheiros da tradição japonesa, se demoravam a ouvir o barulho do riacho que lhes levava as fezes e permitia a permanência das sensações. Depois disso achei os do Leminski, poeta curitibano meio bobos.

8

Agrada-me menos a voz possante do velho deus da Bíblia. Mais a voz mansa de Safo e dos amores ilícitos. Salvo os cânticos de sacanagem de Salomão.

(oswaldo martins)

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Píndaro

A sorte dos mortais
cresce num só momento;
e um só momento basta
para lançar por terra,
quando o cruel destino
a venha sacudir.

Efêmeros! Que somos?
Que não somos? O homem
é o sonho de uma sombra.
Mas quando os deuses lançam
sobe ele a sua luz,
claro esplendor o envolve
e doce é então a vida.  

sábado, 3 de junho de 2017

seu domingos


1

o santo toca
pelos baixos

na voz pausada
como um doce

de cosme e damião

2

se de oitiva
são os baixos

perpétuos agudos
grudados

na alma brasileira

3

que de gritos
baixos

ressoam sobre
os homens

a terra nua

4

em garanhuns
gadanha

a cintura baixa
e fina

das moças italianas

5

os baixos
da sanfona nordestina

na voz rouca
da pinga, de paraty

na voz rouca
da farinha, de suruí

na voz rouca
do fumo, de baependi

um que os pariu
pros conde d’eu

de agora


(oswaldo martins)

mais-valia


1

na esquina de uma rua vizinha aquela em que moro
há um rapaz a assar frangos inteiros
e aos pedaços
numa churrasqueira
ela deve ter um metro e vinte
está na calçada
exposta à poeira que os carros e ônibus levantam
perguntei-me ao ver o rapaz sobrecarregado de peças ainda cruas
se ele chegaria em casa com a féria inteira
do dia
ou se apenas com uma pequena parte(salário) que lhe dará o patrão
que há de estar à espera dos lucros
que lhe darão outros rapazes
de outras esquinas


2

num bairro mais distante
mais perto do centro da cidade
dos dois lados da linha férrea
em vias de muito movimento há muitos lava-jatos
por cinco reais
grupos de pessoas a acenar ao modo das meretrizes
são adultos e jovens e adolescentes-meninas e crianças

também ali me pergunto se o grupo leva pra casa
ao final do dia
os cento e cinquenta reais dos trinta carros lavados
ou se terão direito só a trinta moedas

uma moeda
por cada carro lavado


elesbão ribeiro

28/05/2017