terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Carta aos puros

Amigos,
Que 2009 nos seja leve!
Desejo meu para vocês.




Carta aos puros


Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens ilumidados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o homem alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

(Vinícius de Moraes)

sábado, 20 de dezembro de 2008

Poema do dia

Tenzone

um ouro de provença
(ora direis) uma doença
de sol um sol queimado
desse vento mistral (que doura e adensa)
provedor de palavras sol-provença
ponta de diamante rima em ença
como quem olha a contra-sol
e a contravento pensa.

(Haroldo de Campos - a educação dos cinco sentidos)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O caleidoscópio

1
para silvano e nancy
faça rodar o caleidoscópio
sinta

nada vibra
senão ele mesmo

na maravilha
que gira

(oswaldo martins)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A propósito, uma letra do Haroldo Barbosa

Não se aprende na escola

Dom Pedro disse fico
E ficou, que maravilha!
Mas quem ficou com Pedro
Foi a dona Domitila
Não se trata de invenção
De quem não tem boa cachola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Depois do casamento
Todo mundo tem vergonha
Papai que está nervoso
Põe a culpa na cegonha
A cegonha leva fama
Não reclama e não dá bola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Napoleão primeiro
Sempre soube que ele é
Mas foi com Josefina
Que aprendeu a manobrar
Josefina tinha um jeito
De prendê-lo na gaiola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

Semente dá um broto
Diz a história natural
O broto dá uma encrenca
Quase sempre desigual
Se não sabe então que guarde
Esse conselho na cachola

Isso não se aprende na escola
Isso não se aprende na escola

(Haroldo Barbosa)


A letra da música exposta acima faz lembrar meu pai, quando a cantava, levando-nos a mim e a meu irmão para a escola. Uma bela lição de insubordinação e visão crítica. Gosto da gravação que dela fiz Aracy de Almeida, uma das minhas cantoras prediletas.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Poema de Hu Xudong

Doors

My bizarre apartment building
has sixteen doors, big and small.
These doors ape each other, fighting for no reason –
every day, each one struggles
to distinguish itself from the others.
For example, Cafeteria Door 1 and Cafeteria Door 2
are only ten centimeters apart, but when it’s drafty,
Cafeteria Door 1 insists on crying guanglang while Cafeteria Door 2
always squeaks zhizhi yaya. It’s the same
with Kitchen Doors 1, 2, and 3,
where the odor of cheese, hot pepper, and onions
pervade the space. Because I hate cheese,
I never enter the kitchen through Door 1. The conflict
between Door 1 and Door 2 of Bathroom 1
is irreconcilable. If I need to take a shit, I have to go through Door 1
and come out through Door 2. Otherwise, I’d never close the doors right
and the smell of garlic from the toilet would fill the building.
Sometimes it’s too confusing, and I’d rather
go to Bathroom 2 to take a shit, but Bathroom 2
is a little annoying – it’s also
Door 2 of my roommate Carlos’s room.
When Carlos comes out to brush his teeth, I have to say good morning
while I’m squatting on the toilet. These peculiar doors
play nasty practical jokes on each other.
When my lonesome bedroom door is in a good mood,
it will imitate my neighbor Paulo’s
hedonistic bedroom door, and one day
after Paulo’s girlfriend with the enormous tits used Bathroom 3,
she came back to the wrong room. These days, it’s Christmas break,
my roommates have all gone home, and I’m alone
in the apartment looking after these sixteen bizarre doors.
This afternoon, as a storm came through,
I threw open all the doors and closed them again,
chanting to them: four times four is sixteen.
Sixteen days until I can open
my little door in China.

12.26.04, Brasília
trans. Eleanor Goodman and Wang Ao

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A porta de Elvira

a porta de elvira

para elvira vigna, que me fez uma homenagem numa linda porta


porta com seus caralhinhos voadores
qual em um soneto de odores sujos
recende a palavras rudes e a verbos
que celebram os vagidos da vulvas

onde esta porta neste soneto inscrito
se faz a emoção dos líquidos puros
como lapa ou os banheiros ou muros
do subúrbio inscrevem atrevidos

cus bucetas e os velhíssimos números
para contato das putas dos veados
dos homens que cirandam recriados

pelas ficções da arte dos grafites
a óleo a caneta a sangue nos ventres
desalinhados: porta-soneto, em riste.

(oswaldo martins)

Um emprego para o til

(Um emprego para o til antes que a reforma ortográfica acabe com ele também)


inu~

Cesar Cardoso

domingo, 7 de dezembro de 2008

Jorge Coli (Folha de São Paulo Caderno Mais 12/10/08)

Oswaldo Martins, especialista em literatura erótica, é também poeta. Um ou outro de seus poemas, em livros e no blog http://osmarti.blogspot.com/, contém palavras mais fortes. Alguns elaboram desejos físicos de maneira delicada e sem evidência imediata. O blog é inteligente, carregado de amor pela literatura; os poemas são bons. Essas qualidades bastaram para que a Escola Parque [no Rio], em que Oswaldo Martins lecionava português, o demitisse, como contou, no domingo passado, o Mais!. A miopia moralista da escola, dos pais, de "psicólogos e juristas" evocados no texto, miopia que desencadeou o caso, assusta pelo "obscurantismo e a certeza dos censores", na expressão do próprio professor despedido. Censura e obscurantismo, no caso, não são singulares e episódicos. Eles se inserem na mentalidade de nossos tempos regressivos, marcados por puritanismos, por fundamentalismos religiosos, pelo maniqueísmo das convicções, pelo gosto doentio em patrulhar, controlar, vigiar e punir. É bem difícil lutar contra tudo isso porque essas manifestações se fazem com parcimônia, gota a gota, disfarçadas, em nome de álibis austeros. Aqui, trata-se de proteger as crianças, que, como todos sabem, são anjinhos imateriais, feitos de etérea e cândida substância, não de carne e osso. Mas quem os protegerá, e a nós todos, do mal que existe na cabeça desses educadores, desses pais, desses psicólogos e juristas, que nunca disseram um palavrão, que estão incólumes de pulsões pecaminosas, e que, senhores da moral, transformaram-se em juízes? Quem nos protegerá dos puros?
(Jorge Coli - Folha de São Paulo - Caderno Mais em 12/10/08)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Na cadência do samba

Para Cesar Cardoso, presente na cadência do samba
Muitos são os sambas, muitas a cadências. Carlos Cachaça, Nélson Cavaquinho. Cartola. Geraldo Pereira. Nelson Sargento. Lembro-me quando os ouvi pela primeira vez. Um espanto. Como podia? Os menestréis me davam resposta em seus próprios sambas, na elocução com que escandiam cada sílaba, cada acorde. Fiquei e fico parado ouvindo, como uma unção. O samba em Mangueira.

Gosto de ouvir música sem luz ambiente, em treva total. Mergulhado no significado, construção daquilo que ouço. Já ouviram o violão do Nelson Cavaquinho? Só o violão, abstraindo o canto? É como um mergulho na loucura, nas ficções mais complexas já criadas pelo homem. E tudo é tão simples.

Depois Oswaldo Cruz. Monarco, Mijinha, Casquinha, Argemiro. Os Paulos. Outro espanto. Outra unção. Os homens rudes de meu país são pessoas delicadas, capazes da transparência mais ousada do sentimento humano. Pedreiros, forjadores, lavadores de carro, figuras do ruído urbano transformado. Tudo tão límpido, claro com que ao alcance da mão.

Depois ainda a Serrinha. Unção. Espanto. Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola. Wilson das Neves. A extrema função do batuque, do acompanhamento de fundo de quintal, como uma bateria potente de ritmos insuspeitados. A voz dos ex-escravos. Da nobreza do samba. Já ouviram a limpidez da voz de Dona Ivone? O requebro de cabrocha soando em nossos ouvidos, retinindo como o cristal dos corpos em requebro sonoro.

Apaguem depois os violões, os pandeiros, as cuícas. Ouçam a voz com que cantam nossos cantores. Dizia o Nelson Cavaquinho que achava sua voz uma voz que melhor cantava, pois recriava o ambiente da emoção da criação. Do porre, da sujidade embelezada pela angústia, pelo trágico movimento dos homens pela cidade, saudosos, ressequidos e abandonados.

Um parêntese para a voz madura, já envelhecida, dos que entraram em estúdio tardiamente, no canto sublime de Guilherme de Brito. Meu deus! A beleza se revela de forma integral.

(oswaldo martins)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

retrato subjetivo para paloma

la paloma de pablo ruiz
la paloma de olhos abissais

de cabelos negros

la bela paloma
de chinelos roxos

e colo largo

(oswaldo martins)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Modigliani


3
escrevo
palavras de fogo

quando nua
desata

os nós
de minha conduta

(oswaldo martins - minimalhas do alheio)