segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

5

no louvor de sua língua
um traço de leveduras
acalanta o visgo
o broto florente

do despudor



(Oswaldo Martins)

domingo, 30 de dezembro de 2007

Musse de musas - Introdução

sou cavalo de deusas úmidas
algumas chorosas outras suadas
uma (que também mereço) secreta
o quase caldo a textura
que acalma minha língua

mas uns versos dão-me todas
em troca de tréguas e glosas
e as deponho, inquérito e falácia,
parcas, vírgulas de nossas vidas

pororocam-se as moças
mousses de outra onda
deliro deltas, mouses e morses
deslizando meu rio
no branco por jogar

um tento é das musas
outro do furto de mim
meu canto é assim
rap dó de peito
rock de breque
eco de senzalas

e teletelas

taí o meu palpite

e quem quiser acredite
no poder da criação
(do paulinho e do joão)

Calíope está aqui

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Cantarolar

Caminhar com ela pela orla a conversar desinibe braços e mãos que se ajeitam em ir e em vir enquanto falamos e olhamos pra nós e em volta de nós as coisas e a gente que também passa por nossa voz e por aquele mar. A voz meio soprano dela cantarolou distraída de mim e de si três vezes no meio da rua por onde seu olhar passeia por fora de nós. Surpresa suave de quem se expôs um pouco sem controle absoluto ela teve quando perguntei sobre seus cantos rápidos entregues ao descuido de quem fala sozinha.

Cláudio Correia Leitão

Poema do dia

sofro de necessidades vegetais
quando o tempo sufoca
e o nariz seca numa aridez deslumbrada

o campo do horizonte quase nunca se
alarga
mesmo a 150 quilômetros por hora
por isso ando nestes dias
devagar

o carro não excede. piso no acelerador
e apenas penso melhor
nas curvas

na estrada nacional 120 não
há gente, nem bichos
apenas paisagem

numa construção ácida
e bela
(Dora Ribeiro - Teoria do jardim)

Trabalhos da mão

O relatório americano
sobre tortura no Brasil define costura
como procedimento
de atirar seguidamente da cabeça do prisioneiro até atingir os pés
Costura do nada de dentro, numa travessia
de extermínio
para que nada reste. Nem o som do grito
cortado pela agulha bala.


Quando você fala não é a alma
é a palpitação V
em contracanto
com o que soou no alto.

A poesia vive do mínimo
e de vestígio.



Luiz Fernando Carvalho
24/01/2007

Na esquina da rua ao lado daquela em que moro

Na esquina da rua ao lado daquela em que moro, há um sujeito que expõe, sobre um tabuleiro, objetos velhos e mais do que usados. Estão ali à venda.
Nas primeiras vezes em que o vi, perguntei-me se ele conseguia vender e sobreviver daquilo que vendia. Certamente.
Vende e sobrevive, pois vejo-o lá há mais de dez anos.
Exibiu, durante dois ou três dias, um rádio em caixa de madeira, ou uma caixa de madeira antiga de rádio. Achei o preço exorbitante. Vendeu.
Vendeu enquanto eu pensava uma segunda vez.

Quando troquei por disjuntores os velhos fusíveis que alimentavam a luz desta casa, ofereci-lhe todo "sistema". Ninguém mais usa isso, disse-me ele; mas, por insistência minha, acabou ficando com tal sucata. Vendeu ou jogou fora?

Há pouco, tive de substituir a cafeteira elétrica. Custei muito a trocá-la, mais pelo modelo e pelo afeto que lhe tinha, do que por avareza. O tanque d'água vazava e não há mais peça de reposição na praça. Encontrei uma, modelo parecido

Aprendi: quando se compra uma coisa de que se gosta, devemos comprar a mesma coisa no dia seguinte. No terceiro dia, já não está mais no mercado. Como a boca já está torta, leva-se muito tempo a encontrar outro cachimbo que se lhe ajuste.

Levei a parte elétrica da cafeteira para a loja em que costumava consertá-la. E depois... não se joga fora aquilo por que se tem afeto.
Pode ser útil, disse ao rapaz da loja. Fiquei com o jarro e o suporte do coador. Foi o que usei, enquanto relutava para usar a nova cafeteira.
Só depois me lembrei do homem-brechó. Poderia lhe ter dado, ainda que com defeito, a cafeteira completa; mas já era tarde.

Hoje fui até ao tal belchior com uma cúpula de abajour sem lâmpada, com um chuveiro elétrico que não aquece, com um cesto de lixo usado( desses que a Casa e Vídeo vende) e quatro fitas-cassete-audio, virgens, ainda embaladas.

Já tinha oferecido as fitas, não quiseram. Tornei a oferecê-las pelo caminho a uma vizinha, também não quis. Ninguém usa mais estas quinquilharias - tornei a me dizer. Quem sabe, eu ainda posso usar no automóvel?-pensei.

Desta vez, o alfarrabista disse aceitar tudo e ainda me perguntou o qu’eu tinha na outra mão. .
Ou por avareza,
ou por mesquinhez,
ou por não querer lhe estragar o negócio.
não lhe dei o que tinha na outra mão.

Abraqos!

Elesbão

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Recomendações de Leitura 6

1 – A trégua – Mário Benedetti – Objetiva – 2007 (trad. Joana Angélica D’Avila Melo)
2 – Erec e Enide – Manuel Vásquez Montalbán – Objetiva – 2007 (trad. Paulina Wacht e Ari Roitman)
3 – Kant em coma – André Rangel Rios – 7 Letras – 2006.
4 – Pietro Aretino – Pornólogos I – Degustar – s/d (trad. J. M. Bertolote).
5 – Honoré de Balzac – A Vendeta – L&PM – 2006 (trad. William Lagos).

Meus pensamentos de mágoa

Bóiam leves, desatentos
Meus pensamentos de mágoa
Como no sonho dos ventos
As algas cabelos lentos
Do corpo morto das águas

Bóiam como folhas mortas
À tona de águas paradas
São coisas vestindo nadas
Pós remoendo nas portas
Das casas abandonadas

Sono de ser sem remédio
Vestígio do que não foi
Leve mágoa, breve tédio
Não se pára se flui
Não sei se existe ou se dói

(Fernando Pessoa)

Um cão chamado Buck

A leitura sempre foi tida como instrumento capaz de dar ao leitor algumas capacidades cognitivas, tais como o aprimoramento da escrita e da ortografia. Sempre foi justificada nas escolas por professores, pais, coordenações, a partir desse truísmo. Lê-se para que se possa melhor escrever. Durante anos, essa “verdade” freqüentou nossos ouvidos e falas. É hora de desmistificá-la.

O que faz com que uma pessoa escreva bem não é a leitura, mas os estudos da língua e, sobretudo, uma boa alfabetização. A leitura de bons textos, sua apreciação sistemática e rigorosa, constrói para o indivíduo uma outra perspectiva. Ligada de maneira profunda à percepção da vida, a leitura é uma atividade cotidiana, que se faz desde o momento em que se percebe a possibilidade de interagir com o mundo. Sair de casa, alimentar-se, ir até a esquina, essas cotidianidades só são possíveis porque o indivíduo lê. A aquisição de uma maior capacidade de leitura permite ao indivíduo e à coletividade, a qual ele pertence, uma maior competência para compreender os significados do cotidiano e, mesmo, a habilidade de romper com eles.

Se, entretanto, a leitura permite ao indivíduo que viva inserido em uma sociedade e com ela interaja, sua atividade pode representar um salto qualitativo nesta inserção. E, diga se de passagem, tal inserção não está na habilidade de escrever dentro de uma norma, mas na capacidade de com ela romper, de, a partir deste rompimento, conseguir fazer com que o leitor reorganize o mundo ao qual pertence. Descubra que novas estruturas subjazem ao que se costuma chamar realidade.

Para isso é necessário que alguns hábitos sejam relidos. Por exemplo, o costume de dizer que se devem adotar textos que despertem prazer e que a leitura deve se aplicar a este prazer é também um truísmo que acompanha a prática das aulas de língua e literatura. O aluno não vê, nos conceitos históricos e geográficos e mesmo científicos, prazer algum, e, no entanto, tais conceitos devem ser aplicados, para que o repertório de leitura do aluno se amplie. Algo de semelhante ocorre com a leitura.

A leitura de textos consistentes e literários, se adotada dentro de uma outra ótica, permitirá que os saberes entrem em confronto, que a ótica do exato seja permeada pela dúvida. Se se pensa em aquisição de saber continuado e inter-relacionado, a adoção de um livro deve mirar não apenas o descontínuo do saber, mas a sua ligação profunda com os pensamentos, com a percepção da dúvida, pois se sabe que nenhum saber descreve a verdade.

Tomem um exemplo. O conceito de evolução darwinista não permite que se pense em involução, o indivíduo se adapta ao meio físico para poder sobreviver. A leitura de um livro como O Chamado Selvagem, de Jack London, ilustra esse processo de adaptação, quando Buck, o cão doméstico é seqüestrado e levado para os rigores do frio e da luta pela sobrevivência no frio Alaska. Até aqui nada demais, poder-se-ia tomar o caso de Buck como meramente ilustrativo da teoria de Darwin. Entretanto, a voz que se ouve não é a de um homem, mas a do próprio cão. Em diversos momentos, essa voz relembra a antiga vida e, ao relembrá-la, inevitavelmente a percepção de uma perda – de uma “involução”, que é também moral.

Ora, se a leitura se amarra nestas duas perspectivas, a científica e a moral, como fazer para balizar a discussão? Vejam a riqueza que o texto traz. Permite que, sobre uma “verdade” científica, outras perspectivas se mostrem e promovam no leitor uma espécie de angústia construtiva, por não permitirem que a verdade seja posta de maneira inquestionável. É armado da dúvida que o leitor/aluno vai construir o seu saber.

Se mais tarde, quando o aluno estiver cursando o ensino médio e ciente de maneira mais madura dos processos da vida e tendo experimentado a dúvida, pedir-se a ele que leia O Cortiço, de Aluísio Azevedo, novamente terá de se deparar com a questão da evolução/involução.

Aqui não se trata mais de um cão, mas de um homem. Jerônimo. O português emigrado, para sobreviver à miséria humana do cortiço deverá se transformar. De homem trabalhador que era ao malandro típico dos trópicos, sobre Jerônimo, e com ele sobre todo um povo, – que somos nós – pesará a verdade revelada por Aluísio de Azevedo. O trópico preguiçoso, malandro, estará fadado, pelas condições do meio físico, a ser sempre um ser menor, um povo menor.
O leitor que aprendeu a desconfiar das verdades não se contentará com a aceitação pacífica destes termos e, sem que ele de imediato se dê conta disso, verá a leitura (e a literatura) não como um apêndice do saber, mas como a formuladora da dúvida, como o objeto – único – que permitirá a ele se contrapor inquietamente às verdades institucionalizadas.

Ao longo deste aprendizado – e vejam que só se escolheu um – o leitor encontrará prazer na leitura. Reconstrua-se, portanto, a reflexão. O prazer negligenciado anteriormente se revelou, então, uma estratégia para o texto ser adequadamente lido e o prazer de sua leitura ampliado.

Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2007.
Oswaldo Martins

sábado, 22 de dezembro de 2007

Flashes de morte mínima

O que é que se vê
Quando se está em cima ou em baixo?
Niente, nichts, quase nada
Nuvens, nuvens, nuvens
E mil sabores
Do clique de imagens
Inspiração, expiração
rosto passando
No filme que você roda
Pra pegar o instante
Em que o rosto viu a luz
E insiste em brilhar


Luiz Fernando Carvalho
Set 2006

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

SEI que é doloroso um palhaço...
SEI que estou / no último degrau da vida...
SEI que amanhã / quando eu morrer...

Insistem num saber essas letras que GB fez para NC. A primeira pessoa afirma o saber e destitui o ser, que deixa de ser pressuposto.

Ex.: "Nelson canta." A identificação do sujeito pressupõe sua essência: "Nelson é, logo canta." Nas canções não: há uma espécie de antecedente ontológico. Nelson sabe, logo é.

Mas o saber se realiza no canto. É a voz que dota de identidade da letra. O canto constitui marca, diferença e sentido.
Então o saber da letra fica o que qualquer saber pode ser, no máximo. Promessa, devir. O sabido se faz descoberto. É por isso que a morte, a lágrima do palhaço que se anunciam com certas, revertem-se em SIM! e em samba.

... volta que a platéia te reclama
... não posso esquecer o meu passado
... me dêem as flores em vida

Alexandre Faria
Agradecido por me convidar pro seu blog.

1

velhos elefantes
se sentam nos bancos da praça
e nada mais fazem.

por isso ao sentarmos
em tais bancos

soletramos as palavras
da despedida

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Chiquinho

Sucedeu que, ao passar pela pequena cidade, Chiquinho, quando voltava de uma longa caçada, encontrou-se em precisão de mulher-dama e alívio para a alma cansada. A cidade era apenas passagem, para que chegasse a casa, depois dos dois meses de ausência. Lá o esperariam ansiosos os amigos, as mulheres e os filhos, todos prontos para a série de histórias que sempre Chiquinho contava, em meio ao cheiro dos assados que ora aqui ora ali oferecia para celebrar sua volta e grandeza.
A caçada, embora longa, não lhe dera grande satisfação, fora uma adição enfadonha de fatos corriqueiros. Nenhum veado, apenas pequenos animais, como as perdizes e os coelhos foram abatidos. Trazia cestas cheias, mas vazia era sensação de vitória; poucas eram as histórias, temia decepcionar a assistência cativa, que lhe justificava a ausência. Com este estado de espírito, buscava descaminhos, atalhos e cidades em busca de inspiração e novidades. Daí que parou em Tugúrio, a cidadezinha perdida.
Dirigiu-se à praça em que todas as ruas davam, para indagar da zona. Indicaram-lhe o caminho. Um pouco afastada, a casa que procurava ostentava em uma de suas janelas uma mulher, que mexia com os cabelos, tinha o semblante triste, mas cantava para si uma cantiga ligeira.
__ Tardes...
__ inh?
__ Anh, zona?
Ajeitando os cabelos, a dona confirmou. Chiquinho, que não via mais ninguém senão ela, estica o pescoço, procura olhar o interior da casa. Ao ver algumas portas entreabertas, um ambiente morno e convidativo, baixa o tom de voz, que se torna melosa, e pergunta se sabia quais eram as mulheres que davam ali? A moça faz um rodeio enorme no cabelo, olha Chiquinho e diz:
__ Mulheres que damos aqui somos eu, aquela lá, na penteadeira, mas que tá com os ovário podre e aquela outra – e mostrou uma mocinha que suspirava, sentada numa espécie de sofá – que se amigou com o doutor prefeito. E conclui com um meneio gracioso das mãos convidativas:
__ De modos que... mulheres que damos aqui somos eu...

Diálogos com Luiz Fernando

Oswaldo

Veja o que você pode responder, mesmo que às pressas, na lata. Seria bom ler suas respostas e/ ou indagações.

Questões:

1. O efeito da mimesis é o mesmo do esperado na teoria de Iser?

A mimesis, pelo que me parece, como o Costa Lima a apresenta, é um sistema de representação que sofre a intervenção do leitor, isto é, que é produzido quando o leitor atualiza os dados da obra que lê. Neste sentido, o pensamento de Iser, quanto a formulação do fictício, entra em contato com a teoria da mimesis, já que pressupõe o contato entre os três níveis de oposição. O real, o fictício e o imaginário. Entendo assim: a obra, por si só, não é capaz de produzir sentido, ela depende da percepção do leitor. A transgressão de limites que torna o imaginário o “como se” de um real, o real um “como se” do imaginário. A inversão desta polaridade básica só pode ser operada pelo fictício que assim se definiria. Ora, se é produção de um imaginário a partir de um real e ao mesmo tempo a produção de um real a partir de um imaginário, não me parece estarem distantes os conceitos da mimesis de Costa Lima e a Teoria do efeito estético de Iser. Há diferenças, é claro, que se notam a partir da idéia mesma provocada por Iser, ou seja, a partir do momento em que a operação do texto se dá, a construção de sentido se faz. Enquanto que, na mimesis, há a necessidade de uma atitude do leitor, em ser necessariamente crítico. Acho que é isso. Veja lá.

2. Iser inverte o primado de anterioridade do campo de referência. Pela estrutura do "como se" é o campo de referência que passa a ser mostrado ou revelado pelo fictício investido pelo imaginário. Nesse caso entende-se porque Iser possa afirmar ser a sua teoria de base não-mimética, pois a mímesis implica uma disposição para a anterioridade do objeto mimetizado. Haveria outra possibilidade e entendimento? Há somente divergência ou convergência em algum ponto entre as duas teorizações?

Acho que haja outra possibilidade de entendimento, sim. Pois a mimesis se produz em todos os campos da linguagem, neste sentido, tanto o mínimo traço da experiência surge da percepção de uma mímesis que se nega enquanto mímesis, quanto o seu traço máximo – a ficção que se toma como ficção – pode sugerir a capacidade de entendimento não de uma percepção anterior do mundo real, mas da percepção da criação deste mundo que se torna, a partir da mímesis, real. Por exemplo, se um garoto finge ser o super homem ele o é e não é, mas ao sê-lo atualiza a percepção de uma experiência que só pode se dar no nível do imaginário. Isto é, o imaginário passa a ter uma existência palpável. A própria ciência que se quis como interprete do real sofre um revés e se determina a partir de um imaginário que se forma para torná-la real. Neste sentido a teoria da mímesis é necessariamente também não mimética, ou seja, não parte do objeto a ser reproduzido e modificado parte da necessidade de criar um objeto que ao mesmo tempo seja o objeto e sua negação.


3. A noção de jogo em Iser é radicalmente oposta à noção de mímesis?

Não creio. Acho que a mímesis e a teoria da recepção estética se encontram nesta terceira margem – local ao qual apenas a linguagem tem acesso – isto é, mimesis e Iser são teorias da autonomia da arte em relação à postura platônica de sua condenação como simulacro.




4. O capítulo Terra em Os Sertões se mostra mais explanatório do ponto de vista da mímesis ou do ponto de vista do conceito de fictício investido pelo imaginário?(o mesmo se pode dizer para " Meu tio, o iuaretê"?)

A terra em Os Sertões não é simplesmente a terra, mas a cadeia lógica de um raciocínio. Serve para que Euclides possa desenvolver convincentemente seu arrazoado. Se a gente pensar bem, o discurso sobre a terra em Euclides é, de algum ponto de vista, retórico, pois vai ser peça importante para a montagem do argumento de condenação da Guerra de Canudos. Neste sentido sua paisagem seria entendida como uma mímesis clássica. O problema é que, com o suporte da teoria da mimesis, desenvolvida pelo Costa Lima, pode-se perceber que a fantasmagoria da terra – que é a fantasmagoria do Homem e da Luta – é criação não só retórica, mas criação de sentido, o que favorece a percepção da atuação do mimético como formulador que ultrapassa a realidade dada e inamovível, sem que mesmo o escritor se dê conta disso.

.
Luiz Fernando: Questões
Oswaldo Martins: Resposta

Recomendações de Leitura 5

1 – A Sátira e o Engenho – João Adolfo Hansen – Atelier Editorial e Editora da UNICAMP – 2004
2 – Estrutura da Lírica Moderna – Hugo Friedrich –Livraria Duas Cidades – 1978
3 –Literatura Alemã – Otto Maria Carpeaux – Nova Alexandria – 1994.
4 – Gustave Flaubert – Henry James – 7 Letras – 2000
5 – Tal Brasil, qual Romance? Flora Sussekind – Achiamé – 1984

Mínima para Tarde

Os seis poemas que fecham o livro Tarde, de Paulo Henriques Britto, denominam-se Crepuscular. Apresentam, como núcleo reflexivo a inoperância da palavra por inventar, a inoperância da palavra poética. Tudo já tendo sido dito, o que resta ao poeta é senão tergiversar sobre o que dizer. Na lição de Luiz Costa Lima, em análise de outra grande poeta contemporânea, Dora Ribeiro, a poesia deve afastar de si tanto o clichê quanto o conceito. Este é o risco que corre o poeta de Tarde e do qual se livra.

No poema 5, à afirmação de que “toda palavra já foi dita”, segue-se a indefinição paradoxal da própria poesia que se pode fazer hoje – as “palavras tardias” valem quando criam a vertiginosa lucidez. A idéia do tardio nos afastaria de toda expressão da leveza e da alucinação. Tanto o absinto quanto o ópio – em que nossa alma se cura, na formulação pessoana – estão vedados, posto que o permitido por eles é já agora parte do senso comum.

Afastam-se assim do espectro do poema não só as delicadezas românticas, mas o próprio cerne da modernidade, no que ele tem de mais caro – a impossibilidade de dizer. O que não se disse e o que já foi dito tornam-se o dizer de Paulo Henriques Britto.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Mariinha

Mariinha, a de saudosa memória, a sábia puta. Lembro-me dela, já velhinha, saracoteando daqui para ali. Um dedo de prosa, um olá simpático, um “como vai o Doutor” marcavam nossa conversa pelas ruas da cidade. Às vezes a acompanhava, às vezes não. A todos reconhecia e cumprimentava, fora de muitos pais alcoviteira; dos avôs, amante. Das esposas era a confidente eterna. Tratava carinhosamente os netos e filhos de seus clientes, via se já estavam taludos e prontos para o ofício da vadiagem, mantinha-se informada sobre a sua descendência.
Conhecia as putas de então, as visitava, aconselhando, assim como aconselhava as senhoras mais antigas sobre a vantagem de manterem os lares intactos e seus esposos cativos. Não chegava a ensinar truques, mas indicava e percebia, num lampejo de felicidade, a alma humana em suas semelhanças.
Uma de suas máximas se aplicava de forma distinta para o mesmo problema. A paixão era sua serva e ensinava a todas serem senhoras de seus amores, que se vedavam às putas e se incentivavam nas mulheres casadas e moças casadoiras. A sábia Mariinha, a mais íntegra e completa senhora que povoou os Gerais.
Num dia em que a acompanhava até sua casa, carregando suas compras, convidou-me para tomar um café. Serviu-me a beberagem rala, como era costume; para si, um bom gole de pinga. Falou para que me sentasse e perguntou à queima roupa:
__ Antão?
Respondi-lhe com minhas dúvidas. Estava apaixonado por uma moça de sua antiga Casa, e minha família queria me encaminhar em direção a certa mocinha da cidade.
__ Adelina e Adélia? Perguntou confirmando o que já sabia. Seu pai tem orgulho de ocê ser com’ele. O mundo não tem pressa, filho. Adélia já sabe, avisei. Puta num tem paixão, num pode ter. Se tem, num chega longe e ocê – encarou-me com rigor e brutalidade – num há de querer, num né?
__ Isso significa que Adélia...
__ Gosta, sim, de seus chamegos. O meu foi o Doutor – sinto seu cheiro até agorinha – ele sabia, gostava de saber. Mas puta que se amasia tem jeito não, abre é espaço para as outras. O Doutor se regalava com os prazeres que eu lhe dava. Eu e as outras. E emendou:
__Os tempos são outros, sei. Já estou velha. O amor mudou e quase já não se ama como antigamente. Cada um quer o seu pra si, uma burrice, pruque assim o amor se vai, some, acaba. Uma burrice, num acha?
Levantou-se, me deu a mão, as faces e abriu-me as portas do mundo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Sabedoria

Alguns temas da música popular brasileira sempre me intrigaram. Por exemplo, o do desejo de ganhar algum dinheiro nas diversas formas de loteria. Fundado pelo excepcional Etelvina, o tema é um dos mais constantes cânones de diversas músicas de nossa tradição popular.

O desejo de enriquecer tem matizes bastante curiosos. Não significa que o enriquecimento determine a alforria do trabalho, nem um montante de dinheiro capaz de proporcionar ao indivíduo uma forma de vida diferente da que leva. As soluções são mais comezinhas. Pagar o aluguel, as dívidas, ou mesmo permitir que a noitada seja boa, mesmo alguma cantada para impressionar a dama do momento, como na belíssima música, Cabrochinha, interpretada pela Mônica Salmaso, e composta por Maurício Carrilho e Paulo César Pinheiro.

Na contramão do dito, percebe-se como os desejos indicam toda uma carência, toda uma opressão, impressos que estão num cotidiano de dívidas, de amores frustrados. Na vida desglamourizada, sonha-se com um menu “chique”, para a cantada, e com o alívio das prestações, para a descompressão dos salários.

A vida dos magnatas interessa pouco. A ela as pessoas ‘normais’ preferem os botecos, sem que seja necessário pendurar a conta. Aos compromissos, a capacidade de aproveitar a vida. Sonha-se com dinheiro para gastá-lo, como deve ser.

Certa feita, ao ter meu velho carro estragado, no Leblon, – arrebentou qualquer coisa nas rodas – fui buscar o mecânico que cuidava do velho Corcel. Ao passarmos pela Lagoa, Bolinha comentou, numa frase síntese e deliciosa, não saber como as pessoas conseguiam morar naquele lugar, já que lhe faltavam os botequins de esquina.

DEFRONTE

Desfiei conversa como um xerazade pra não afastar pra sempre de mim aquela tez defronte de domingo azul e quente e mar quando ela outra vez encheu-me as mãos vazias de gestos sem casaco pra desajeitar nem camisa torta pra endireitar.

(Claúdio Correia Leitão)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Teoria do Jardim

o teu vento
brilha no tempo do jardim

revelando um passado mineral

quando as rosas
cresceram vermelhas e
radicais
(Dora Ribeiro)

Recomendações de Leitura 4

1 - Em louvar da sombra (ensaios) - Junichiro Tanizaki- Cia. das Letras. 2007 (trad. direta do japonês Leiko Gotoda.
2 - Poemas da Antologia Grega ou Palatina. Diversos autores. Cia das Letras. 1995. (trad., nota e posfácio de José Paulo Paes.
3 - Aposta - André Rangel Rios. 7 Letras. 2007.
4 - Um além mais erótico: Sade. Octavio Paz. Mandarim. 1999.
5 - Floema. (Caderno de Teoria e História Literária - especial Luiz Costa Lima) Outubro 2006. (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia).

Orelha do minimalhas do alheio

Cabritos, cabras vadias e da peste


As minmalhas sucedem aos desestudos nos versos produzidos pelo poeta Oswaldo Martins, esse leitor sul-americano da poesia do Ocidente.


Reafirma-se com o presente livro o arguto observador muito pessoal e coletivo de poesia, artes plásticas, do samba e da fronteira derruída entre a pornografia e o erotismo perverso.


Em rota de colisão com todas as fronteiras rígidas, a fatura econômica dos versos de minimalhas do alheio vem marcar vários pontos para a poesia bem realizada, contra as polêmicas verborrágicas ou cocôs cheirosos de cabritos, cabras vadias, maniqueístas ou da peste.


(Cláudio Leitão - Tiradentes, maio de 2002)

Cabide de Molambo

Meu Deus, eu ando
Com o sapato furado,
Tenho a mania
De andar engravatado,
A minha cama
É um pedaço de esteira
E é uma lata velha
Que me serve de cadeira.

Minha camisa
Foi encontrada na praia,
A gravata foi achada
Na Ilha da Sapucaia,
Meu terno branco
Parece casca de alho,
Foi a deixa de um cadáver
Do acidente no trabalho.

O meu chapéu
Foi de um pobre surdo e mudo,
A botina foi de um velho
Da revolta de Canudos.
Quando eu saio a passeio,
As damas ficam falando:
“Trabalhei tanto na vida
Pro malandro estar gozando”.

A refeição
É que é interessante
Na tendinha do Tinoco
No pedir eu sou constante
E o português,
Meu amigo, sem orgulho,
Me sacode um caldo grosso,
Carregado no entulho.

(João da Baiana)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

FIAR

Ela chegou com a tarde azul e quente e o sorriso outra vez me deixou tagarela de tão mudo no que sinto com ela em seu desviar olhares sobre a blusa clara e sob a pele em tom de tez enquanto revimos os filmes rodados na memória e no mar ali (ela), domingo de conversa desfiada.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Em Louvor da sombra 2

Com sua ímpar capacidade de transformar tudo em poema, nossos antepassados acabarampor converter em ponto de extrremo bom gosto o mais insalubre aposento da casa, unindo-o a manifestações de incomparável formosura da natureza - flores, pássaros, brisa ou luar - e a uma cadeia de concepções poéticas repletas de nostalgia. Comparada à atitude ocidental de ver a latrina como algo deletério, impróprio até para ser citado em público, anossa é mais sábia, compreeendeu o substrato do requinte.

(Junichiro Tanizaki Pag. 14)

Em louvor da sombra 1

Mas como abeleza sempre se desenvolve em meio à realidade do nosso cotidiano, nossos antepassados, obrigados a habitar aposentos escuros, descobriram beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as sombras para favorecer o belo. Realmente, a abeleza do aposento japonês é apenas gradação de sombras, nada mais nada menos.
(Junichiro Tanizaki pág. 31)

Enviou-me Dora Ribeiro

Querido amigo, invejo este teu diálogo público. Parabéns. Li hoje um texto do Borges sobre Kakfa do qual copio um trecho para partilhar contigo e com os teus leitores.

"(...) El hecho es que cada escritor crea sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el futuro. En esta correlación nada importa la identidad o la pluralidad de los hombres." (Borges sobre kafka)

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Recomendações de leitura 3

1 - O Redemunho do Horror - Luiz Costa lima - Planeta - 2003

2 - Mímesis e Modernidade - Luiz Costa Lima - Graal

3 - Alegorias da Leitura - Paul de Man - Imago - 1996

4 - Líquido e Incerto - Cláudio Leitão - EDUFF - 2004

5 - Vida e Mímesis - Luiz Costa Lima - Editora 34 - 1995

poesias marianas

3

de orfeu
fodido

hades
de eurídice

o mundo
em ladeiras

de pedra

Frígida

I

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

II

Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.

III

Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das mãos franzindo um lenço de cambraia!...
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!

IV

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!

V

Pudesse-me eu prostar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trêmulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...

VI

Cintila no seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.

VII

Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas da magreza e o lustre dos adornos!


VIII

Deslize como um astro, um astro que declina;
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.

IX

Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!

X

O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.

XI

Porém, não arderei aos seus contatos frios,
E não me enroscará nos sepertinos braços:
Receio suportar febrões e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.


XII

E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!

(Cesário Verde)