domingo, 29 de novembro de 2015

limiar. masculino/feminino

1.soleira da porta; luz e sombra; ritmo. 
2.fronteira em movimento, acontecimento; constante fazer-desfazer do encontro das ondas com a areia; espaço de vaga na retirada do mar. 
3.litoral corpóreo, véu encobridor do corpo, corpo feminino produzido no movimento de desvelar; aquilo que poderia ser revelado. 
4.espaço mínimo, buraco entre linhas: condição essencial da tessitura do texto e do tecido; a linha que costura fragmentos de tecidos, que agarra uma palavra à outra. 
5.toque do tecido no corpo; encontro entre a agulha e o corpo; estilhaçamento da letra contra o corpo. 
6.instante; por excelência, o lugar do ato.

(marina sereno)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Limiar

Sensação de um corpo primeiro, aquele corpo que está suspenso do signo e é só um arquipélago de corporeidades. Ele percebe que por mais extensa que seja a relação com as coisas, o outro é limiar, abismo, fenda. O corpo passa a ser pensado agora como limiar de si, é do corpo para o corpo, atravessa o corpo para chegar no corpo. Sua ondulação permeia como um litoral. O movimento que oscila o mar na areia é limiar, o desenho na areia é corpo. Limiar de si o corpo avessado, revira, retorce, enviesa, encontra os buracos, muda de posições rapidamente, isola membros, o corpo limiar é o encontro da palavra com a coisa.

(Júlia Fernandez)

domingo, 22 de novembro de 2015

sobre o manto

oswaldo martins sabe que há que dar de presente à linguagem (da poesia) a liberdade que só os destituídos - ou seja, os desprovidos daquilo que vulgar e eruditamente se chama razão, clareza e casticismo - conquistam no recolhimento diante das asperezas do mundo, dos homens e dos ditadores de normas.

(silviano santiago - no posfácio de manto)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Higrômetros singulares

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus — um soldado descansava.

Descansava... havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...


(Euclides da Cunha – Terra – Os Sertões)

Cida Moreira - 01 - Viola Quebrada (Mário de Andrade)

Breve Consideração à Margem do Ano Assassino de 1973 - Vinicius de Morae...

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

aforismos

1

lampiões de rua são construções ao ambíguo da luz

2

sombras dos movimentos em dia de chuva parecem menos sombras

3

mãos estão para a dança assim como o espanto

4

pés mitigam passos quando andam

5

mulheres são para a boca da noite tanto quanto homens

6

nudez na rua descontrói  os monstros civilizatórios; nos quartos, os constrói e afaga

7

porto algum de chegada; a busca de outro cais

8

quem convive com o poeta anos a fio percebe suas repetições mais finas

9

poesia é a tara das repetições

10

outro é a ficção de si



(oswaldo martins)  

Dois poemas de Safo



Outra vez Eros que dissolve os membros me tortura,

doce e amargo, monstro invencível,

ô Atis! E tu, cansada de prender a mim

o teu cuidado, voas para Andromeda.


**


Hoje ninguém mais se lembra

 de Anactória ausente.

Ah! gostaria de contemplar o seu andar arrebatador


e o brilho deslumbrante do seu rosto...

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

faca

os centímetros se soltam
alívio combalido

pendente  sem corpo
a cabeça do conselheiro

na ponta do sabre
como um ex-voto

a sânie torpe
urdida de silêncio

caminha

os miseráveis
de outra dicção


(oswaldo martins)