sexta-feira, 31 de julho de 2009

Alquimia

Como todos os príncipes, este tinha necessidade insaciável de liquidez. Precisava de muito ouro para manter sua corte, recompensar os vassalos fiéis, contratar seus terríveis mercenários, pagar os funcionários da chancelaria, quitar – sem muita pressa – os empréstimos, custear alguma fantasia dispendiosa, impressionar os embaixadores estrangeiros e os legados do papa... Num ritmo desses, era difícil equilibrar o orçamento: as rendas reais, os impostos e taxas de todo tipo já não bastavam. Na esperança de encher novamente seus cofres, o soberano se dedicava, de uns tempos pra cá, à alquimia.

(Contos e Lendas da Europa Medieval – escrito por Gilles Massardier - Tradução Eduardo Brandão)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Poema do Dia

XVII

Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sobre as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como ortigas

sugar vieram o esterco fumegante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; nesse instante,

os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depois as beijam como beijam lírios.

(Jorge de Lima – Invenção de Orfeu)

morena dos olhos verdes

por que estás triste morena de olhos lindos
sou triste porque meus olhos são mais bonitos do que eu


(elesbão ribeiro)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Filosofia barata

Há meses já não se ouve o economês. A crise do mercado teve tão estranho efeito linguístico?

Não, nenhuma coletividade esquece tão depressa seu dialeto.Mas, afinal, isso não tem maior importância: antes de se considerar "ciência exata", a economia costumava chamar-se "economia política" e, mesmo sem o economês, continua a ser.

A reflexão deriva de dois textos cuja única ligação está em terem sido lidos quase ao mesmo tempo. O primeiro dá profundidade temporal ao tema. Antonio Machado abria um pequeno texto de 1922 com a pergunta que atribuía a Pío Baroja [ambos escritores espanhóis]: com que deve, de preferência, preocupar-se o Estado do futuro? Com a produção de alta cultura ou de cultura mediana?Menos que a resposta do próprio Machado -"não esqueçamos que a cultura é intensidade (...) antes, muito antes que extensão e propaganda"-, ressalte-se a própria pergunta: ela se investe de uma incômoda atualidade.

Mas, afinal, resmungará o cético, que relação pode haver entre uma indagação formulada há quase um século, em um país distante, e o que se passa agora entre nós?Contra a suspeita de arbitrariedade, vale que logo se acrescente a segunda fonte. Em "As humanidades hoje, em tempo de indigência" (no jornal suíço "Neue Zürcher Zeitung), Hans Gumbrecht reflete sobre os ecos da atual crise econômica, nos ambientes acadêmicos norte-americano e alemão.

Traduzo o parágrafo decisivo: "As humanidades (...) são uma manifestação de luxo das sociedades ricas. Em tempos de crise, é melhor afastar-se delas. Uma outra direção, em troca, difundida sobretudo nas universidades alemãs, se intimida ante o fim de uma opulência, antes desconhecida, do apoio à pesquisa, e a ela contrapõe o seguinte argumento: a qualidade da interpretação, da escrita e do debate filosófico, literário e histórico basicamente independe da existência do campo correspondente de pesquisas particulares ou de cursos de pós-graduação. É o contrário do que sucede nas ciências da natureza, cujo êxito depende da possibilidade de pesquisas coletivas e da disponibilidade de uma aparelhagem técnica sempre nova. Uma discussão filosófica produtiva não custa mais do que as horas de trabalho dos que dela participam".

Papel do Estado

Para declarar por que o assunto nos toca, desenvolvo minha telegrafia. Considere-se, em primeiro lugar, a reflexão que o poeta Machado extraía de Pío Baroja. Presente em artigo de 1922, ela precede o colapso de 1929, antecessor do que hoje nos toca. Ou seja, a preocupação em o Estado investir antes em uma educação "básica" do que em uma "especializada" surge, nos países menos avançados, antes da primeira grande crise do capitalismo. Estranha menos, portanto, que ela ecoe em um "país em desenvolvimento" quase um século depois -trata-se de uma "afinidade eletiva".
Venho então ao que extraio da passagem de Gumbrecht. É possível que, também entre nós, não falte quem creia que isso de humanidades é um luxo descartável. Por que o digo? Seja pela maior abundância de bolsas de pesquisa e da oportunidade de realização de pós-doutorados nas áreas que "burrocraticamente" se insiste em chamar de "exatas", seja pela aceitação de nossas autoridades acadêmicas, em todos os seus níveis, de que a penúria de nossas bibliotecas é algo tão incontornável como um traço da natureza.Não adianta perguntar por que incontornável: não teremos resposta. Ora, se o governo já assim age, o que impede que os editores privados cada vez mais restrinjam a edição de obras que não lhes assegurem um alto retorno?

Mais grave do que tudo que se disse acima é o encaixe das duas posições acima referidas com a política pedagógica que vem sendo implantada desde o governo anterior: a política da horizontalidade dos cursos.

Concretamente, ela significa: abrem-se mais turmas, as universidades aumentam suas cotas de alunos por áreas, favorecem-se os docentes que se interessam por temas mais "leves", por fim, estimula-se o ensino à distância.


Maquiagem
Só pedantes elitistas, de espécie ignorada em um país culturalmente pobre como somos, seriam contrários ao incremento, em larga escala, da formação docente. Mas o que se observa não é incremento algum. É bastante óbvio que um mísero professor no interior dos Estados mais atrasados da Federação -e, por certo, não só deles- há de ter meios de minorar sua ignorância e, assim, de diminuir sua difusão entre os que o cercam.Mas, sob o nome de incremento à formação, o que passamos a ter usualmente é maquiagem e embuste, os quais, por cima, são incentivados em detrimento do ensino especializado. Não creio que isso se dê em toda a extensão da universidade brasileira. Mas sei que se torna o pão de cada dia na área das humanidades.

Nesta, a pesquisa especializada é quase impossível pela má qualidade das bibliotecas; pelos prazos exíguos para que os alunos concluam seus trabalhos, suas dissertações e suas teses; pelo pouco intercâmbio com outros centros. Desse modo, as humanidades se tornam cada vez mais semelhantes a parques zoológicos, espaços habitados por animais de uma espécie em extinção.

(Luiz Costa Lima)


O texto acima saiu no caderno Mais da folha de São Paulo.

desafio

Desafio
 
de Cesário para João
 
Olá! Bons dias! Em março
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Correm os trigos, que se movem
Às vagas dum verde garço!
 
Como amanhece! Que meigas
As horas antes do almoço!
Fartam-se as vacas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.
 
de João para Cesário
 
O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca
 
e fresca como o pão,
 
A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara
 
e fresca como pão
 
de Provincianas e de A Mesa

elesbão ribeiro

quarta-feira, 22 de julho de 2009

do livro das desimitações

4
desimitação de jorge de lima
para joão ângelo oliva neto


as palustres vacas abrem cortinas
comem astros

as borboletas do monturo
são como vides

libam com suas ancas
com suas asas

o deus polimorfo
itifálico

as vacas de asa
as borboletas de ancas

são mugidos
de vaginas nacaradas

(oswaldo martins)

domingo, 19 de julho de 2009

do livro das desimitações

3

desimitação de trakl
para ângela dias


no prado, a tortura. fingem silêncio
no azul os gatos pardos e descalçados.

foram-se os anjos um dia. tudo resultou
em noite oblíqua, nos sons reunidos

da fantasia musical que tudo toma
por isso o silêncio das trevas

o silêncio terroso desta cabeça de ébano
que os artistas fazem decapitar

sem azinhavre na ausência de rasuras
ou de reflexos na solidez das esculturas.

(oswaldo martins)

trakl

NACHTLIED

Des Unbewegten Odem. Ein Tiergesecht
Erstarrt vor Bläue, ihrer Heiligkeit.
Gewaitig ist das Schweigen im Stein.

Die Maske eines nächtlichen Vogels. SAnfter Dreiklang
Verklingt in einem. Elai! dein Anlitz
Beugt sich sprachios über bläuliche Wasser.

O! ihr stillen Spiegel der Wahrheit.
An des Einsaman elfenbeinerner Schläfe
Erscheint der Abglanz geíallenerEngel.

(Gerge Trakl)

CANÇÃO NOTURNA

O hálito do imóvel. Um vulto rígido
de animal no azul, sua santidade.
Poderoso é o silêncio da pedra.

A máscara da ave noturna. Um triplo
som morre num só. Elai! o teu vulto
dobra-se mudo sobre águas azuis.

Espelhos silenciosos da verdade!
Na fronte de ébano do solitário
surge o reflexo de anjos decaídos.

(tradução de Marco Lucchesi)

quinta-feira, 16 de julho de 2009

do livro da desimitação

2
desimitação de augusto dos anjos

recife. ponte buarque de macedo.
eu, indo em direção à casa do agra,
assombrado com minha sombra magra
pensava no destino e tinha medo!

(as cismas do destino do eu de augusto dos anjos)


o equilíbrio das vogais
e dos consoantes
vocábulos

umbra-me o colo de estrelas
a lógica do sóis enegrecidos

no corpo repleto de baratas
os enfeitados rinocerontes

pulsam lantejoulas
para o baile final

(oswaldo martins)

Poema do dia

Aos poetas antigos espanhóis

Da linguagem concreta iniciadores,
Mestres antigos, secos espanhóis,
Poetas da criação elementar,
Informantes da dura gesta do homem;
Anônimos de Castela e de Galícia,
Cantor didático de Rodrigo El Cid,
Arcipeste de Hita, Gonçalo de berceo,
Poetas do Romancero e dos provérbios,

Vossa lição me nutre, me constrói:
Espanha me mostrais diretamente.
Que toda essa faena com a linguagem,
Mestres antigos, secos espanhóis,
Traduz conhecimento da hombridade
(O homem sempre no primeiro plano).

(Murilo Mendes – Tempo espanhol)

terça-feira, 14 de julho de 2009

di CINEMA

por onde passará o seu pensamento,
por dentro da minha saia.

(adriana calcanhoto)

Primeiro, mandou-me uma sobrinha minha; agora manda-me uma amiga fotos de cinemas antigos desta cidade. EMOCIONANTE, diz a chamada. Mas o emocionante não foi escrito por elas, faz parte do pacote.
ESPANTADO foi como fiquei. Como podem ser apresentados como antigos os cinemas CARIOCA e AMÉRICA, ali na Sães Peña, se ainda há pouco estive lá com os meus filhos pequenos?!
Gosto dos cinemas antigos, mas também gosto dos cinemas atuais.
Antigamente, as sessões eram às duas, às quatro, às seis...ou às duas, às três e quarenta, às cinco e vinte... Podia-se entrar no cinema às duas e sair na hora do lobo. Podia-se entrar no meio da sessão, ver o filme do meio para o final e despois vê-lo do início para o meio. O expectador tinha a liberdade de transformar uma narrativa linear em não linear, ti nha a liberdade de fazer o seu flash-back.
Antigamente, comprava-se um saco de pipocas na carrocinha; agora, como os intervalos entre uma sessão e outra são maiores, a gente tem de ver um vassalo carregando para uma suposta princesa uma bandeja com sacos enormes de pipocas e refrigerantes.
Antigamente, tínhamos o azar, ou a sorte, de nos debruçarmos sobre a poltrona ao lado, porque o outro da frente nos impedia de ler a legenda. Agora como as poltronas estão dispostas em degraus e entre elas há um copeiro, temos de aturar o odor da pipoca e ouvir o chupão no canudo do refrigerante.
Mas os cinemas de hoje têm um bom som, uma acústica boa. Acho que isto sempre foi um atrapalho para o cinema brasileiro. O gênio rebelde gravava em som direto o filme que seria passado em salas pífias.
Os cinemas de hoje são pequenos, mas os grandes cinemas de antigamente tinham grandes filas.
Mas os melhores cinemas, de ontem ou de hoje, são aqueles que ainda têm poltronas no mesmo plano, sem degraus. Aqueles que ainda escondem, que ainda permitem que a mão boba percorra a namorada por dentro de sua saia.

Elesbão Ribeiro

terça-feira, 7 de julho de 2009

Recomendando Leitura 15

1 – Uma longa Idade Média – Jacques Le Goff. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2008.

2 – Mito e pensamento entre os gregos – Jean–Pierre Vernant. Paz e Terra. São Paulo. 2008
3 – O filósofo e o comediante – Franklin de Matos. Editora UFMG. Belo Horizonte. 2001
4 – Jogos e enganos – Sebastião Uchoa Leite. Editora UFRJ/Editora 34. Rio de Janeiro. 1995
5 – O ato da publicação – André Rangel Rios. Booklink. Rio de Janeiro. 2007

sábado, 4 de julho de 2009

antiode para a senhora parker

I
balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
(frígida – cesário verde)

alexandria foi uma biblioteca na qual os homens liam o que lhes aprouvesse o gosto
ali reinou hipátia, a sábia, que teve do corpo arrancada a pele
foi são cirilo quando se tornou patriarca
foram seus asseclas, os padres
os capadócios da nova igreja
da moral e dos costumes
que expuseram seus dogmas, dogminhas e virgindades infaustas

ah, senhora parker, mulher de príncipes,
filha de barões,
até quando servirás de giolhos
aos come-quietos
até quando a soletração emprenhará teus ouvidos
e, torquemada particular, terás de enfrentar as verdades
que te escapam e às quais não possuis respostas

parker, parker, os teus goyas terão de servir-te sem arte
criarão o óbvio como se como se reinventassem a roda
como se reinventassem a roda da tortura os alicates para
arrancar as unhas a conversão anódina da ilusão com a qual,
vangloriados, exporiam os cristãos novos.

parker, mulher danada, vendedora de sonhos,
os seus cães rugem e se aquietam – parecem-se com os cães de herculano, com os cães do inferno vendendo óbolos medievais para os pobres do reino que se extasiam com a morte das princesas iguais a ti.

dianas, berenices, elizabeths, princesas que não cabem no diário, que não cabem nas mãos dos usuários
e, no entanto, insistis.



II
pausadamente lembra o silvo das jibóias e a marcha demorada e muda dum fantasma.
(frigida – cesário verde)


vês aquela jibóia pendurada na parede?
devorou duzentos séculos de liberdade
vês aquela jibóia pendurada na janela?
devorou duzentos homens
vês aquela jibóia pendurada na soleira?
devorou duzentas crianças
duzentas crenças

vês aquela jibóia?

tem a pele limpa e asséptica se lava todo dia toda hora com os sabões importados da casa harrods
usa perfumes franceses
come fiambres espanhóis
e pastéis de nata portugueses, depois limpa a boca com guardanapos de privada autenticidade empoada

e sai contente para as ruas, dizendo:
__Ai Jesus, se esse neguinho me pega
revirando os olhinhos sonhadores

Ai, senhora, sois dessas madames?
III
eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante
(frígida – cesário verde)

uma sílfide diriam alguns
erínias, fúrias – megera gorda, transvertida
em elegantes cacoetes de senhora
bruxa a quem roubaram o espelho circular

velha senhora,
hécate, vai-te daqui

deixa que os sonhos reinventem as auroras
e que as hipátias dirijam as bibliotecas
os goyas construam seus monstros devoradores das sombras
e de edificantes senhoras que, como tu, assombram
como fantasmas inconclusos

os paraísos perdidos

(oswaldo martins)