terça-feira, 30 de abril de 2019

Os sinos da agonia de Autran Dourado, mestre


De dentro da névoa que a claridade do sol matinal vinha desfazendo, começou a se movimentar a procissão de Corpus Christi. Agora de repente a noite virou dia luminoso e o sol brilhava intenso. Estranho, a procissão se parecia demais com o aparatoso cortejo que o Capitão-General mandou preparar para a sua execução. As mesmas gente e irmandades, só que no cortejo do enforcamento não havia santos e andores, carros triunfais e figuras de Ventos e Planetas, a não ser os padres e o cruciferário. Quando Mulungu apareceu rebrilhando negro como untado de alcatrão, numa estátua de bronze, soberbo.

[...] Agora seguia de longe a procissão, os olhos maravilhados. O cruciferário erguendo alto o Cristo de prata, todos se ajoelhavam se benzendo à sua passagem. Mulungu, o peito nu, brilhoso. O que estava fazendo ali o preto Mulungu? Não, não era sonho, ele sabia apesar da nitidez diáfana, do brilho das coisas. Procurava atribuir a presença de Mulungu à cabeça cansada, à sua confusão de espírito. Também não era coisa que Isidoro tivesse contado, nada ainda tinha acontecido: a sua prisão no Sabará, a sua fuga da cadeia, a
conversa com o carcereiro, a despedida do pai. A sua morte em efígie ainda ia acontecer na praça, veria pelo branco acastanhado dos olhos de Isidoro, raiados de sangue.

E tudo ele via nítido e preciso, como se as coisas existissem sozinhas e isoladas e não misturadas e embaralhadas, cinzentas. Com um olho lúcido, agudo e imóvel de relojoeiro montando e desmontando complicado engenho. Ele via de novo, revia

(Autran Dourado – Os sinos da agonia)

segunda-feira, 29 de abril de 2019

conselheiros


conselheiro 1

o estorno das palavras afunda
a voz nas cercanias

nega-se até a exata
designação das coisas

quando o dizer cala
a face enruga

e o corpo nu
marca as aras

e as sustenta
de enxugamentos

no oco
da lucidez


conselheiro 2 

destampa o vau
dos bons conselhos

faz com que os rios
de areia seca

transmudem-se
labirintos

em que a escuna
dos fiéis

braceja pelos mares
da alucinação

constrói casas
que se subissem

os montes santos
a escada de jacob

(oswaldo martins)

segunda-feira, 22 de abril de 2019

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR



Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.


Matilde Campilho



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sábado, 20 de abril de 2019

desimitação para castro alves


o auriverde tribuno
(que deus beija e balança)
morreu e se safou
das portas da academia

saído das pernas de eugênia
o gênio das palavras aladas
se auto louvava

cruz e credo!
tal qual um senador
do império

(oswaldo martins)

sexta-feira, 19 de abril de 2019

desimitação para cora e mário


o aparelhinho de ver longe
pouco enxerga no banco
de dados consabidos

sem acaso o poeta
repete os ulalás
do repertório

e tome, distraído,
a velha senhora goiana
com de permeio

um docinho de coco
e uma palavrinha
que ninguém é de ferro

cujo passarinho passarinha
e rebola da rio-são paulo
até o passadiço da beócia

(oswaldo martins)

terça-feira, 16 de abril de 2019

a indeterminação objetal


a medida do impossível se destaca
nos objetos fartos de precisão

uma cadeira – o objeto bruto
compõe-se de espaços e tempos

ou

o braço amigo que te enlaça
tudo faz parte do equívoco

a que soterrados se percebem
os homens contra a nulidade

do espavento

(oswaldo martins)


Janela


quarta-feira, 10 de abril de 2019

a criatura iníqua


górgona faz dançar
as extensas serpentes da opressão

medusa pede rostos
com que emparedar os coxos

esteno, náusea e dor
incentiva no corpo do leproso

a euriale que se põe ao largo
para saborear o sobejo dos despojos

(oswaldo martins)

terça-feira, 9 de abril de 2019

OS CINCO SENTIDOS


 Todos os dias o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.

Provérbio Bambara, Mali


Não há dia nenhum
em que os teus ouvidos
não oiçam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado escutar.

Não há dia nenhum
em que os teus olhos
não vejam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado observar.

Não há dia nenhum
em que o teu nariz
não inale

um odor que nunca antes
lhe foi dado a conhecer.

Não há dia nenhum
em que as tuas mãos
não tocam

em algo que nunca antes
lhes foi dado acariciar.

Não há dia nenhum
em que a tua boca
não prove

um sabor que nunca antes
lhe foi dado a degustar.

Não há dia nenhum
em que a vida,
o mundo,

os cinco sentidos
não te surpreendam.

− Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!


ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, ebriedades e ofícios. Lisboa: Maldoror Livros, 2018.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

o falso mendigo


pinguilim vivia deitado nos bancos
todos aqueles que rompiam anchos
satisfeitos de si a porta mágica
a virar a cara e a correr à socapa

daquele emblemático descidadão
calçado por tênis achados
calças largas e meias rotas
que lhe mostravam o dedão

voltariam sempre e sempre ali
o velho emblema os esperava
com a máscara de que fugiam

os édipos de olhos vagos
a julgarem as escusas do totem
que os acusava com desdém

(oswaldo martrins)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

o cozinheiro absoluto

para walnice

os utensílios enigmáticos
em seu preparo de licores

macios se desdobram
os deuses em suas iras

ferem a carne
fazem vagar o corpo

no tempero dos sabores
à primeira hora

seja cebola, alho ou kummel
revelam -se no toque afiado

em que a língua goza
a aguda forma de poema

(oswaldo martins)