quinta-feira, 31 de outubro de 2013

canção ao modo de brecht

a minha amiga hoje faz anos
a minha amiga não está perto de mim
leve florista à minha amiga esta flor do meu jardim

a minha amiga hoje faz anos
a minha amiga não está perto de mim
leve carteiro à minha amiga esta carta de mim

elesbão ribeiro


30/10/13

terça-feira, 29 de outubro de 2013

caverna

1

noturnos
bailam

a que rosto
indago

essa dança
dos demônios

embriaga

2

se houve
um dia

ali

o rasgo
apenas meneia

de longe
os dados

3

resta
a bosta

indago

a reatar
nos fios

os ares
da fumaça

4

a dança está nua
consigo

apenas dança
de dançar

seu bailado


(oswaldo martins)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Leitura de Poema



Lá no Água Grande
Alda Espírito Santo

Lá no Água Grande

Lá no "Água Grande" a caminho da roça 
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.  
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa 
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra 
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta. 
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio 
ficam mudos lá na hora do regresso... 
Jazem quedos no regresso para a roça.

(Alda Espírito Santo)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

o nome do poema é acarajé de pelo

1

às orelhas
a vênus audaz
a mulher do daomé

às orelhas
a antecâmara
do cotonete

as indutoras orelhas
fazem tudo ouvir

as orelhas põem algodão
no nariz do morto

2

às orelhas
o visgo dolente
o rasgo

às orelhas
o achado

da racha
de vênus

e da mulher do daomé

as orelhas
da nudez

3

exposto
acari roxo

para os olhos
idilícos
do leitor


(oswaldo martins)

Poema do dia

descartes

eu sou Rimbaud gigolô das artes
um dia perdi o senso
bailei fantasiado de Mefisto
bordei a lança no lenço
eu dispenso: logo não existo

(Geraldo Carneiro)


Poesia de São Tomé

Maputo, cidade índica

A Ungulani Ba Ka Khosa

A geométrica harmonia
que em ti se alonga
projecta a atlântica viuvez
da minha casa.

(Conceição Lima)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Ideia do comunismo

Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes manifesta-se através do exagero caricatural dos traços que distinguem essas classes e da sua transfiguração na relação sexual. Em nenhum outro contexto, nem sequer nas máscaras de carnaval, se insiste com tanta obstinação nas marcas de classe da indumentária, no próprio momento em que a situação leva à sua transgressão e anulação, da forma mais despropositada. As toucas e os aventais das criadas de quarto, o fato-macaco dos operários, as luvas brancas e os galões do mordomo, e mesmo, mais recentemente, as batas e as máscaras das enfermeiras, celebram a sua apoteose no instante em que, estendidos como estranhos amuletos sobre corpos nus inextrincavelmente enroscados uns nos outros, parecem anunciar, com um toque estridente de trombeta, aquele último dia em que eles terão de apresentar-se como sinais de uma comunidade ainda não anunciada.

Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa de semelhante a isto, na representação das relações amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração para a arte clássica na sua fase final. Na união sexual com um deus, o mortal, vencido e feliz, anulava de um golpe a infinita distância que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, esta distância restabelecia-se, ainda que invertida, nas metamorfoses da divindade em animais. O meigo focinho do touro que rapta Europa, o bico sagaz do cisne inclinado sobre o rosto de Leda, são sinais de uma promiscuidade tão íntima e tão heroica que se nos torna, pelo menos durante algum tempo, insuportável.

Se procurarmos o conteúdo de verdade da pornografia, imediatamente ela nos mete diante dos olhos a sua ingénua e simplista pretensão de felicidade. A característica essencial desta última é a de ser exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião: qualquer que seja a situação de despedida, ela tem infalivelmente de acabar com a relação sexual. Um filme pornográfico no qual, por um qualquer contratempo, isto não acontecesse, seria uma obra-prima, mas não seria um filme pornográfico. O strip-tease é, neste sentido, o modelo de toda a intriga pornográfica: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas numa determinada situação, e o único espaço deixado ao imprevisto é o do modo como, no fim, elas têm de reencontrar-se, agora sem roupa. (Nisto, a pornografia recupera o gesto rigoroso da grande literatura clássica: não pode haver espaço para surpresas, e o talento manifesta-se nas imperceptíveis variações sobre o mesmo tema mítico). E com isto pusemos a nu também a segunda característica essencial da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião que se aproveitam, mas nunca uma condição natural, nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversário mais aguerrido da pornografia; e do mesmo modo que um filme pornográfico sem acontecimento sexual não teria sentido, também dificilmente se poderia qualificar de pornográfica a exibição pura e simples do sexo no ser humano.

Mostrar o potencial de felicidade presente na mais insignificante situação quotidiana e em qualquer forma de sociabilidade humana: essa é a eterna razão política da pornografia. Mas o seu conteúdo de verdade, que a coloca nos antípodas dos corpos nus que enchem a arte monumental do Fim-de-século, é que ela não eleva o quotidiano ao nível do céu eterno do prazer, mas exibe antes o irremediável carácter episódico de todo o prazer, a íntima digressão de todo o universal. Por isso, só na representação do prazer feminino, cuja expressão é visível apenas no rosto, ela esgota a sua intenção.

Que diriam os personagens do filme pornográfico que estamos vendo se pudessem, por seu turno, ser espectadores da nossa vida? Os nossos sonhos não podem ver-nos – e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor boa regra de toda a leitura – deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

“Um dia se mostrará que o mundo já há muito tempo que possui o sonho de uma coisa, da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir verdadeiramente”. Certamente que sim – mas, como se possuem os sonhos, onde é que estão guardados? Porque aqui não se trata, naturalmente, de realizar alguma coisa. Nada é mais entediante do que um homem que tenha realizado os seus sonhos: é o zelo social-democrático e sem gosto da pornografia. Mas tão pouco se trata de guardar em câmaras de alabastro, intocáveis e coroados de rosas e jasmim, ideais que, ao tornarem-se coisas, se quebrariam: esse é o secreto cinismo do sonhador.

Roberto Bazlen dizia: aquilo que sonhámos é qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que já não nos recordamos disso. Não num passado, portanto – já lhe perdemos os registos. Os sonhos e os desejos não realizados da humanidade são antes os membros pacientes da ressurreição, sempre a ponto de despertar no dia final. E não dormem fechados em preciosos mausoléus, mas estão pregados, como astros vivos, ao céu remotíssimo da linguagem, cujas constelações mal conseguimos decifrar. E isso – pelo menos isso – não o sonhámos. Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágrimas, caem do firmamento jamais sonhado da humanidade – essa é a tarefa do comunismo.»


(Giorgio Agamben, Ideia da prosa (1985), trad. João Barrento, Cotovia, Lisboa, 1999, pp. 65-68)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Por que Musil?


 Os últimos acontecimentos, que vêm acontecendo nas cidades do país por esses meses, têm a meu ver algumas questões que são de extrema importância. Desde a atuação medíocre dos políticos nos episódios até a falaciosa e terrível afirmação de que o gigante tenha despertado; parece que voltamos aos tempos românticos e fajutos dos instintos de nacionalidade.

Gosto de ler. Por esses dias terminei e fiquei ruminando num livrinho de ensaios cujo título é Melro, do Robert Musil. Deste livro precioso, li uma afirmativa curiosa e que ao mesmo tempo traz uma possibilidade de desdobramento curiosa, no mínimo. Há, na segunda recolha dos ensaios, que o livro traz, um intitulado O ÉDIPO AMEAÇADO. Pressupõe o autor o complexo de Édipo, que veio colocar a psicanálise no centro das indagações da vida, como o oráculo dos tempos modernos e descortina o fim de Édipo na sociedade contemporânea.

Crer no fim de Édipo e de toda a ética que se lhe segue é pressupor também que o mundo cuja propriedade sempre se ligou ao trágico não mais se guia pela força nele inscrita. Veem-se suas manifestações por todo lado. Nas manifestações, na repressão desusada aos manifestantes e ao fenômeno desta nova ética, inscrita na atuação dos black blocs. O estado edipiano já não dá mais conta da sociedade, como o pai já não mais dá conta de seus filhos. Vivem pais e filhos, estado e cidadãos, em mundos díspares, muito embora alguma retórica bobalhona ainda se imiscua nesta nova busca por caminhos. Esclareço o que vejo como retórica bobalhona (e edipiana). Uma série delas:
a)      A retórica pessolista, encarnada pelo bom comportamento de sua figura maior – Marcelo Freixo;
b)      A retórica marinista, por ora acoitada no discurso pessebista;
c)  A retórica petista, que abandonou os princípios pessolistas por uma possibilidade falseadora da governabilidade;
d)    A retórica dispersa nas camisas de muitos jovens que revivem o bem pensante e descomprometido slogan do país deste a sua descoberta, gigantes, verdes e amarelos, terra em que tudo dá, petróleo, pré-sal – essas merdas que, desde Caminha, caminham no instinto fajuto da nacionalidade;
e)  A retórica peessedebista do tucanato da propriedade privada. Curioso verificar como o discurso dos peessedebista envelheceu. É o caminho mais direto à manutenção de uma ética edipiana. Talvez a que mais se aproxime desta mesma ética é o populismo praticado pelos novos pais dos pobres;
f)) A retórica dos neo e antigos cristãos da outra ou da mesma face, com seu criacionismo, sua crença nos disfarces do enriquecimento.

Os movimentos de rua são o de um mundo que exige uma nova ética, uma nova postura do humano frente à vida – na qual a festa e a destruição – o equilíbrio imperfeito do dia seguinte se erija como preocupação única e eficaz.

(oswaldo martins)



escara

o monstro ruge sobre meus dedos
o bravo cão de guarda
tem três cabeças

a primeira legisla
a segunda justiça
a terceira executa

o monstro penetra meus olhos
meu corpo reage a pontapés
contra as três cabeças do cão


(oswaldo martins)

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Manto - leitura


Com Geraldo Carneiro e Rogério Batalha na Lona Cultural João Bosco


Crônica: Cidades, museus

Crônica: Cidades, museus

(Para Renato Cordeiro Gomes)
 Alexandre Faria
Anos viajando para consultoria em análise de sistemas e métodos, criei um hobby. Coleciono cidades. No início, visitava os museus das cidades aonde ia, mas depois os deixei pra lá. Só as cidades são museus de si. Os museus, pelo contrário, são cidades alheias, mosaicos de expropriações ou espólio de excêntricos que, doados às prefeituras, tornam-se o ônus da História. Ir a um museu é perder-se da cidade que se visita. Por isso, os museus devem ser o patrimônio primeiro dos cidadãos, dos que por fatal natalidade não podem fazer o uso que um estranho faz de seu lugar. Deviam coibir a entrada de turistas nos museus e estimular que os nativos, desde a infância, aprendessem a sair da cidade através deles. Mas é justamente o contrário o que fazem. Na minha cidade, por exemplo, tem um museu só com réplicas - vê se pode! - de Pedro Américo, filho célebre do local. Mas não é só no Brejo Paraibano que isso acontece. Vale o mesmo para o 221-B de Baker Street, London. Usam os museus como iscas para cidades.
Busco nas cidades o que nelas não se consegue apreender pelo sistema e pelo método. Quero experimentar o entrelaçamento bruxuleante das existências humanas. Toda cidade é cristal e chama. Busco a chama. E quando decido entrar em algum museu, faço-o por um fetiche especial, uma obra ou personagem específica que lá estejam e que me provocam a curiosidade.
Quando agendei esta consultoria em Juiz de Fora, planejei aproveitar para re-conhecer a cidade na qual passara o carnaval de 1988 com um namorado. Mas também reservei uma tarde para ir ao Museu Mariano Procópio. Finalmente veria o original, cuja réplica me tirava o sossego desde a infância, no museu de Pedro Américo e nos livros de Educação Moral e Cívica, que estudei com afinco para sair de Areia e ganhar o mundo. Na tarde programada, fui direto ao museu.
 Fechado.
Passeei pelos jardins tentando me refazer do impacto. Se a cidade fosse um corpo, faltava-lhe um dos membros. O resto da cidade podia abrir-se inteiro para mim, mas com aquele museu fechado, ela botava os quartos de banda. O todo sem uma parte. Ia pensando essas coisas quando uma chuvarada me levou a procurar abrigo nas mesinhas do café. Praticamente vazio, a não ser por uma jovem com um livro cujo título me chamou atenção,"Todas as cidades, a cidade". Um rádio no balcão tocava um sucesso de Elis Regina. Voz de Pedro Mariano.
 Manchas torturadas. E eu sem meu Tiradentes esquartejado. Foi-se o tempo dos açougues no Brasil, mas as tardes continuam caindo como viadutos, museus. O que fazer com o cristal quebrado das cidades? Peço uma cerveja e sento para refazer a agenda. Só então a jovem leitora se dá conta de minha figura. Sorri. Ainda tenho quatro dias de promessas juiz-foranas pela frente. Semana que vem vou ao Rio. Quem sabe lá encontro A carioca?

Lançamento da Revista SETOR X


sábado, 12 de outubro de 2013

Poema do dia

à maneira do Pessoa

eu não sei nada.
não sei onde fica a Abissínia,
a Bessarábia, nem o Sri Lanka.
não sei em que descaminhos da História
perdi o Congo Belga e Madagascar.
só conheço as províncias da ficção
essas, infelizmente, imutáveis:
Shangri-lá, Pandemônio, Xanadu
e outros eldorados da imaginação.
desconheço os mistérios da semântica,
misturo alhos e bugalhos,
nenúfares e putifares;
não sei por que torções a linguagem
se empavona ou se desempluma;
em suma, só admiro as palavras
como o selvagem admira um helicóptero.
a despeito dessa sólida ignorância
às vezes por acaso me deparo
com uma cena, um gesto, uma palavra
cujo esplendor desperta um mar de ressonâncias.
e de repente a insolência do sol
ilumina as minhas trevas
e eu sou como um deus parindo o mundo.

(Geraldo Carneiro - 1952)

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Baralho cigano

Certa vez fui com Eugênio à editora Pallas. Os tempos estavam bicudos, era o governo do confisco, e consegui, com uma amiga, um trabalho pra ele. Claro, fui intermediário, pois quando falei com esta minha amiga, as portas se abriram, pois Eugênio era o Eugênio, o maior capista do Brasil.

Pois bem, quando chegamos à editora, a mesa de todos os membros responsáveis pela casa estavam a postos, esperando por Eugênio. Ao entrarmos e sentarmos à mesa de reunião, não me lembro quem afirmou que conhecia Eugênio desde outras gerações. No ato, como costumava ser meu querido amigo, veio um “é verdade, lutamos juntos na Batalha de Aljubarrota, e eu era o judeu negro!”.  Cumprimentaram-se como dois irmãos de luta, e a conversa começou.

Eugênio deveria fazer o projeto gráfico de um tarô cigano e desenhar as cartas cujo texto seria escrito por Naldo, pai de santo que tinha seu abaçá lá pelos lados da Ilha do Governador. De posse das informações, Eugênio começou a criar. O resultado é o mais belo baralho cigano jamais visto, com suas mulatas de tirar o fôlego.


(oswaldo martins)

terça-feira, 8 de outubro de 2013

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - ANTOLOGIA POÉTICA

Poema do dia

ESTUDOS PARA UMA BAILAORA ANDALUZA


1
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,                                  
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:                              
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,

gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz                                          
como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.

2

Subida ao dorso da dança
(vai carregada ou a carrega?)
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão
de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e só a custo o debela,

como a tensão do animal
dominado sob a rédea,
que ressente ser mandado
e obedecendo protesta.

                                                                                                               
Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer
de ambas, cavaleira e égua,
que são de uma mesma coisa
e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é a égua e a cavaleira.

3
Quando está taconeando
a cabeça, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.

Há nessa atenção curvada
muito de telegrafista,
atento para não perder
a mensagem transmitida.

Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam

é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.

Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,

se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,

já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco

4
Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.

Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.

Do camponês de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.

Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,

esta se quer uma árvore
firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.

Árvore que estima a terra
de que se sabe família
e por isso trata a terra
com tanta dureza íntima.

Mais: que ao se saber da terra
não só na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes, terrenas, maciças,

mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dança,
para vencer quem duvida.

5
Sua dança sempre acaba
igual como começa,
tal esses livros de iguais
coberta e contra-coberta:

com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está estátua,
desafiante, à espera.

Mas se essas duas estátuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.

A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna

que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem é que a modela.

Enquanto a estátua final,
por igual que ela pareça,
que ela é, quando um estilo
já impôs à íntima presa,

parece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.

O livro de sua dança
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.

6
Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.

Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
                                                                  
Não só da vegetação      
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)

mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia.

Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la,

parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.

Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque terminada a dança
embora a roupa persista,

a imagem que a memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO





sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Confete


cantigas para ninar raparigas românticas tanto quanto eu

1

uma bola estava na relva
à espera de um chute

ao ver a bola na relva
o príncipe chutou a bola

a bola  escolheu o regaço duma lavadeira
no riacho da aldeia

no final da tarde foi o pai da rapariga
levar ao rei a bola do príncipe

como ousas disse o rei
vir me dizer  que o meu filho chuta mal

deixa estar meu pai
sinto nesta bola
o cheiro das minhas camisas.

elesbão ribeiro
04e30/09/13

2

o  rei ao ver o filho
com bastos pentelhos
deu-lhe um cavalo
e mandou-o  passear pelas aldeias

a nobreza anda podre
nossas princesas  não prestam

o filho do rei deixou-se levar pelo cavalo
e o cavalo levou o filho do rei

o filho do rei viu uma rapariga
a dar comida aos porcos

o cavalo não andava para frente
nem para os lados

foi o filho do rei
a puxar o cavalo com a aldeã montada

dou-te uma casa
em troca do cavalo disse o rei

vai para aquela casa além
do monte

tinha muita pena a aldeã
ao ver o príncipe no cimo do monte
com olhos presos no castelo
que o rei pai lhe negara.

elesbão ibeiro
13/09/13

3

deixou-se ajoelhado
um príncipe diante da Santa Cruz
foi uma negra enxugar-lhe
o suor as lágrimas e o sangue
de Jesus 

elesbão ribeiro
14/09/13

4
o rei mandou vir
de todos os lugares da Europa
princesas
para casarem com o  filho
um príncipe até então apático ao aroma feminino
de todas o príncipe declinou

havia no reino uma bruxa
que tendo certa vez enfeitiçado o rei
engravidou do rei
desfeito o feitiço o rei não quis saber da filha

a bruxa aproveitou-se da situação
e transformou a filha enjeitada numa bela princesa
e transformou-se numa bela rainha

enquanto sua filha inclinava-se
sobre o corpo do príncipe
a bruxa rainha amputava os colhões do rei
modo pelo qual se desfazia o incesto.


elesbão ribeiro
23/09/13

5

de tanto ouvir histórias
que lhe contava a mãe
andava a pobre menina pobre
para desespero do pai
pobre sapateiro da aldeia
a caçar sapos pelos charcos

não percas tempo menina
o sapo que procuras é príncipe
no palácio real
disse-lhe a bruxa

se queres tanto beijar o príncipe
faço-te uma bela princesa
assim se fez

foi a pobre menina rica princesa
beijar o príncipe
o rico príncipe voltou a sapo

então não sabias que sou má
disse a bruxa à pobre menina rica.

elesbão ribeiro
24/09/13


6

andava triste o rei
não casava a  filha
não somava ao reino

lembrou-se  de uma bruxa
com quem certa vez se fartara

estava a princesa a procura do sono
salta-lhe sobre o corpo
do parapeito da janela
um sapo
lambe  lambe  meu príncipe
lambe-me toda
lambe também esta dobra do seio

no dia seguinte encontrou o rei
uma princesa morta sobre o corpo
de sua filha princesa
também  morta

juntei a nossa filha à tua filha
não fosse  bruxa

olha vão as duas pela janela
pombas a voar.

23e30/09/13

7

o príncipe bebia muito
muito vinho bebia o príncipe.
depois de muito bebinho
atirava pedrinhas nos telhados
das casas da aldeia

estava o príncipe a atirar pedras
quando ouviu voz suave a lhe perguntar
por que atiraras pedras
nobre e belo príncipe

porque estou bêbado
e por que estás bêbado
nobre e belo príncipe

o vinho dá-me prazer
e não comes?
não
nunca como
não quero ficar um velho gordo
igual  meu pai
assim como o vinho nobre e belo príncipe
a comida também dá prazer

vai amanhã a minha casa
preparo-te uma sopa de rãs e couves
leva vinho se quiseres, mas não é preciso
o príncipe muito se fartou

na manhã do outro dia  o rei ao ver
pernas e braços explodidos  de seu filho
na sacada de seus aposentos
clamou
ó bruxa filha da puta
nunca vais me deixar em paz?

elesbão ribeiro
30/09/13


8

andava o rei triste
era um grande rei
juntara aldeias
e fundou uma nação

todos gostavam do rei
era um rei justo
fundara uma nação
mas o rei andava triste
por que
perguntou a rainha
falta-me um filho bastardo

e por que queres um filho bastardo
não te bastam os filhos que temos
tens razão senhora
perdoa-me esta cisma

ainda assim andava o rei triste
mandou a rainha trazer ao rei
uma rapariga da aldeia
mandou a bruxa uma de suas filhas
ter com o rei

vai-te embora disse-lhe depois
a rainha
todos os dias receberás
o teu sustento

nasceu uma menina
a quem a bruxa deu uma cara de príncipe

não queres conhecer a tua filha
perguntou a rainha ao
rei agora satisfeito

não não quero
filhos bastardos
devem andar escondidos.


elesbão ribeiro
30/09/13


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Soneto Manco para Governos Mancos [ou com motivos para: Vão Tomar na Rabiota]

Soneto Manco para Governos Mancos
[ou com motivos para: Vão Tomar na Rabiota]
Por Oswaldo Martins & André Capilé

e você aí fazendo sonetos —
nem duros, nem moles;  sem mais, nem menos
— ocupando a viola, enquanto o medo

de que extraterrestres tomem terreno
consome a frota das mulas de cepo
que rolam barris de pimenta e memes.

Nabucodonossor na cordilheira,
sabendo o fu dos outros, antenado,

paciência, mãe do cu, à direita
refresca sua pimenta no borralho.

II festa literária da EDEM


medidas de dispersão

conjunto de dados variável do indivíduo
a distância os valores máximo e mínimo
desvio padrão raiz quadrada menos um

os cacos a propriedade o muro de liame
no retângulo as línguas a escrita o nome
que absoluta a imprecisão dos valores a

positivo mesmo da nula variante afirmam
a amplitude do ocaso se nas bocas miúdas
o cerca-nomeação a quê dos objetos quês

(oswaldo martins)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Dominguinhos - XOTE DA NAVEGAÇÃO - TANTAS PALAVRAS - Dominguinhos e Chic...

1

as marias pretas
os esquadrões da morte
os grupos de extermínio
obedecem a novas ordens

e tome porrada

cérbero, o cão de borracha
abre suas bocas
cérbero, o cão de pimenta e gás
traz seus dentes pestilentos

e tome porrada

os domadores sorriem
desta vez acaba
os domadores brindam
desta vez acaba

e tome porrada
e tome porrada
e tome porrada

as rochas entretanto
descrevem curvas
e caem ao pé do fado
no colo dos asseclas

da ordem



(oswaldo martins) 

LEMBRANÇA

Tua lembrança
ó ingrata
coça até sair sangue
desse meu braço perdido
em mil e uma batalhas
entre fronhas e lençóis
na guerra suja dos corações


(Dalton Trevisan – Desgracida)

O muro

Entre
a mão
e
o seio
o muro

(Dalton Trevisan - Desgracida)