sexta-feira, 26 de agosto de 2016

desafio aceito


da poesia

1
lirismo sacana

se explodir significa dizer
la petite mort

vá à merda e
afinal

vê se não fode

(oswaldo martins)

2
delicadeza lírica

ir à foda como se vai ao mar
para ser devorado por tubarõas


(oswaldo martins)

retrato

para joão simões fortini

1

por triste o sorriso
quem a seca
estende ao léu
o rosto

2

mas havia negativos
e inversas possibilidades
para o rosto
que reverbera em dry martini

3

ainda no reverso
advinda em lagos,
nigéria
ou na meca do capitalismo

4

podia a vida
mais que a vida pode
se as moças dançassem nuas
num cabaret de paris

5

ou no 69 barbacenense
a que se ia, de bicicleta
pelas bolhas da cerveja
e o lirismo que explodia


(oswaldo martins)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O Cristo de Eugênio

Eugênio Hirsch várias vezes nos visitou em casa. Com seu jeito peculiar de ver o mundo, nos ensinou muitas coisas, a todos. Lembram-se com carinho dele meus filhos, Walnice e eu. Um dia, desses perfeitos que o passado nos cria e faz sentir saudade dele, convidei-o a ir a Barbacena para corrermos o barroco mineiro. Tiradentes, São João e Congonhas – não deu para esticar até Ouro Preto, pena.

Armou-se o amigo de desenhos feitos por ele para presentear a casa de meus pais. Levou uma montagem com a figuração da Pietá com recordes feitos por ele mesmo. Era uma interpretação livre – Zélia Cardoso era a Madona que amamentava um garboso Grande Otelo de Cristo, com uma bela e portentosa atriz, de que não me lembro agora do nome, de cupido. E para meu pai um Cristo na cruz com um pau enorme e ereto, também em montagem de imagens de revistas.
A conversa e explicação da imagem para meu pai foi uma conversa a Eugênio.

Ah, sim – dizia – ele (o Cristo) era do carajo. O fato de ter comido Madalena e algumas outras merecia uma homenagem e como toda pessoa ao morrer tem a rigidez peniana não poderia ser de outra maneira que se podia retratá-lo na cruz. E daí decorria sobre a arte clássica com enorme fervor e sacanagem, temperados pelos ah, sim, que soavam musicalmente nos nossos ouvidos.


(oswaldo martins)

notação

1

o avesso

talvez a janela despeje
pássaros de olhos assassinados
                                                                         
2

o relógio

você rodava sentadito
em uma gangorra da infância

3

o exato

quiçá fosse a manhã
a brancura das roupas sem sol maior

4

a casa

o assoalho rondava os ratos
que ávidos se faziam de mortos

5

a equação

o alarido do dia
explode fora dos silêncios

6

x

em uma igualdade de sentidos
apreendia-se o abismo


(oswaldo martins)

domingo, 21 de agosto de 2016

Pilulinha 48

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna, tem a qualidade de não se deixar cair em nenhum tipo de concessão ao sentimentalismo emocionado, no entanto, se constrói a partir de um dilaceramento interno de seus personagens, que beira o mais puro lirismo. A linguagem precisa, cortante, envolvente para o leitor, é o tempo todo desconfigurada pela narradora ao, no ato de contar, deixar entrever que a história que se conta não é a história que se conta. Há um além que cinicamente vai sendo desmascarado pelo pensamento que de forma elíptica vai se construindo.

As personagens são surpreendentes. A construção em espiral – as irrealizações possíveis, o jogo de esconder-se de si mesmo –  vai se sucedendo numa possibilidade única, numa temática única, que explode na temática que se escondia sob os desacertos da narração. O palimpsesto – a forma machadiana preferencial –, aqui vivenciado pelo não contar o que na verdade se conta, apresenta a maestria de Elvira, em seu grau mais intenso.

Talvez na literatura brasileira as putas – mas não é, e é, sobre elas que se escreve tenham tido a sua presença narrada de forma tão lírica e humana. As putas do livro assumem um grau de complexidade trágica. Presentes o tempo todo no romance, por sua ausência de caracteres, assumem a máscara trágica que se revelará na cena da morte de Cuíca. A partir desta estrutura, o romance retira as máscaras de seus atores e os coloca nus frente a eles mesmos.

Como nas grandes tragédias, resta ao leitor debater-se com o mundo derruído da contemporaneidade.

Ps – leiam com atenção como a personagem Lurien é o oráculo que se salva.


(oswaldo martins)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

pilulinha musical

Paulo Cesar Pinheiro é um letrista que nunca erra. Acompanho o poeta desde quando apresentado a ele anosos anos 70, por um amigo, Bernardino, de quem fui parceiro em algumas músicas, quando vivia em Barbacena, MG. Apresentou-me ele a música de Eduardo Gudin, em seu primeiro disco. A velhice da porta-bandeira, E lá se vão meus anéis, entre outras pérolas; uma joia, Dino.

Depois fui seguindo o cara. E puta que o pariu! Era foda ouvir todos os versos dele. Sempre perfeito, com João Nogueira, Tom Jobim, Guinga – que músicas do caralho! – Edu Lobo, Moacyr Luz, a turma toda. E o Luna, O Marçal e o Eliseu!

Caralho. A música da Portela, da Serrinha! Meu deus, parece coisa do Aleijadinho de quem disse o Oswald que atingiu o grau mais alto das artes brasileiras. Para mim, Paulinho Pinheiro, Chico Buarque e Aldir Blanc são os aleijadinhos da nossa modernidade.


(oswaldo martins)

tarde

1

a janela olha-me

diz-se olhar deste de delfos
o anúncio da tragédia

esperamos eu e ela
parado no ar

o grito


2

nada se vê
nem o ela eu

nem o arcabouço
do tempo

tirésias da nulidade

3

a distância com que
olhamos

não é
sequer um após

o apostema
que guardamos

não se revela


4

o que
olhamos

seca as mãos no guardanapo
a aspereza

do que não se diz
do que embora se saiba

5

o resto
soluções brutas

para que a vida siga
sem a janela

que olha



(oswaldo martins)

fado arranhado

para o excelentíssimo professor senhor doutor antónio de oliveira

de quem eu gosto
nem a mim  permitem saber
estas paredes

nem elas sabem
estas paredes
o que dizem saber
o que simulam saber

nada sabem estas paredes
nem de mim hão de saber

eu não confesso

elesbão ribeiro


12, 13 e 18 /08/16

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Pilulinha 47

O romance Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila, da Editora Dublinense, lê-se de um único fôlego. A autora sul-africana, de etnia zulu, aos poucos, vai descerrando os percalços de um país no qual a miséria e a subvida dominam a narração, e o drama da gravidez precoce, da aids e da impossibilidade de se manter vivo se concretizam por meio das palavras da escritora.

A literatura vem acentuando no mundo todo esse escrever legítimo dos que nunca puderam dar a ver seu drama. A temática às vezes acerta, às vezes erra. Muitas vezes o erro está, paradoxalmente, na pouca profundidade da exploração da linguagem e do que pode ela construir sobre universo tão profundamente inquietante. Se se pudesse pensar a matéria literária matematicamente, diria que a igualdade formulada para a resolução de uma equação se perde numa incongruência. Se de um lado o drama vigoroso da vida admite que nele se debruce o escritor, do outro a matéria sobre a qual é seu ofício se perde nem dois desdobramentos bastante complexos.

O primeiro estaria em que nem sempre a resolução dos problemas trazidos à tona pela vida permite que se escolha entre a gentileza e a falta dela; essa escolha denotaria uma percepção maniqueísta da vida não permitindo que o trágico se coloque, para que dele possa surgir uma ética, apostando-se apenas na narrativa do desastre, que acaba por ser redentor, pois que deixa antever apenas uma moral, que sempre será volátil e excludente.

O segundo estaria na composição da trama. Ntshingila a compõe de maneira admirável, fazendo com que confluam os eixos narrativo numa mesma direção. As personagens se desenvolvem aos poucos vão ganhando contornos definidos e as ligações entre eles, obscuras por motivo necessário e verossímil, se fecham de modo perfeito. Percebe-se aí a mão da escritora, sua maestria.

Entretanto o segundo desdobramento não é o bastante. Há de se ultrapassar certo bom mocismo que desponta no plano geral da narrativa e alivia – porque parte do exemplo – a consciência culpada que obrigatoriamente e por motivos éticos deveria recair sobre a parcela usurpadora dos direitos sociais e humanos.

Ao dar à personagem uma saída integradora, a autora, ao mesmo tempo que chama atenção para as mazelas que afligem a sociedade apartada da África do Sul, não permite que se aprofundem as questões que a levaram a esta exclusão, bastando-lhe a leve comoção moral com que seus leitores certamente se identificarão.
(oswaldo martins)