quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

baco bêbado

essa cara não me engana senhor paul cesar
finge-se de divindade para a guimba
garantir como um velho sábio
ou o trago de última hora

para o torto francês do ali
há pouco aprendido nas casas
das putas que nem francesas eram
talvez polacas a elas a elas senhor paul cesar


(oswaldo martins)

Mariinha revisitada e revista

1

José Maria

Mariinha recebia em seus domínios a vasta rede de relações humanas da cidade. Velhos coronéis, médicos, professores, amanuenses, alguns padres e os bêbados contumazes que ali iam ter um pouco de proteção e carinho. Suas meninas serviam, sentavam-se para um dedo de prosa desinteressado. As visitas tinham em sua casa aconchego e paz.

José Maria, do púlpito de sua igreja, vociferava contra os desregramentos – comparando a cidade à Sodoma, à Gomorra – ameaçava com o sal, com a chaga, com a lepra. Apontava o caminho do Carmo, o leprosário que era mantido pela irmandade das carmelitas órfãs. Tantas fez o pároco que acabou sendo chamado a descanso e oração por seus superiores. Do que não se sabia era a razão da volta triunfal de José Maria à cidade. Fanfarras, prefeito municipal e até o capitão, que comandava o destacamento local, acorreram na demonstração de apreço e laços de amizade. José Maria sorria, feliz.

No quinto dia, após o beija-mão das beatas, convocou Mariinha para uma conversa na casa paroquial. Aí havia – ah, se não havia – remoía a grande dama. Quando o coroinha, menino de uns doze anos, levou-lhe o recado, esquecera-se de dizer o dia em que o padre a esperava. Pensou em chamá-lo, mas esperou e em seu lugar gritou por Gracinha, mulata nova e sorridente. Gracinha, que tinha do nome a leveza e os atributos que levaram o Doutor a apelidá-la assim, acorreu.

__ Dona?

A papisa estendeu a mão e a convidoua sentar. Gracinha, com os peitos meio a descoberto, brejeira, sorrindo, sussurrante, murmurou para Mariinha:

__ Doutor?

Sorri, passa a mão sobre a cabeça de Gracinha e espera. Olha a seu redor, a casa estava bonita, pintada de nova, com cadeiras e poltronas confortáveis – a mesa era farta, as meninas, escolhidas a dedo. Diligenciara a decoração da casa – a cor penumbrosa, convidativa, lembrava os meios tons de uma sacristia. Fizera de propósito, sua experiência mostrava que os homens gostavam de gozar e depois se arrepender. As mulheres de seu tempo, em sua casa, sempre conheceram o recato da sala e soltura da cama – entre a santa que sabia ouvir e a puta que pedia mais e deixava-se bater. Agora José Maria, em triunfal volta e poder.

__ Gracinha, vá e diga ao padre que de uns dois dias estarei lá, boa devota sou e não posso recusar o chamado de meu pastor. Mas, arrepare, faz com que ele te bata. Se voltar sem ter apanhado uma surra, esquece minha casa.

Recompôs os peitos para dentro da roupa, foram para dentro de casa e voltaram, com Gracinha pronta para cumprir seu dever. Em sua bolsa levava algumas outras pequenas coisas, além de uma espórtula para as obras da Igreja. Saiu sorridente – sua carreira de puta começava bem. Primeiro o Doutor, agora o padre.

__ Bença, Padre, vim a mando de dona Mariinha.

Com o cenho fechado, o padre hesitou. Aparentava uns quarenta e poucos anos e tinha a tez dos morenos de além mar. De boa compleição, mesmo bonito podia dizer-se que o padre era. Ao ameaçar fechar a porta, encontrou meio corpo da mulata já em sua casa, que, rápida, pulou pra dentro. José Maria tremia, o rosto cada vez mais fechado.

__ Dona Mariinha, manda que eu vince vê o pastô. E descuidadamente faz um gesto de retirar algo dos seios. Com malícia falava e esperava, aturdia o padre.

__ Dona Mariinha...

José Maria não pensava, apenas via, em seus domingos gloriosos de púlpito, beatas vestidas, vestidas. Entrara cedo para o seminário, e o mundo para ele havia sido desde então aquelas mulheres de roupas enegrecidas. Odiava-as. Mas essa parecia diferente, lembrou-se do capeta.

__ Dona Mariinha pediu... e esperava. Pediu que entregasse pra ocê, sinhô.

E enfiava a mão nos seios, cada vez mais os descobrindo. Num gesto meio estabanado, de quem sente vergonha, Gracinha toca as mãos do padre, que recua. Lembra-se das duras noites de frio do seminário. Sorri para o padre. Retira um papel e o movimento se faz de tal jeito que, ao mesmo tempo em que ela desaba sobre o padre, que cai, seus seios pulam para fora do vestido. O padre a empurra, ela se abandona  nele, que se enfurece e a empurra com mais vigor. As mãos da mulata apertam seus braços contra o chão. Os joelhos dela se dobram ao longo da cintura do padre, que não se mexe. A voz de Gracinha soa fresca, feliz:

__ Dona Mariinha, mandou que eu vince, eu vim para dizê pru sinhô que dispois de amanhã pela tardinha estaria aqui pro mode de falar com o pastor.

Sente o corpo do padre enrijecer, depois relaxar e, lentamente, solta as mãos de José Maria que se mantém crucificado no chão. Com certo receio, passa a mão sobre o rosto, os dedos tocam os lábios e inesperadamente começa a bater no rosto do padre devagar, devagar. Seus seios balançam. José Maria fecha os olhos e os abre, quando sente a mão de Gracinha descair de encontro a sua face com uma força cada vez maior. Grita. Em vão. Gracinha continua a espancá-lo. José Maria sente-se como que espetado pelo tridente do demônio. Derruba-a de cima de si. Ela luta. Seu vestido se desfaz cada vez mais. Suas pernas enroscam-se às pernas de Maria. O padre busca puxar-lhe os cabelos. Gracinha ri. Rolam pela antecâmara do quarto.

Após a noite do padre, Gracinha procura recompor-se – assim como o Doutor e Mariinha lhe ensinaram algumas das artes de sua profissão, fizera ao José Maria sua iniciação como instrutora e amante. Sabia que Mariinha ficaria satisfeita – galgara um degrau na hierarquia das putas.

Recolheu suas coisas, beijou o padre na testa, em gesto maternal e falou:

__ José, dona Mariinha pediu pra avisar que vem, mas me mandou antes para falar com o sinhô.

O padre respirou lentamente. Pensava.

__Diga à dona Mariinha que a espero na igreja, no próximo domingo.

Tempos depois, quando de férias para o litoral, Mariinha banhava-se numa praia quase deserta, esquentando ao sol. Acompanhava-a a divina Graça, com seu sorriso.

__ Doutor, vou ficando velha. A arte de domar meus cabritinhos, de conduzir a sociedade, com segurança e tranquilidade, passo a outras mãos, querendo dispor. E riu apontando Gracinha. Para mim, entre convidativa e festeira:

__ E o menino, quando aparece?

Ao nos afastarmos, o Doutor, certo de que seu tempo havia chegado junto ao de Mariinha; eu, louco para que acabassem as férias, percebemos ao longe a figura de um velho cônego, que nos acenava, reintegrado à vida.

2

Mariinha, o cônego e o doutor

Mariinha contou ao Doutor quando foi ao confessionário da Igreja. O cônego era ser amigo já de muitos anos. Com os proverbiais segredos de alcova e sacristia, se entendiam às mil maravilhas. Se o padre dava a extrema-unção e acalmava a consciência pesada das moças; Mariinha, a grande senhora, oferecia seus préstimos e suas pupilas, e, é claro, para as pequenas obras da igreja seus dízimos. Era quem fazia a ceia do natal de jesus cristinho da casa paroquial.

Eram perus que não acabavam mais, farofa de miúdos, rabanadas e, preferência do cônego, baba de moça, bem molhada. O religioso se refastelava. Mariinha, que ali se introduzia com cuidado, passando por uma porta lateral e vestida à moda de então, capa de boiadeiro e chapéu, se via na condução da cozinha enquanto era pronunciada a missa da meia-noite. Quando o padre – solitário – voltava tudo estava pronto e Mariinha já voltara para sua casa onde presidiria o natal dos deserdados da cidade. Deixava apenas uma das suas moças para servir a janta do Padre José.

Tantos foram os natais em que a cena se repetira que foram aos poucos se descuidando e como era inevitável cruzaram-se o cônego e Mariinha, nas antessalas da casa. Meio atrapalhados, os dois se cumprimentaram e travaram um pequeno diálogo sobre seus negócios. Como estavam bem, se despediram e, discretos, foram cada um a cumprir o papel que lhes cabia.

Quando já morto o cônego e Mariinha envelhecida, em uma consulta, contou que, na famigerada noite, a frase que o padre soltara quase ao acaso e que lhe ficara na cabeça durante todos esses anos foi como uma absolvição de seus pecados. Circunspecto dissera “você sabe, Mariinha, que, neste mundo de Deus, a única coisa que dá mais que minha paróquia é sua casa e suas meninas”.

Levantou-se, despediu-se e disse com a cara mais santa que podia “hoje, Doutor, eu pago a consulta”. Com uma de suas tiradas, o velho Doutor respondeu que a paga já estava na mesma medida do santo padre, pela eternidade da história.


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Dez dos melhores livros lidos em 2016

1 – Machado, de Silviano Santiago;
2 – Os contos de Kolimá, de Varlam Chalámov;
3 – Submissão, de Michel Houllebecq;
4 – Como se estivéssemos num palimpsesto de putas, de Elvira Vigna;
5 – Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila;
6 – O conto zero, de Sérgio Sant’Anna;
7 – Teoria da não conceitualidade, deHans Blumenberg;
8 – Abnegação, de Elesbão Ribeiro;
9 – O uruguaio, de Copi;
10 – Anna, a Voz da Rússia - Vida e Obra de Anna Akhmatova.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

duas desimitações - uma barata outra gaiata

desimitação barata do tropa de elite

a dança nua
desobedece os deuses

gosta de putarias
se sabe a índias

trança as pernas em algazarra
como ornella mutti

e bem gazzara no conto
de bukowski


transposto para as telas


desimitação gaiata dos velhos árcades

antes do bosque a cidade
um foda-se para o claudio
outro para o peixotinho
do rolim apenas a rola

antes do bosque a cidade
um foda-se para as begônias
outro para os jasmins
da rosa apenas o trancelim

antes do bosque a cidade
um foda-se para os bucolíticos
outro para o cheiro a bosta
de marília apenas o belo negocim

antes das virgens as filhas de baco
que são –  entre outras coisas –
flores do balacobaco


(oswaldo martins)



quadro

à vermelha do umbigo pele
carcomida pela tinta táctil
de olhar o avesso do ponto
quando sem fuga o tranco

corpo a corpo com o poema
vaza em tela embrião sóbria
muda velhacaria essa roupa
deixada ali à súbita avidez

com que os braços a caírem
interrompido o gesto gritos
não ouvidos sobre o poema
que por fim o traço se feito

desdiz no correr dos pincéis
parados no ar a seca alusão
do nu em movimento ritmo
da austera vertigem a busca

do centro a que ninguém vai

(oswaldo martins)



pequeno poema de amor

deitou-se
no chão frio do quarto
ao lado da cama
e em delírios
dizia e repetia
e eu a pensar que fosses minha

elesbão ribeiro
20/12/2016

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Versinhos de Augusto dos Anjos dirigidos a algumas figuras públicas, do temeroso momento atual:


1 “Acostuma-te à lama que te espera”

2 “Que ventre produziu tão feio parto?”

3 “A comunhão dos homens reunidos / Pela camaradagem da moléstia.”

4 “Falar somente uma linguagem rouca, / Um português cansado e incompreensível”

5 “E o índio, por fim, adstricto à étnica escória, / Recebeu, tendo o horror no rosto impresso, / Esse achincalhamento do progresso / Que o anulava na crítica da História!”


6 “O beijo, amigo, é a véspera do escarro”

O movimento IV do poema OS DOENTES, de Augusto dos Anjos

Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!


Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.


Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!


Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.


A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!


E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!


Como quem analisa um. apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema! ...


Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
A ultrajante invenção do telefone.


E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!


A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em deante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!


Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua,
Que progredia sobre os seus despojos!


Mas, deante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,


Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!