terça-feira, 28 de outubro de 2014

O MUNDO INIMIGO

O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo
que invade a sombra das casas no espaço elástico.
Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas
que retomam seu lugar na série do planeta.
Os homens largam a ação na paisagem elementar
e invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.
Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,
expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.


(Murilo Mendes) 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Lição das coisas

(diante do desespero que brota no céu-da-boca
quando por uma fresta a dor se apresenta e
se assenta ao pé da mesa).

na oficina da vida – retífica dos dissabores sentimentais –
o amor mutuca entulhos, becos e febres irreais.

contudo

feito cavalo que jamais incorpora o enfadonho caboclo das lamentações diária.

penso, que,

a ETERNA lição-das-coisas, encontra-se em:

embrenhar-se numa floresta de sonhos e sonhos e sonhos.

(diante do velho oleiro distraído
apreciador da cerveja de milho)

o sonho é um périplo infinito.


(Rogério Batalha)

Ateliê Ferrugem: Comer cru também é parte do regalo

Ateliê Ferrugem: Comer cru também é parte do regalo: Há poesias que te pegam logo de início, talvez por serem “pop” demais. Nada que também comprometa a sua qualidade. Mas há outras poesias qu...

Rumo a 2022: apontamentos sobre alguma poesia, brasileira, contemporânea | Alexandre Faria*

Falação

Contra o artista serviçal escravo da vaidade (…) A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza (Vaz, 2011, p. 51).

É à fala que nos referimos, por ela nos pautamos ao criar métodos de aproximação da poesia que vem falando, nos últimos 10 anos, das periferias urbanas brasileira (a preposição, aqui, é ambígua e demarca simultaneamente assunto e origem). Conceber poesia a partir da longa tradição ocidental e escrita e apor ao termo o gentílico brasileira são estratégias de pensamento que desconsideram que a sociedade desse país se organiza a partir de complexas raízes da escravidão, do racismo e do analfabetismo. Caetano Veloso, numa famosa canção alardeava: “deixem os portugais morrerem à míngua / minha pátria é minha língua / Fala Mangueira”. Mais à frente, na mesma canção (“Língua”, do disco Velô, de 1986), concluirá: “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”.


Caetano Veloso fala de uma mesma frátria órfã (Khel, 2003), que vai se afirmando no canto-falado de manos e minas. Um desses manos, Dugueto Shabazz (ou Ridson Dugueto), diferentemente do “latim em pó” do baiano, falará de um “latim afrofavelizado” (Ferréz, 2005, p. 83). As afirmações de identidades culturais contemporâneas, especialmente as de minorias étnica, social e economicamente discriminadas, tensionam as afirmações de uma identidade nacional monolítica, ainda que pautada pela diversidade. Menos que a unidade macunaímica, o que a fala de Dugueto Shabazz demarca é a diferença. A vontade de ser diferente. É como se, glosando a canção de Veloso, o poeta da favela perguntasse como pode Mangueira falar, se o lema é tão pessoal, luso pessoano e nacionalista – minha pátria é minha língua? E concluísse: “mas minha língua não é essa, a do colonizador. Cansei de ser mulato sabido!”

Leia o resto do texto no link abaixo:

dilúvio geral depois de ler Fernão de Oliveira



nações de homens
vivem nesta terra
bárbaros
viciosos
outras vezes
apenas gente
de gloriosas
patranhas

com muita verdade
boas doutrinas
ainda sucedem

não fabulizemos

grande vento
se acendeu nos
matos

examinemos
a melodia
da nossa língua
tomando todas
as vozes e cada
uma por si

(Dora Ribeiro)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Dois poemas de Virginia Grütter, poeta de Costa Rica

LA VENTANA

Tenías dos pechos igual que yo
Y el pelo negro igual que yo
Y la boca pintada como yo la queria
Y usabas falda igual que yo
De tela floreada igual que yo
Y llevabas sandalias como yo
Y te arrastraban dos policias
Y dabas gritos en mitad de la calle
Y llevabas de rastras las sandalias
Y te sangraban los pies
Y desde adentro me llamó mi abuela
Y vino
Y cerró la ventana
Y me arrastró del pelo
Hasta lo más oscuro de la sala.



A JANELA

Tinhas dois seios como eu
E cabelo negro como eu
E a boca pintada como eu a queria
E usavas saia igual à minha
De pano florido igual meu
E calçavas sandálias como eu
E te arrastravam dois policiais
E gritavas no meio da rua
E arrastravas as sandálias
E sangravam os pés
E de dentro de casa a avó me chamou
E veio
E me puxou pelos cabelos
Até o mais escuro da sala.


TU LLEGARÁS OLIENDO A MADRUGADA

Tu llegarás oliendo a madrugada
a musgo y a caminho.
Traerás aún hojas desconocidas
enredadas al pelo
Y no estarás cansado
Pero yo besará tus ojos de águila
hasta secar la última lágrima
La última gota de sangre
E com ramas de veranera y de belíssima
Limpiaré la pólvora
Que aún quede entre tus dedos.



TU CHEGARÁS CHEIRANDO A MADRUGADA

Tu chegarás com cheiro de madrugada
a musgo e a caminho.
Trarás ainda folhas desconhecidas
metidas no cabelo
E não estarás cansado
Mas eu beijarei teus olhos de águia
até secar a última lágrima
A última gota de sangue
E com os ramos de buganvília, belíssima.
Limparei a pólvora
Que reste ainda em teus dedos.


(Trad; Antônia Miranda)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

bandida

cortaram o cabelo da despudorada
trincharam lhe o rosto a navalha
mijaram lhe o corpo
com raiva

quando veio ter comigo
estava mais bela
que sulamita

(oswaldo martins)

Inquirições

quando acontece baita silêncio
às nove da noite de uma segunda-feira
o que as pessoas estarão fazendo?

vendo novela, talvez
ou fodendo
esculhambando a vida alheia
enchendo a cara
falando ao telefone

escrevendo poema a respeito
só eu  


(Ricardo Tollendal)

filha de maria

filha de maria também

ninfomaníaca por questão genética
só entre putas
encontrou o seu lugar


(Elesbão Ribeiro)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Por escrito, um romance da linguagem

Por escrito, de Elvira Vigna é um romance da linguagem. Em meio à trama, desenvolvida pela narradora, o contar se problematiza mesmo antes de se anunciar. Não por ser uma linguagem complexa, mas por, na sua simplicidade de quase oralidade, dar a ver um mundo que o tempo todo se constrói e se destrói. Romance feito de simplicidades complexas, paradoxo que cabe não só à linguagem, mas na própria vida, o novo livro da autora é um correlato mesmo das possibilidades humanas inconclusas.

É um belo livro sobre a solidão humana, sobre a incapacidade de a linguagem dar conta das relações que devem ser procuradas fora dela. Feita de silêncios, a narrativa deixa que cacos perdurem aqui e ali e preencham com este movimento de subtração o que a linguagem não dá conta de atestar.

O prazer da leitura de Por escrito se deve ao fato de que a incomunicabilidade se constrói a partir de outros vieses, como, por exemplo, a construção a que se presta a narradora –  quando a realidade ou os dados da realidade são insuficientes para aplacar os desejos, tão pouco freudianos aqui – se encontra na fabulação do real e toma aspectos tão densos e descontínuos como um espelho da realidade, que se amplia em um sem-número de possibilidades. Neste sentido leiam-se, com o cuidado que a linguagem requer, as referências à morte de Aleksandra, cujas versões são muitas e inconclusas.

Há também no romance de Elvira uma premência do falar feminino, sem as amarras que este falar, classicamente, sempre teve em nossa literatura. A voz de Valderez é sempre afirmativa, mesmo que a notícia que dá do mundo esteja repleta de negatividades. São negatividades afirmativas.

A construção de Por escrito se delineia nesta multiplicidade de paradoxos. Percebê-la é ao mesmo tempo dar conta de nossa multiplicidade frente o mundo e descobrir a potência que a narrativa, essa, a de Elvira Vigna, cria, com seus silêncios, de preenchimentos amplos e diretos.


(oswaldo martins)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Poesia de Puerto Rico

Somos

Del otro lado de la ciudad nos proponemos festejar con chiffon y seda,
es decir, con la frivolidad de un inglés en época de guerra.

Somos miles de escombros con ropa elegante en el medio de la humareda,
un pueblo con celulares y sin poder adivinatorio.

(LOURDES VÁZQUEZ)

Somos

Do outro lado da cidade nos dispomos a festejar com chiffon e seda,
quero dizer, com a frivolidade de um inglês em época de guerra.

Somos milhares de escombros com roupa elegante no meio da fumaça,
gente com celulares e sem capacidade da adivinhar.      


(Trad. Antônia Miranda)

Poesia do Haiti

Un jour rappelle-toi
cette ville dépécée
entre le bruit la bêtise et la douleur.
On a créé l’infidélité,
le bleu des trottoirs d’un autre continent.
La folie est devenue utile.
Nous nous appliquons à dessiner
des portes de sortie

Depuis tes yeux
le vide est à réinventer.

Écoute la prière de nos sexes
étouffée par le poids des mots
le trou de votre blue jean
est la seule fenêtre
qui donne sur l’espoir

On rêve tous de trottoirs.
Les cris de notre nudité
sont sans issue
comme vos silences.


Recorda-te um dia
desta cidade despedaçada
entre o barulho a besteira e a dor.
Criamos a infidelidade
o azul dos trottoirs de outro continente.
A loucura se tornou útil.
Dedicamo-nos a desenhar
portas de saída.

Desde teus olhos
o vazio está por reinventar.

Escuta a prece de nossos sexos
abafada pelo peso das palavras
o buraco de vosso blue jean
é a única janela
que dá para a esperança.

Todos sonhamos com trottoirs.
Os gritos de nossa nudez
são sem saída
como vossos silêncios.    

(EMMELIE PROPHÉTE)


Traduzido por Anderson Braga Horta

Outro de Herberto Helder

a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca.
que língua,
que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita
e la poésie, cést quand le quotidien devient extraordinaire, e que música
que despropósito, que língua língua,
disse Maurice Lefèvre, e como rebenta na boca!
queria-a toda


Herberto Helder
A Faca Não Corta o Fogo

2008

Se houvesse degraus na terra

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


(Herberto Helder)

Portátil

à minha volta o bar urrava
e saí para a rua sentindo frio
ao celular a voz cobria-me de veludo
quisera varar a fibra ótica
para ávido beijar sua boca
que continuava fustigando  sinapses
e os peixes de sua língua
saltavam convexos
o frio se dissipava
os peixes pulavam ainda na onda


Luiz Fernando Medeiros
Setembro, 2014

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

sem título

conto nos dedos da menina de rua
os abraços que nunca recebeu
nos vãos que as mãos criam
no ar
quando ela brinca perto do chafariz

há estatísticas para quase tudo

mas eu preciso achar o cacho de cabelo
que a mãe nunca cortou nem colocou
num álbum de fotografias

há estatísticas para quase tudo

e empobrecer
é feito um nascer do sol
que nunca veio

a falta de banho  que talha
o acúmulo
de camada após camada
de sujeira
própria e outra
gera uma casca que em certa medida
em madrugadas empoeiradas e bêbadas
em reuniões em volta do fogo
– ou da lareira –
seria considerada
– por um louco –
e sentida dentro do oco da noite
como riqueza.

(Lúcia Leão)

Clinamen

Na escuridão

Estava em queda livre

Não sentia força puxando
Nada tocando no vazio

Estava em queda livre

Vários anos de aperfeiçoamento na yoga
Concentrar na respiração
Não inspirava nem expirava
Não havia vento da resistência do ar

Estava em queda livre

Como se daria o baque final do choque das costas contra o chão?
Caía de costas ou de frente?
Ia para baixo ou para cima?

Estava livre

Augusto Ferreira Ramos)