O leitor demorará até começar a ler este livro, tão fascinante é o espetáculo interminável dos brinquedos que lhe oferecem as ilustrações. Regimentos, carruagens, teatros, coches, arreios – tudo isso está no livro, em dimensões liliputianas[1]. Já era tempo de desenhar a árvore genealógica dos cavalinhos de balanço e dos soldados de chumbo, de escrever a arqueologia das lojas de brinquedo e dos quartos de bonecas. O texto do livro realiza essas tarefas de modo plenamente científico e sem qualquer pedantismo de arquivista. A parte escrita é tão importante como a parte ilustrada. É uma obra de uma só têmpera, que nada revela sobre os esforços feitos para produzi-la, e é tão indispensável que não podemos entender como pudemos até aqui viver sem ela.
Aliás, tais pesquisas correspondem a uma tendência no nosso tempo. O Museu Alemão de Munique, o Museu de brinquedos de Moscou, o departamento de brinquedos do Museu das Artes Decorativas em Paris – criações atuais ou do passado recente – mostram que em toda parte, e por boas razões, cresce o interesse pelos verdadeiros brinquedos. Já passou o tempo das bonecas “realistas”, em que os adultos invocavam supostas necessidades da criança para satisfazer suas próprias necessidades pueris; o individualismo esquemático do artesanato e a imagem da criança, baseada na psicologia individual, os quais no fundo tinham tantas afinidades, romperam-se por dentro. Ao mesmo tempo, os investigadores ousaram dar os primeiros passos além do âmbito da psicologia do esteticismo. A arte popular e a concepção infantil do mundo queriam ser compreendidas como configurações coletivas.
Em termos gerais, a presente obra corresponde a esse estágio da pesquisa, se é que podemos classificar segundo uma posição teórica trabalhos documentários desse gênero. Esse estágio, com efeito, fornece a transição para uma fixação mais exata das coisas. O mundo perceptivo da criança está marcado pelos traços da geração anterior e se confronta com eles; o mesmo ocorre com as suas brincadeiras. É impossível situá-las num mundo de fantasia, na terra feérica da infância pura ou da arte pura. Mesmo quando não imita os utensílios dos adultos, o brinquedo é uma confrontação – não tanto da criança com o adulto, como deste com a criança. Não são os adultos que dão em primeiro lugar os brinquedos às crianças? E, mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (bolas, arcos, rodas de penas, papagaios) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformam em brinquedos.
É, portanto, um grande equívoco supor que as próprias necessidades infantis criam os brinquedos. É uma tolice a tentativa contida em obra recente, no conjunto meritória, de explicar o chocalho de recém-nascido com a afirmação de que “via de regra a audição é o primeiro sentido a ser exercitado”. Pois desde os tempos mais remotos o chocalho é um instrumento para afastar os maus espíritos, que deve ser dado justamente aos recém-nascidos. É possível que mesmo o autor desta obra tenha se enganado nas seguintes reflexões. “A criança só deseja na sua boneca o que vê e reconhece no adulto. Por isso, até o século XIX a boneca vinha de preferência com roupas de adultos; o bebê com fraldas ou o bebê que hoje predomina no mercado dos brinquedos não existiam antes.” Não, esse fato não se deve às crianças; para a criança que brinca, sua boneca é às vezes grande e às vezes pequena, e, como um ser mais fraco, mais freqüentemente pequena que grande. A verdadeira explicação é que até o século XIX a criança como ser inteligente era totalmente desconhecida, ao que se agrega o fato de que para o educador o adulto era o ideal proposto como modelo às crianças. De qualquer modo, esse racionalismo hoje tão ridicularizado, que vê na criança um pequeno adulto, tinha pelo menos o mérito de compreender que a seriedade é a esfera adequada á criança.
(BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira in Magia e Técnica, Arte e Política. Editora brasiliense. São Paulo. 1987.).
Aliás, tais pesquisas correspondem a uma tendência no nosso tempo. O Museu Alemão de Munique, o Museu de brinquedos de Moscou, o departamento de brinquedos do Museu das Artes Decorativas em Paris – criações atuais ou do passado recente – mostram que em toda parte, e por boas razões, cresce o interesse pelos verdadeiros brinquedos. Já passou o tempo das bonecas “realistas”, em que os adultos invocavam supostas necessidades da criança para satisfazer suas próprias necessidades pueris; o individualismo esquemático do artesanato e a imagem da criança, baseada na psicologia individual, os quais no fundo tinham tantas afinidades, romperam-se por dentro. Ao mesmo tempo, os investigadores ousaram dar os primeiros passos além do âmbito da psicologia do esteticismo. A arte popular e a concepção infantil do mundo queriam ser compreendidas como configurações coletivas.
Em termos gerais, a presente obra corresponde a esse estágio da pesquisa, se é que podemos classificar segundo uma posição teórica trabalhos documentários desse gênero. Esse estágio, com efeito, fornece a transição para uma fixação mais exata das coisas. O mundo perceptivo da criança está marcado pelos traços da geração anterior e se confronta com eles; o mesmo ocorre com as suas brincadeiras. É impossível situá-las num mundo de fantasia, na terra feérica da infância pura ou da arte pura. Mesmo quando não imita os utensílios dos adultos, o brinquedo é uma confrontação – não tanto da criança com o adulto, como deste com a criança. Não são os adultos que dão em primeiro lugar os brinquedos às crianças? E, mesmo que a criança conserve uma certa liberdade de aceitar ou rejeitar, muitos dos mais antigos brinquedos (bolas, arcos, rodas de penas, papagaios) de certo modo terão sido impostos à criança como objeto de culto, que somente graças à sua imaginação se transformam em brinquedos.
É, portanto, um grande equívoco supor que as próprias necessidades infantis criam os brinquedos. É uma tolice a tentativa contida em obra recente, no conjunto meritória, de explicar o chocalho de recém-nascido com a afirmação de que “via de regra a audição é o primeiro sentido a ser exercitado”. Pois desde os tempos mais remotos o chocalho é um instrumento para afastar os maus espíritos, que deve ser dado justamente aos recém-nascidos. É possível que mesmo o autor desta obra tenha se enganado nas seguintes reflexões. “A criança só deseja na sua boneca o que vê e reconhece no adulto. Por isso, até o século XIX a boneca vinha de preferência com roupas de adultos; o bebê com fraldas ou o bebê que hoje predomina no mercado dos brinquedos não existiam antes.” Não, esse fato não se deve às crianças; para a criança que brinca, sua boneca é às vezes grande e às vezes pequena, e, como um ser mais fraco, mais freqüentemente pequena que grande. A verdadeira explicação é que até o século XIX a criança como ser inteligente era totalmente desconhecida, ao que se agrega o fato de que para o educador o adulto era o ideal proposto como modelo às crianças. De qualquer modo, esse racionalismo hoje tão ridicularizado, que vê na criança um pequeno adulto, tinha pelo menos o mérito de compreender que a seriedade é a esfera adequada á criança.
(BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira in Magia e Técnica, Arte e Política. Editora brasiliense. São Paulo. 1987.).
[1] Liliputianas. Adjetivo retirado do livro de Jonathan Swift. As viagens de Gulliver. Refere-se aos habitantes de Lilipute, diminutos homúnculos que habitavam esse país. Por extensão refere-se à estatura diminuta das pessoas e dos objetos.
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