Um arguto estrangeiro já disse
que partilhamos de uma terra onde o impossível é possível. Embora soubesse que
o impossível de que falava raramente fosse de qualidade, o extraordinário
estava em que também pudesse sê-lo. É o que agora se verifica com a tradução do
livro excepcional de Aby Warburg (1866-1929), originalmente editado em 1932,
"Die Erneuerung der heidnischen Antike" ("A Renovação da
Antiguidade Pagã"). Até o fim do século XX, autor e livro estiveram
circundados por um halo de mistério. O choque entre o que Warburg vislumbrava e
a obra dos que seriam seus continuadores é tamanha que Didi-Huberman o chama de
"pai fantasmal da iconologia".
Embora apoiado por colaboradores
constantes (Fritz Saxl e Raymond Klibansky), embora lembrado com emoção no discurso
de exéquias de Ernst Cassirer, a recordar o decisivo que fora para a composição
de "A Filosofia das Formas Simbólicas" (três volumes, 1923-29)
frequentar a biblioteca de Warburg, ainda em Hamburgo, embora o também
historiador da arte, participante da organização da biblioteca transplantada
para Londres Ernst Gombrich tenha escrito, já em 1970, sua biografia, embora,
seu nome permanecia no limbo da memória remota.
Não sei explicar como se dá seu
redescobrimento. Sei apenas que, a partir da reedição alemã de 1998, não só sua
"Erneuerung" como ensaios menores, apontamentos tumultuados, a
correspondência com seu psiquiatra, Ludwig Binswanger, a descrição do
"ritual da serpente" entre os remanescentes dos índios pueblos, por
ele próprio testemunhado no Novo México, entre 1895 e 1896, cujas fotos lhe
serviram, em abril de 1923, para mostrar a seu médico que estava
"curado", se tornaram quase simultaneamente acessíveis em traduções
americana, espanhola, italiana. Se parece que os editores franceses optaram por
verter apenas a parte mais acabada da "Erneuerung", reunida nos
"Essais Florentins" (1990), em troca é do crítico de arte francês
Didi-Huberman o ensaio mais empolgante a respeito do autor.
Na enumeração das línguas em que
obras suas estão traduzidas, teria esquecido o português?! Não, não houve
esquecimento. Só há poucos meses a falha foi sanada. Vale perguntar: por que
houve a falta e como veio a ser vencida? Apresentam-se as razões lado a lado. A
"Renovação" esteve entre nós desconhecida porque, a partir de nossa
sabida pequena margem de leitores, se vem estabelecendo uma política editorial
consistente em deixar os livros "sérios" para as editoras
universitárias, ao passo que as editoras privadas se afincam em obras e gêneros
de que podem esperar grande circulação. Não se alegaria que essa é uma
inevitável decorrência da globalização neoliberal?
O conhecimento empírico do
mercado editorial do Ocidente não confirma a hipótese, pois mostra em operação
dois sistemas opostos. Há por certo o americano, secundado pelo inglês. Nesse,
ainda que haja editoras privadas de prestígio e que editem obras de qualidade,
são as universitárias que ganham de longe a palma. Nenhuma editora americana
tem uma série como a Cambridge Companion; em troca, a extensão do leque
editorial americano não encontra paralelo. Mas esse não é o único sistema. O
inverso sucede na Alemanha, na França, na Itália e na Espanha, sem que se
escute dizer que a Suhrkamp, a Gallimard, a Mondadori, a Seix Barral - escolho
os nomes ao acaso - apresentam sinais de crise ou de mudança de critério na
escolha de seus títulos.
É certo que, como mostram os
sociólogos Dardot e Laval, em "La Nouvelle Raison du Monde" (2009), enganam-se
os que pensam o neoliberalismo hoje em vigor como continuação da plataforma
liberal, anterior à Primeira Guerra ou ao keynesianismo. O sistema a que
estamos sujeitos se distingue por tomar os governos como respaldo das empresas,
muito além dos mitos do alijamento do Estado ou do mercado livre, bem como pela
busca de criar outro tipo de cidadão, chamado pelos autores de
"indivíduo-empresa"; em vez da cooperação, nele domina o espírito de
competição.
É a respeito pertinente
observação feita há pouco, em tese de livre-docência, na USP, pelo professor
Hélio Guimarães. Levantava ele, de passagem, a seguinte pergunta: estando
acostumados a nos pensar como pertencentes a um país de segunda classe, que
reação (choque ou espanto) intelectual nos aguarda se for verdade que nos
incorporamos ao bloco economicamente forte do Ocidente? Ao que parece, nossa
recente política editorial ignora a questão, como se o domínio do
"economês" bastasse para uma nação se manter em destaque no mundo.
Venhamos ao segundo aspecto: como
se explica que agora Warburg esteja traduzido e, ademais, surja em conjunto com
dois de seus mais conceituados intérpretes franceses, Georges Didi-Huberman,
com "A Imagem Sobrevivente", e Philippe-Alain Michaud, com "Aby
Warburg e a Imagem em Movimento" (ambos de 2002)? Saber que as três obras
foram lançadas por uma editora de porte mediano criaria uma enigma, se não
fôssemos informados que a Contraponto foi subsidiada pela Fundação Roberto
Marinho e pela Vale do Rio Doce. Ante a informação, poderá o leitor reagir de
dois modos: ou ela lhe dará algum alívio - afinal, obras não destinadas ao
grande público não precisam passar por editoras com dificuldade de difusão - ou
aumentará seu desânimo: não será frequente que fundações e empresas abram suas bolsas
em favor de produções pouco lucrativas.
Conto com a compreensão do leitor
em haver escrito essa notícia, sem praticamente abordar a razão da importância
intelectual conferida a Warburg. Vi-me obrigado a fazê-lo para abreviar o
desconhecimento do autor. Contra esse desconhecimento, ainda acrescento uma
pequena nota biográfica.
Aby Warburg era o primogênito de
uma família de banqueiros de Hamburgo que, ao completar 13 anos, estabeleceu um
acordo com seu irmão mais novo: cedia seus direitos quanto aos negócios da
empresa familiar, em troca de receber por toda a vida cobertura para a compra
dos livros que lhe interessassem. O contrato pareceria desarrazoado se não
soubéssemos que a ambição de Aby era constituir uma biblioteca, composta por
obras e disposta de tal maneira que lhe permitisse o acesso ao material que,
desde a adolescência, ambicionava conhecer.
Em que consistiria esse acervo?
Podemos supor, por sua obra principal, que dizia sobretudo respeito ao
renascimento. Mas o testemunho já lembrado de Cassirer nos faz ainda saber que
não seria tão só uma biblioteca para renascentistas. Pelo cumprimento do
acordo, a biblioteca cresce de maneira espantosa. Dois fatos, contudo,
interrompem a linha reta com que a biografia de Warburg vinha sendo traçada.
Primeiro, no fim da Primeira Guerra, ele sofre um colapso nervoso que o leva a
permanecer internado durante quatro anos na clínica psiquiátrica dirigida por
Binswanger. Em carta a Freud, Binswanger mostrava a tristeza de saber
irremediavelmente perdido o talento de seu paciente. Por sorte dos pósteros,
Binswanger se enganava e a conferência que Warburg realiza com o material que
colhera em sua viagem ao Novo México mostraria sua "cura".
Morrendo relativamente jovem, Aby
Warburg foi poupado de sofrer a ascensão de Hitler. É graças ao empenho de
Klibansky e Saxl que a biblioteca é transposta em tempo para Londres, onde, em
1940, será incorporada ao acervo da London University.
Para dar essas informações tive
de me limitar ao que ressalta em "A Renovação" em mínimas frases.
Restrinjo-me a atentar para o conceito com que Warburg destaca o que é próprio
à imagem: o conceito de "Pathosformeln" - "fórmulas de
pathos", como bem escreve o tradutor Markus Hediger. Tais fórmulas
acumulam estados-instantes não só momentâneos, mas conflitivos; sua
instabilidade combina-se à dinamicidade concretizada em figurações pictóricas e
verbais. Na formulação precisa de Alain-Michaud, a imagem é um "fóssil em
movimento", isto é, contém uma compactação de tempos que a tornam incompatível
com a sucessividade do tempo histórico. Daí o descompasso entre os campos em
que domina a imagem e a mera indagação histórica. Só a partir daí quanta coisa
já terá de ser repensada?
(Luiz Costa Lima)
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