Estávamos as três com o olho grudado na televisão, quando vovó falou:
- Meu Deus, como a Aída Curi está pequeninha...
A narrativa do crime era muito absorvente e ninguém prestou atenção.
- Vai ver que quando caiu lá embaixo, além de virar santa ficou menina outra vez.
- De quem você está falando, vovó?
- Da menina aí da notícia... É a Aída Curi!
Mamãe resolveu responder:
- Não mamãe, o nome dela é outro.
- Ela foi jogada do alto de um edfício, não foi?
- Foi, mas de outro edifício e em outra cidade.
- Copacabana naquela época era fina. A gente andava de tailleur completo e salto alto, não era essa falta de gosto que agora se vê pelas ruas. Em meio à elegância, aquele crime. Você se lembra, Arlete?
- Sim, mamãe, lembro-me muito bem.
- Da Aída Curi? Mas graças a Deus você não a conhecia. Eu não deixava você sair sozinha, tudo era mais decente.
- Lembro-me muito bem, porque você e papai fizeram da minha vida um inferno depois desse crime.
- Pra seu bem, minha filha. Menina de família não acaba como a Aída Curi.
- Isso era no seu tempo, mamãe.
- Ela era uma moça muito bonita, de uma beleza pura. Por isso mesmo se perdeu. E o Ronaldo Guilherme, que a atraiu lá pra cima, e o Cássio Murilo, que a matou! Que pedaços de homem! Olha aí o Ronaldo agora! Pois se estão contando o crime. Olhem bem: não é bonito? Verdade que um pouco caído, sem os óculos rayban, falando errado... Ainda assim, um pão!
- Esse aí tem nome de rei e é o pai da menina que morreu.
- Não foi o pai da Aída Curi que a jogou do alto daquele prédio. Um pai não faz uma coisa dessas. Isso é absurdo. Se é pai, tem que proteger a filha. Quem matou a Aída Curi foi o namorado dela, ou o homem que ela pensava que era namorado dela.
- Isso era no seu tempo, mamãe! E nem o Ronaldo, nem o Cássio Murilo eram namorados da Aída Curi.
- Tinha um outro envolvido também. Um outro cafajeste, como a gente chamava os meninos desajustados naquele tempo. Imagina, currada por dois homens, que horror. Isso é que dá aceitar convites sem pensar, se deixar seduzir pela beleza, pelas belas palavras... Olha só a carinha da menina. É a Aída Curi quando era menina, tenho certeza.
- Hora de ir pra cama! Você está confundindo tudo, mamãe!
- Se eu for pra cama agora, vou sonhar com o Ronaldo Guilherme.
- Pois deveria ter um pesadelo com o Ronaldo. E com o Cássio Murilo também. Foram eles os responsáveis por você e papai me obrigarem a esquecer minha turma da praia, vigiando-me como uma retardada. Terminei casada com o estafermo do Gregório.
- Puxa, mãe, como você pode falar assim do papai, além do mais, já morto?
- Você não se casou com ele, Patrícia, nem chegou a conviver com ele como seus irmãos, muito mais velhos que você, tiveram que fazer a contragosto.
- Eu também acho que você não pode reclamar, Arlete. O Gregório era um bom partido. Graças a ele, você vive nesse apartamento de frente pro mar. Em Copacabana.
- Decadente, mamãe. O apartamento e o bairro.
- O problema foi Gregório ter morrido tão cedo. Trabalhava muito. Muita preocupação financeira...
- Falcatruas, mamãe, sempre metido em falcatruas. Só me deixou dívidas.
Vovó esqueceu-se da televisão e perdeu os olhos em algum ponto distante do oceano Atlântico, muito além da janela do apartamento.
- Eu nunca confessei a ninguém, mas eu me apaixonei pelo Ronaldo Guilherme. O Cássio Murilo era um fedelho, não oferecia atrativo para a mulher madura que eu era na época. Já o Ronaldo lembrava o Marlon Brando. Eu amei o Ronaldo Guilherme...
- Como, mamãe?
- Era uma paixão medonha. Eu o imaginava me dizendo obscenidades no ouvido, me rasgando a roupa... Assim descreveram o crime: rasgaram a roupa da moça e ela lutou. Dizem que se jogou lá de cima para salvar-se deles, tendo morrido virgem. Boba. Eu mais queria era fazer sexo com o Ronaldo Guilherme, até com o Cássio Murilo...
- Mamãe, você está ficando inconveniente. Hora de ir pra cama!
- E eu vou perder o Ronaldo falando na televisão? Quem é a namorada dele?
- Não é namorada. É a mulher dele.
- Ele casou? Que pena! Não há mais esperança de que eu me case com o Ronaldo Guilherme? Na verdade não parece o Ronaldo, sempre bem vestido, bem articulado...
- Mamãe, eu já disse à senhora que esse não é o Ronaldo.
- E essa mulher, quem é?
- É a mulher do rapaz. A polícia diz que ela estrangulou a enteada e o pai da menina a jogou pela janela.
- Meu Deus! Ronaldo não faria uma coisa dessas.
- Como não?
- Ora, Arlete! Tem muita diferença entre jogar pela janela uma desconhecida, que além disso concordou em subir com ele para o apartamento, e assassinar a própria filha.
- E qual é a diferença?
- A dos tempos, minha filha. Antes, a gente protegia as filhas, vigiava a companhia delas, punha atenção à hora em que chegavam em casa, agora é esse caos, essa falta de hábitos.
- Espera aí, vovó, não vira sua metralhadora giratória contra mim, não!, tive que me defender, já que conhecia onde esse comentário terminava.
- Mas se a menina estava na casa da família dela, mamãe!
- Que família? Se era enteada da tal que dizem que a esganou, onde estava a mãe dela? Assim que esse pão aí, além de assassino, é bígamo?
- Chega, mamãe. Dessa vez você vai pra cama sem apelação.
Apesar da má vontade, vovó concordou. Já cansada de tanto alarde, desliguei a televisão. Depois de acomodar a vovó, mamãe voltou à sala. Acendeu um cigarro (por que não pára de fumar?) e sentou-se a meu lado. As duas contemplávamos o navio iluminado que cortava o oceano.
- Mãe, a quem se referia a vovó? Quem era Aída Curi?
- A vítima do crime mais comentado dos anos 50. Moça pobre, estudante de datilografia. Acho que não era de Copacabana. Se era, não freqüentava o círculo dos seus assassinos.
- Quem eram eles?
- Meninos de famílias importantes. Passavam seu tempo entre a praia e as motocicletas da época de James Dean, do Marlon Brando jovem..
- Marlon Brando sei quem era, mas James Dean...
- Um ídolo do cinema americano. Os rapazes o imitavam, com seu casaco de couro, seus óculos rayban...
- Você conhecia essa turma, mamãe?
- Não exatamente. Eu era quase uma menina. Davam medo, mas também fascinavam. Os homens, especialmente. No final das contas, se comportavam todos igualzinho a eles.
A fumaça do cigarro escondia os olhos úmidos de mamãe.
- O que foi, mãe? Más lembranças?
- Talvez, filha.
- O crime foi aqui em Copacabana?
- Sim, aqui pertinho, na Atlântica mesmo. Acho que o prédio ainda existe. Jogaram a moça do 12º. andar.
- Isso está parecendo o caso daquela menina lá da Fonte da Saudade, uma tal de Mônica. Tinha uns quinze anos. Também foi jogada de um andar alto, por dois rapazes que a conheceram numa discoteca. Eu era garota ainda, mas lembro do escândalo.
- É um crime da sua geração. Não ficou registrado na minha memória.
- Acode, gente! O Ronaldo Guilherme e o Cássio Murilo querem me estuprar!
Mamãe de um salto alcançou o quarto e conseguiu segurar a roupa da vovó. Seu corpo delgado obedeceu e recuou. Eu a abracei pela cintura, protegendo-a contra a janela, o que me fez projetar meu próprio corpo quase metade para fora, mas as mãos de mamãe se fecharam nas minhas costas, puxando à mim e à vovó para trás. Ficamos as três abraçadas, trêmulas de medo, a contemplar as ondas de pedra, brancas e negras, no calçadão lá embaixo, enquanto na Avenida Atlântica, como nos cartões postais, os carros deixavam, na sua passagem, um rastro de luz.
(Lídia Santos)