quinta-feira, 29 de maio de 2008

Vertigem

Estávamos as três com o olho grudado na televisão, quando vovó falou:
- Meu Deus, como a Aída Curi está pequeninha...
A narrativa do crime era muito absorvente e ninguém prestou atenção.
- Vai ver que quando caiu lá embaixo, além de virar santa ficou menina outra vez.
- De quem você está falando, vovó?
- Da menina aí da notícia... É a Aída Curi!
Mamãe resolveu responder:
- Não mamãe, o nome dela é outro.
- Ela foi jogada do alto de um edfício, não foi?
- Foi, mas de outro edifício e em outra cidade.
- Copacabana naquela época era fina. A gente andava de tailleur completo e salto alto, não era essa falta de gosto que agora se vê pelas ruas. Em meio à elegância, aquele crime. Você se lembra, Arlete?
- Sim, mamãe, lembro-me muito bem.
- Da Aída Curi? Mas graças a Deus você não a conhecia. Eu não deixava você sair sozinha, tudo era mais decente.
- Lembro-me muito bem, porque você e papai fizeram da minha vida um inferno depois desse crime.
- Pra seu bem, minha filha. Menina de família não acaba como a Aída Curi.
- Isso era no seu tempo, mamãe.
- Ela era uma moça muito bonita, de uma beleza pura. Por isso mesmo se perdeu. E o Ronaldo Guilherme, que a atraiu lá pra cima, e o Cássio Murilo, que a matou! Que pedaços de homem! Olha aí o Ronaldo agora! Pois se estão contando o crime. Olhem bem: não é bonito? Verdade que um pouco caído, sem os óculos rayban, falando errado... Ainda assim, um pão!
- Esse aí tem nome de rei e é o pai da menina que morreu.
- Não foi o pai da Aída Curi que a jogou do alto daquele prédio. Um pai não faz uma coisa dessas. Isso é absurdo. Se é pai, tem que proteger a filha. Quem matou a Aída Curi foi o namorado dela, ou o homem que ela pensava que era namorado dela.
- Isso era no seu tempo, mamãe! E nem o Ronaldo, nem o Cássio Murilo eram namorados da Aída Curi.
- Tinha um outro envolvido também. Um outro cafajeste, como a gente chamava os meninos desajustados naquele tempo. Imagina, currada por dois homens, que horror. Isso é que dá aceitar convites sem pensar, se deixar seduzir pela beleza, pelas belas palavras... Olha só a carinha da menina. É a Aída Curi quando era menina, tenho certeza.
- Hora de ir pra cama! Você está confundindo tudo, mamãe!
- Se eu for pra cama agora, vou sonhar com o Ronaldo Guilherme.
- Pois deveria ter um pesadelo com o Ronaldo. E com o Cássio Murilo também. Foram eles os responsáveis por você e papai me obrigarem a esquecer minha turma da praia, vigiando-me como uma retardada. Terminei casada com o estafermo do Gregório.
- Puxa, mãe, como você pode falar assim do papai, além do mais, já morto?
- Você não se casou com ele, Patrícia, nem chegou a conviver com ele como seus irmãos, muito mais velhos que você, tiveram que fazer a contragosto.
- Eu também acho que você não pode reclamar, Arlete. O Gregório era um bom partido. Graças a ele, você vive nesse apartamento de frente pro mar. Em Copacabana.
- Decadente, mamãe. O apartamento e o bairro.
- O problema foi Gregório ter morrido tão cedo. Trabalhava muito. Muita preocupação financeira...
- Falcatruas, mamãe, sempre metido em falcatruas. Só me deixou dívidas.
Vovó esqueceu-se da televisão e perdeu os olhos em algum ponto distante do oceano Atlântico, muito além da janela do apartamento.
- Eu nunca confessei a ninguém, mas eu me apaixonei pelo Ronaldo Guilherme. O Cássio Murilo era um fedelho, não oferecia atrativo para a mulher madura que eu era na época. Já o Ronaldo lembrava o Marlon Brando. Eu amei o Ronaldo Guilherme...
- Como, mamãe?
- Era uma paixão medonha. Eu o imaginava me dizendo obscenidades no ouvido, me rasgando a roupa... Assim descreveram o crime: rasgaram a roupa da moça e ela lutou. Dizem que se jogou lá de cima para salvar-se deles, tendo morrido virgem. Boba. Eu mais queria era fazer sexo com o Ronaldo Guilherme, até com o Cássio Murilo...
- Mamãe, você está ficando inconveniente. Hora de ir pra cama!
- E eu vou perder o Ronaldo falando na televisão? Quem é a namorada dele?
- Não é namorada. É a mulher dele.
- Ele casou? Que pena! Não há mais esperança de que eu me case com o Ronaldo Guilherme? Na verdade não parece o Ronaldo, sempre bem vestido, bem articulado...
- Mamãe, eu já disse à senhora que esse não é o Ronaldo.
- E essa mulher, quem é?
- É a mulher do rapaz. A polícia diz que ela estrangulou a enteada e o pai da menina a jogou pela janela.
- Meu Deus! Ronaldo não faria uma coisa dessas.
- Como não?
- Ora, Arlete! Tem muita diferença entre jogar pela janela uma desconhecida, que além disso concordou em subir com ele para o apartamento, e assassinar a própria filha.
- E qual é a diferença?
- A dos tempos, minha filha. Antes, a gente protegia as filhas, vigiava a companhia delas, punha atenção à hora em que chegavam em casa, agora é esse caos, essa falta de hábitos.
- Espera aí, vovó, não vira sua metralhadora giratória contra mim, não!, tive que me defender, já que conhecia onde esse comentário terminava.
- Mas se a menina estava na casa da família dela, mamãe!
- Que família? Se era enteada da tal que dizem que a esganou, onde estava a mãe dela? Assim que esse pão aí, além de assassino, é bígamo?
- Chega, mamãe. Dessa vez você vai pra cama sem apelação.
Apesar da má vontade, vovó concordou. Já cansada de tanto alarde, desliguei a televisão. Depois de acomodar a vovó, mamãe voltou à sala. Acendeu um cigarro (por que não pára de fumar?) e sentou-se a meu lado. As duas contemplávamos o navio iluminado que cortava o oceano.
- Mãe, a quem se referia a vovó? Quem era Aída Curi?
- A vítima do crime mais comentado dos anos 50. Moça pobre, estudante de datilografia. Acho que não era de Copacabana. Se era, não freqüentava o círculo dos seus assassinos.
- Quem eram eles?

- Meninos de famílias importantes. Passavam seu tempo entre a praia e as motocicletas da época de James Dean, do Marlon Brando jovem..
- Marlon Brando sei quem era, mas James Dean...
- Um ídolo do cinema americano. Os rapazes o imitavam, com seu casaco de couro, seus óculos rayban...
- Você conhecia essa turma, mamãe?
- Não exatamente. Eu era quase uma menina. Davam medo, mas também fascinavam. Os homens, especialmente. No final das contas, se comportavam todos igualzinho a eles.
A fumaça do cigarro escondia os olhos úmidos de mamãe.
- O que foi, mãe? Más lembranças?
- Talvez, filha.
- O crime foi aqui em Copacabana?
- Sim, aqui pertinho, na Atlântica mesmo. Acho que o prédio ainda existe. Jogaram a moça do 12º. andar.
- Isso está parecendo o caso daquela menina lá da Fonte da Saudade, uma tal de Mônica. Tinha uns quinze anos. Também foi jogada de um andar alto, por dois rapazes que a conheceram numa discoteca. Eu era garota ainda, mas lembro do escândalo.
- É um crime da sua geração. Não ficou registrado na minha memória.
- Acode, gente! O Ronaldo Guilherme e o Cássio Murilo querem me estuprar!
Mamãe de um salto alcançou o quarto e conseguiu segurar a roupa da vovó. Seu corpo delgado obedeceu e recuou. Eu a abracei pela cintura, protegendo-a contra a janela, o que me fez projetar meu próprio corpo quase metade para fora, mas as mãos de mamãe se fecharam nas minhas costas, puxando à mim e à vovó para trás. Ficamos as três abraçadas, trêmulas de medo, a contemplar as ondas de pedra, brancas e negras, no calçadão lá embaixo, enquanto na Avenida Atlântica, como nos cartões postais, os carros deixavam, na sua passagem, um rastro de luz.

(Lídia Santos)

10 comentários:

  1. Lídia,

    Esses 13 anos fora, como você mesmo disse, não a distanciaram do Brasil, ou, por outra, deram-lhe essa distância que apura o olhar.

    Belo conto.

    ResponderExcluir
  2. Excelente! A habilidosa manipulação dos tempos faz de sua ficção um contraponto lúcido e crítico de tudo que a imprensa produziu sobre o caso. É isso que as pessoas na sala de jantar (e diante da tv) devem saber. Parabéns.

    ResponderExcluir
  3. Apelo da familia de Aida Curi(4 irmaos).Ferida brutalmente pela materia ofensiva, de infeliz e torpe inspiracao, roga a familia ao autor que a retire imediatamente da internet ou de qualquer outro meio de divulgacao. Monsenhor Mauricio Curi, irmao de Aida Curi, Vigario patriarcal do Cairo, e paroco melquita catolico da igreja da Imaculada Conceicao de Heliopolis . Cairo, Egito.

    ResponderExcluir
  4. Para Oswaldo Martins. O Sr. sabe muito bem qual e a responsabilidade que tem no publicar um texto semelhante, ofensivo a memoria pura de uma jovem,alem de estar agredindo o sentimento dos 4 irmaos de Aida. Aguardo suas desculpas em publico, como foi publica a ofensa,bem como a retirada pronta da materia. O meu web site e www.egliseimmaculee.com e o meu email e egliseimmaculee@yahoo.com. Monsenhor Mauricio Curi, irmao de Aida Curi

    ResponderExcluir
  5. Gostei muito do uso da sequencia de falas das personagens femininas sem interrupcao do narrador. Revela muito bem a complexidade dos personagens enquanto sujeitos atuantes da sociedade brasileira. Parabens, Lidia, pela critica severa e inteligente contra as injusticas e anomalias sociais que surgem de tempos em tempos no nosso pais.
    Michele

    ResponderExcluir
  6. Cara Lídia,
    Belíssimo conto. Técnicamente ótimo. Além disso, a reflexão sobre a dor, o medo e a recursividade de fatos tão atrozes e intoleráveis como esse demostra a sua sensibilidade ante aspectos da realidade carioca, brasileira e mundial que competem a todos e que em vezes ignoramos pela perda de sensibilidade ocasionada por tanta violência na TV ou nos filmes.
    Não posso ignorar os comentarios acima feitos por Monsenhor Curi,
    mas acho este um homenagem a uma Aída Curi "pura", como a refere Monsenhor, cuja pureza foi mitificada desecessariamente pela mídia (como a de tantas mulheres que tem sido vítimas de situações semelhantes) mas que mantém a sua pureza no conto, embora de forma mais humana e desmitificada.
    Acho difícil ter uma perspectiva fria dos fatos quando se sofrem diretamente, mas acho também difícil esquecer que, como a vovó do seu conto, todas (e todos) somos vítimas destes fatos terríveis infligidos por pessoas inconscientes e tantas vezes impunes.
    Me congratulo com você, cara Lídia, pelo seu compromisso e a sua sensibilidade que reconhecem uma realidade que vai além de uma ou duas gerações e constitui uma das maiores infâmias do nossa "nova" (des)ordem mundial.
    Afetuosamente,
    Raul.

    ResponderExcluir
  7. Parabens, Lidia, pelo modo com que a sua narrativa trabalha literariamente a questao da desconstrucao do mito. Assim as personagens do conto passam a representar todo um universo feminino livre das amarras do imaginario criado pela midia, o qual somente tem servido para nos distanciar da problematica da impunidade para as injusticas sofridas tao constantemente pelas mulheres no nosso pais. Desconstruido o mito, anula-se a subalternidade do sujeito feminino, que entao adquire voz e comeca a questionar a violencia imposta sobre ele. Excelente conto.

    ResponderExcluir
  8. Monsenhor Maurício Curi,
    poderia dizer: séculos de opressão e de ignorância sexual e política impostos ao gênero feminino resultaram, dentre outros, em crimes como o de que sua irmã foi vítima. O conto de Lidia Santos não macula a memória de Aída. Ao contrário, o texto vivifica a luta contra a barbárie, praticada contra ela, contra Isabela Nardoni. Sou mulher, tenho filhas, e agradeço a Lidia a coragem de trazer, pela memória convulsa da idosa, a reflexão sobre a memória igualmente convulsa, e por isso incapaz de evitar a repetição, deste país.
    Com muito respeito e empatia por sua dor, que foi minha também, em escala bem menor é verdade, por ocasião da morte de sua irmã.
    Nilma Lacerda

    Lidia, autora grata,
    já disse o que tenho para dizer. Continue. escrita finamente densa.
    Abraço,
    Nilma Lacerda

    ResponderExcluir
  9. Parabéns, professora Lídia, por expôr, com seu conto- denúncia, as “mazelas emocionais” com as quais, nós, mulheres, temos que prosseguir vivendo. Aída, duas vezes vítima, a primeira vez vítima da violência física de “cafajestes”, e pós-morte, vítima das insinuações à sua pureza por parte de uma sociedade bitolada, condicionada a culpar sempre a mulher. A sua é uma mensagem cheia de esperança, em que a condenação moral da “mulher-vítima” pela sociedade não se perpetua nas gerações posteriores às da avó do conto, apesar de que o medo, infelizmente, ainda perdure entre nós, mulheres.

    ResponderExcluir
  10. Monsenhor Mauricio Curiquarta-feira, setembro 28, 2011

    Oswaldo Martins, apos tres anos de nossa intervençao, reitero o pedido da familia de Aída Curi para que retire esta infeliz materia, agressiva a memoria de nossa irma .Os fatos reais tirados do Processo revelam que nossa inditosa irma foi vitima de uma "curra". Tendo sido arrebatados os seus pertences em plena rua (bolsa, dinheiro e oculos), tenta reavê-los. Foi puxada a forca para dentro do elevador e luta contra os tres agressores até a exaustao, tendo sido em seguida jogada do alto do predio. O conto ignora estes detalhes. Assim sendo, o conto , longe de ser uma homenagem à inocencia e virtude de nossa irma como querem os comentadores , é, pelo contrario, uma agressao à sua memoria.e causa de continuos sofrimentos para os seus 4 irmaos e toda a familia . Contamos com a sua compreensao, bom coracao e sentimento humano.
    Monsenhor Mauricio Curi, irmao de Aida Curi, Vigário patriarcal para os melquitas catolicos do Cairo e Pároco da igreja "Imaculada Conceicao" de Heliopolis.

    ResponderExcluir