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quarta-feira, 7 de maio de 2008

SE (Para uma leitura do Cosmologia)

Esperai, meu amigo: pode ser que aquilo que se segue dará alguma verossimilhança a ideias que não vos divertiram até agora a não ser como um sonho agradável, como um sistema engenhoso. Se nossa religião não fosse uma triste e lhana metafísica; se nossos pintores e nossos estatuários fossem homens comparáveis aos pintores e aos estatuários antigos (quero dizer, os bons; pois provavelmente contaram também com maus, e mais do que nós, assim como a Itália é o lugar onde se faz a melhor e a pior música); se nossos padres não fossem estúpidos carolas; se este abominável cristianismo não se tivesse estabelecido pelo assassínio e pelo sangue; se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma impertinente visão beatífica de não sei o quê, que não se compreende nem entende; se o nosso inferno oferecesse outra coisa além dos abismos de fogo, dos demónios hediondos e góticos, dos uivos e rangidos de dentes; se nossos quadros pudessem ser outra coisa afora cenas de atrocidades, um esfolado, um enforcado, um assado, um grelhado, uma asquerosa carnificina; se to­dos os nossos santos e as nossas santas não estivessem velados até a ponta do nariz, se as nossas ideias de pudor e de modéstia não houves­sem proscrito a vista de braços, pernas, tetas, espáduas, toda nudez; se o espírito das mortificações não tivesse murchado essas tetas, amoleci­do essas coxas, descarnado esses braços, dilacerado essas espáduas; se nossos artistas não estivessem encadeados e nossos poetas contidos pelas palavras pavorosas de sacrilégio e de profanação; se a Virgem Maria tivesse sido a mãe do prazer, ou então, mãe de Deus, se tivessem sido seus belos olhos, seu belos seios, suas belas coxas, que houves­sem atraído o Espírito Santo sobre ela, e se isto estivesse escrito no livro de sua história; se o anjo Gabriel fosse aí louvado por suas belas espáduas; se Madalena tivesse tido alguma aventura galante com Cris­to, se, nas bodas de Caná, Cristo, entre dois vinhos, um pouco inconformista, houvesse percorrido o colo de uma das moças das bo­das e as coxas de São João, incerto se permaneceria fiel ou não ao apóstolo de queixo sombreado com ligeira penugem: veríeis o que acon­teceria com nossos pintores, com nossos poetas e com nossos estatuários; com que tom falaríamos de seus encantos, que desempenhariam um papel tão grande e tão maravilhoso na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos miraríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção.

(Denis Diderot – Ensaio sobre a pintura)