terça-feira, 15 de abril de 2008

Sobre a poesia

A poesia, como a entendo, é feita de radicalidade, da necessidade de ultrapassar os limites. É a pura expressão da liberdade. Todas as censuras, todos os senões caem por terra ante sua presença. Ela instaura sentidos. Sem os sentidos, estaremos todos nós mortos. O comezinho, o cotidiano é nossa morte mais imediata; a outra, a que nos apaga irremediavelmente, não importa, é um acontecimento para os outros. Por isso somos livres, porque cessamos quando enfim cessamos. O que de nós fica é esse exercício diário de buscar sentidos, de doar sentidos para as pessoas – nas quais nos incluímos. Estranhamente não se consegue chegar ao sentido sem uma grande dose de lógica, do exercício constante do deslocamento do que se procura dizer.

Uma das experiências mais frutíferas e curiosas da recepção dos meus poemas são aquelas que os tomam ao pé da letra e por isso ficam tramando um Oswaldo desconhecido de mim mesmo. Poemas são intenções lógicas. Para penetrar seu sentido oculto, deve-se atirar a mão no vazio que fica entre as palavras, como um construtor de nadas que são concretude no exato ali onde são construídas as argamassas que unem as palavras e seu sentido. Muitas vezes a radicalidade do que se afirma no poema vai se tornar ainda mais radical quando se percebe o ponto de ataque que ele contém. Assim como num papel imaginário que pudesse se desdobrar, se desdobrar ao infinito ou um átomo que pudesse ser dividido, dividido até deixar de ser átomo e se tornasse átomo do átomo. Ou as trevas das trevas como nas trevas de Trakl.

Um poema erótico, por exemplo, só é erótico na sua tosca aparência, só é radical porque atrás dele se anuncia uma outra radicalidade, construída através desta lógica do absurdo concreto. Tome-se um exemplo. Aretino. O poeta, inventor da pornografia literária, é sobremodo o poeta de seu tempo. Aquele que permitiu ver mais longe e proficuamente o que nós somos ou fomos. Não foi a ciência de Galileu ou a física newtoniana que nos constituiu, mas foram os espaços vazios do próprio universo, sua inexplicitude – as interrogações que todo homem se faz e para as quais não encontra respostas, senão no imediatismo do corpo – que construíram a precariedade com que devemos encarar a vida e sua relatividade.

Depois do corpo, nada nos resta – sequer o amor. O amor morre com o corpo.

14
no meio do caminho
um cupido torto

puxava tanto a carriola,
bia

nossos cabelos voavam
tanto

que
nos consumia

o braseiro

O poema acima – de minha autoria – percorre uma vasta tradição literária, que se apropria de Dante, de Goethe e de algum Drummond. As referências são explicitas – como o sexo é explicito. O Canto do Inferno, o Prometeu de Goethe e a alusão parodística de Drummond. A poesia radicaliza quando lê a tradição. O sexo referido pelo braseiro, a carriola da vergonha medieval – própria para adúlteros – quem não conhece o Lanlelote, o cavalheiro da charrete, de Chretyen? – denunciam o ponto da lógica concreta, contrastam com o prazer dos cabelos voando. Mais além da própria cultura – ou do que se convenceu chamar cultura – fixa-se a entronização do corpo erótico, do prazer que advém de todo erótico – que é a vida na sua duração corporal. Desestabilizadora, a poesia funda a percepção da vida e apela – como um clássico, que nos aconselhe a aproveitar a vida.

(oswaldo martins)

2 comentários:

  1. Duro neles, nos sonetistas. Que bela poética!

    ResponderExcluir
  2. querido amigo, concordo. e discordo. como gombrowicz, não me fio num pensamento dessexualizado: um poema erótico é um poema erótico. a sua aparência não pode ser minimizada.
    lembro-me também que paz escreveu que o corpo é o lugar do desaparecimento do corpo. o que torna a aparência algo demasiado importante para não ser comemorado.

    ResponderExcluir