Sempre estive a racionalizar tudo, mas ela pensava como sentia. Nunca havia conhecido pessoa tão passional. Acaso chovesse, ela lá, sob a água torrencial, pisando nas poças da rua. Na primavera, flor no cabelo. No inverno, cachecol colorido e vinho quente. Para esquentar o corpo, dizia com malícia. Tocava violão e recitava poesia. Embriagada, gostava de Manuel Bandeira. Uns tomam éter, outros cocaína, eu tomo alegria, e ria entre dentes. Se triste, escolhia, melancólica, Mário de Andrade e Cecília Meireles na angústia poética da vida. Na cama, gostava de Aretino e Oswaldo Martins. Conversava sobre tudo. Na política, esquerdista extrema, citava Marx e subia morro para cuidar de crianças sem pai e ouvir histórias de velhos. Não perdia ocasião de religião. Aproveitava todas. Bebia água de todo rio, como Riobaldo nas Veredas do Rosa. E isso era fala dela, que gostava do homem e daquele ser tão. Lia muito, de revista em quadrinhos à boa literatura. Entretanto, vê-la dizer textos marginais, umedecendo os lábios, num contínuo sem rumo, era paixão em demasia. Gostava de poesia de rua, teatro de esquina, causos de bar. Olha isso, olha aquilo. Olha isso e aquilo. Nunca isso ou aquilo. Aquela mulher sempre somava, compunha mais. Seus olhos amendoados, estranha sensação de ambigüidade. Eu punha prumo naquilo. Contudo, pareciam verdadeiros, mesmo quando chorava e, na verdade, nunca desconfiei de suas lágrimas.
Conheci-a no fim do curso de Psicologia, seguro de mim, homem formado, cheio de teorias sobre a mente e o comportamento. Quase já diagnosticava, laudando páginas e páginas de doenças psicossomáticas. Estava acautelado, pleno. Tinha amigos, gostava das noites boêmias, namorava, há anos, menina recatada e minha, seguramente, minha. Assunto para casar, filhos, tranqüilidade. A retidão da vida, tudo estava resolvido.
Ouvira falar dela na mesa de bar, “a namorada do Abílio”, um amigo filósofo, louco varrido, que na semana santa seguia as procissões aos gritos, em defesa acalorada do demônio. Sempre bêbado, o Abílio. As mulheres se benziam, os beatos com cara feia. Carregávamos nosso anjo decaído aos travancões e seus casos viravam assunto que rendia risadas na mesa do Bar do Paulinho: Abílio mijou na televisão do Luís, saiu rolando no morro da Rua do Ouro, dormiu na escadaria da Nossa Senhora das Mercês, roubou cavalo para ir à festa. A conversa ia noite adentro. Por fim, o fato foi o interesse despropositado de alguém naquele nosso amigo. E ela, não só o namorava, como estava a seu jeito apaixonada. Diziam ainda que era bonita. E sim, ela era bonita.
Nem acreditei quando ele chegou com aquela moça esvoaçante na noite do truco. Ninguém levava namorada e o Abílio não compreendia essas mesuras. Os cabelos negros dela desciam por entre o vestido solto, decote vivo, faltando sutiã que, certamente, ela queimara em praça pública. Por entre o tecido, despontava bico do seio e senti-me, por baixo, enrijecido. Ela possuía uma sinuosa boca sorridente, um caminhar serpenteado e não fugia aos olhos, era de entrar na retina. Conversava com todos, desdenhando o mesmo riso e aceitava, sim, entrar de fora no jogo. Em seguidas rodadas, bateu na mesa com um casal preto ou vermelho, escondidos na barra do vestido. Quem daria conta do ocorrido? Quando empreendíamos as conversas mais sórdidas e lascivas, ela conseguia virar o assunto e ser insinuante o bastante para se manter desafronteirada em inocente sensualidade. Bacante e virgem vestal, condensava as duas. No outro dia, ela foi comentário entre amigos. Quem compreendia aquela mulher com Abílio? Dois achavam que ela se insinuara a eles. Dois disseram mal, chamaram-na infame. Uns estavam encantados, vítimas de um feitiço, calando comentários, sonhando-a em pensamentos.
Meses depois, solteira pelas loucuras descabidas de nosso amigo, ela endiabrara numa dança inebriante, trocando de pares à revelia. Era serviço de noite inteira, diziam. Entregou-se a todos que quis e não quis. Confessou-me isso, depois, quando sofria. Manteve a fama alcançada na primeira noite em que nos fora apresentada: insinuante, infame, encantadora. Ouvi os comentários, mas estive distante. Embriagava-me com meus amigos, tinha meu cotidiano amor, meus estudos. Quem, vidente, poderia supor aquela desmedida em minha vida?
Foi num encontro fortuito na biblioteca da faculdade. Entrava com alguns livros, minhas últimas leituras freudianas, quando a vi entre as mesas, sozinha, lendo. Trocáramos algumas palavras, mas nada mais que isso. Eu tinha minhas certezas, não era de descaminhos. Mas, aquela mesa pareceu-me convidativa. Quem não queria a solidão partilhada a dois, sendo ela a outra parte? Cumprimentei-a, levantou-me os olhos, sorriu, fitando meus movimentos, voltou-se para o livro. Cabelos caídos, decote solto, novamente o seio e meu desejo levou-me à sensação da língua leve em seus mamilos. Gosta de Vinícius de Morais? Quase perdida a pergunta. Ela adivinhava meus pensamentos, descabia-me.
Desencaminhou-me para um vinho naquela tarde que durou toda minha vida. Beijou-me sôfrega durante a noite, ofereceu-se inteira nas passagens escuras que levavam à sua casa. Deitou-se nua na cama, sussurrou baixinho, um cheiro doce, um delicioso sabor no entre pernas. Não tinha nenhum pudor e sua luxúria transbordava de maneira tão natural, chegava a ser pura. Não havia pecado ali. Os olhos cerrados, a boca entreaberta, a pele pálida e suada. Era bela, envolvida naqueles lençóis. O prazer era intenso, sentia latejar meu sexo, perdido em campo úmido e quente. Eu estava entre os encantados. Era Ulisses, sem estar preso ao mastro. Não desejava, acorrentado, enlouquecer sozinho naquela odisséia de Homero. Nem correria o risco do silêncio kafkiano das sereias. Neguei a covardia e o orgulho. Mergulhei nas águas profundas daquela mulher marítima.
Assim, abandonei duas cadeiras na Faculdade. O namoro não sobreviveu às trocas de olhares e aos bilhetes amorosos entre meus pertences. Eu era distante do antigo amor, abandonara o porto seguro. A nau não reconhecia mais direção de bússola ou destino. Já ela, eu visitava, todos os dias. Saíamos juntos, bebíamos nas madrugadas. Sempre um estado da embriaguês, um torpor de noites regadas a prazer e poesia. Ela me amava, sofria nas minhas ausências, prendia-me na estreiteza de seus braços, pedia a promessa do não abandonar, enchia meus dias de mimos. Sentia-me como um corpo afogado, sensação do submerso amor. Pouco via meus amigos, que reclamavam meu sumiço. Penso hoje, invejavam. Diziam calúnias entre si e sempre que me encontravam, enchiam-me de conselhos não pedidos.
Durante muito tempo, ela foi minha, na inteireza da posse. Quase que podia respirar-lhe o ar. Longe de sua presença, minhas roupas emanavam seu cheiro. Tocava-me pensando nela e, vagarosamente, enlouquecia. Foi quando fiz para ela um pequeno cárcere de grades invisíveis. As canções só para mim calaram o violão. As poesias repetiam-se dia após dia. Na biblioteca, sempre comigo, tolhia seus passeios pelas prateleiras. Se acaso eu saísse da casa, deixava-a sozinha. Nada de caminhar entre meus amigos, sequer sorrisse. Sem palavras a homem qualquer. Criticava seu corpo quando ela colocava vestido, prendia seus seios em lingeries, ironizava as flores em seus cabelos. Cheguei mesmo a reclamar de nossa cama, dizendo-me insatisfeito com seu ardor. No desejo de torná-la luz só minha, transformei-a, pouco a pouco, em escuridão. Conseguia ser vil. Culpava-a. Fazia com que ela se lembrasse das vezes que dormira com meus amigos, diminuía sua beleza e seu encanto, reduzindo o desejo dos outros homens ao sexo fácil que ela havia oferecido. Remoía o passado, transformava-o em minha mente de maneira doentia, queria que ela não mais desejasse. Reduzia-a, mostrava como eu era generoso guardando-a comigo. Por fim, ela tinha aversão a tanto e tão pouco dizia que, finalmente, vislumbrei-a sozinha. E eu, envaidecido, por domar aquela besta selvagem, agora mansa e sem brilho. Chegava tarde em casa, encontrava-a entre lágrimas, num amuado baixinho. Dava-lhe carinho, fazíamos amor e, embora ainda sentisse o mesmo arrebatamento e prazer que ela oferecia de maneira plena, calava-me e partia. Queria oferecer-lhe minha sensação à deriva.
Contudo, da profunda escuridão que havia lhe reservado, ela emergira de perversa maneira. Sumira durante dias. A moça com quem dividia o velho sobrado, negava-me notícias suas, num conluio de Marias. Já arrebentara o carnaval na cidade santa. Onde estaria? O que sucedera era o de não acreditar. Começaram a chegar notícias. Ela saíra de branco no Bloco da Praia, sem roupas íntimas. Dançara seminua, debaixo da chuva veraneia, beijara homens, mulheres, velhos, meninos. Se perguntavam por mim, não sabia. Saiu no Copo Sujo, nos Metralhas, comeu Pão Molhado, fantasiou-se de homem nas Domésticas, foi prostituta, soldado, freira, dama, Colombina, Arlequino. Numa das noites, encontrei-a em meio a uma roda de samba, linda pombajira... Seu olhar atravessara-me e fugiu como um bicho arisco. Perdi sua presença na multidão carnavalesca. Esperei, à porta da sua casa, já alta madrugada, nada. Havia terminado a segunda-feira e diziam, a São Geraldo, dessa vez, vencia. Escola de samba com nome de santo, tão Brasil.
Sua amiga deixou-me entrar, que a esperasse cá dentro, cansara-se do meu martírio. Deitei em nossa cama, cheirava as roupas, displicentemente, esquecidas. Amanheceu uma terça chuvosa, meio-dia e ela não havia aparecido. Fui para casa, voltava mais tarde. Tardou e ela ainda sem dar vista. Aquele Cavalo-Marinho não tinha brandura. Queria entender o que havia acontecido? O porquê daquela mudança libertina, daquele partido alto ensandecido? Eu já não era de grandezas, sequer sustentaria qualquer altivez. Até que veio um fato ocorrido. Encontraram um corpo feminino na Cachoeira do Catorze: cabelos pretos, pele clara, entre 20 e 25 anos, sem documento. Era para se reconhecer o corpo. Eu fui, mesmo em desatino. No corredor da Santa Casa, contei os ladrilhos. Cheguei à porta das gavetas, abriram. Eu queria mesmo dizer que era ela. Talvez daria descanso, ela morta. Mas, não, nada disso. Na verdade, nunca mais soube notícias suas. Dizem uns que ela se foi, fugida com gringo. Outros, mais iniciados no vento, viram-na nas ruas, num sonho convulso. Eu, por minha vez, tenho apenas a lembrança daqueles olhos sombrios na última ocasião em que nos vimos. Ela tinha medo do escuro e eu sabia disso.
Conheci-a no fim do curso de Psicologia, seguro de mim, homem formado, cheio de teorias sobre a mente e o comportamento. Quase já diagnosticava, laudando páginas e páginas de doenças psicossomáticas. Estava acautelado, pleno. Tinha amigos, gostava das noites boêmias, namorava, há anos, menina recatada e minha, seguramente, minha. Assunto para casar, filhos, tranqüilidade. A retidão da vida, tudo estava resolvido.
Ouvira falar dela na mesa de bar, “a namorada do Abílio”, um amigo filósofo, louco varrido, que na semana santa seguia as procissões aos gritos, em defesa acalorada do demônio. Sempre bêbado, o Abílio. As mulheres se benziam, os beatos com cara feia. Carregávamos nosso anjo decaído aos travancões e seus casos viravam assunto que rendia risadas na mesa do Bar do Paulinho: Abílio mijou na televisão do Luís, saiu rolando no morro da Rua do Ouro, dormiu na escadaria da Nossa Senhora das Mercês, roubou cavalo para ir à festa. A conversa ia noite adentro. Por fim, o fato foi o interesse despropositado de alguém naquele nosso amigo. E ela, não só o namorava, como estava a seu jeito apaixonada. Diziam ainda que era bonita. E sim, ela era bonita.
Nem acreditei quando ele chegou com aquela moça esvoaçante na noite do truco. Ninguém levava namorada e o Abílio não compreendia essas mesuras. Os cabelos negros dela desciam por entre o vestido solto, decote vivo, faltando sutiã que, certamente, ela queimara em praça pública. Por entre o tecido, despontava bico do seio e senti-me, por baixo, enrijecido. Ela possuía uma sinuosa boca sorridente, um caminhar serpenteado e não fugia aos olhos, era de entrar na retina. Conversava com todos, desdenhando o mesmo riso e aceitava, sim, entrar de fora no jogo. Em seguidas rodadas, bateu na mesa com um casal preto ou vermelho, escondidos na barra do vestido. Quem daria conta do ocorrido? Quando empreendíamos as conversas mais sórdidas e lascivas, ela conseguia virar o assunto e ser insinuante o bastante para se manter desafronteirada em inocente sensualidade. Bacante e virgem vestal, condensava as duas. No outro dia, ela foi comentário entre amigos. Quem compreendia aquela mulher com Abílio? Dois achavam que ela se insinuara a eles. Dois disseram mal, chamaram-na infame. Uns estavam encantados, vítimas de um feitiço, calando comentários, sonhando-a em pensamentos.
Meses depois, solteira pelas loucuras descabidas de nosso amigo, ela endiabrara numa dança inebriante, trocando de pares à revelia. Era serviço de noite inteira, diziam. Entregou-se a todos que quis e não quis. Confessou-me isso, depois, quando sofria. Manteve a fama alcançada na primeira noite em que nos fora apresentada: insinuante, infame, encantadora. Ouvi os comentários, mas estive distante. Embriagava-me com meus amigos, tinha meu cotidiano amor, meus estudos. Quem, vidente, poderia supor aquela desmedida em minha vida?
Foi num encontro fortuito na biblioteca da faculdade. Entrava com alguns livros, minhas últimas leituras freudianas, quando a vi entre as mesas, sozinha, lendo. Trocáramos algumas palavras, mas nada mais que isso. Eu tinha minhas certezas, não era de descaminhos. Mas, aquela mesa pareceu-me convidativa. Quem não queria a solidão partilhada a dois, sendo ela a outra parte? Cumprimentei-a, levantou-me os olhos, sorriu, fitando meus movimentos, voltou-se para o livro. Cabelos caídos, decote solto, novamente o seio e meu desejo levou-me à sensação da língua leve em seus mamilos. Gosta de Vinícius de Morais? Quase perdida a pergunta. Ela adivinhava meus pensamentos, descabia-me.
Desencaminhou-me para um vinho naquela tarde que durou toda minha vida. Beijou-me sôfrega durante a noite, ofereceu-se inteira nas passagens escuras que levavam à sua casa. Deitou-se nua na cama, sussurrou baixinho, um cheiro doce, um delicioso sabor no entre pernas. Não tinha nenhum pudor e sua luxúria transbordava de maneira tão natural, chegava a ser pura. Não havia pecado ali. Os olhos cerrados, a boca entreaberta, a pele pálida e suada. Era bela, envolvida naqueles lençóis. O prazer era intenso, sentia latejar meu sexo, perdido em campo úmido e quente. Eu estava entre os encantados. Era Ulisses, sem estar preso ao mastro. Não desejava, acorrentado, enlouquecer sozinho naquela odisséia de Homero. Nem correria o risco do silêncio kafkiano das sereias. Neguei a covardia e o orgulho. Mergulhei nas águas profundas daquela mulher marítima.
Assim, abandonei duas cadeiras na Faculdade. O namoro não sobreviveu às trocas de olhares e aos bilhetes amorosos entre meus pertences. Eu era distante do antigo amor, abandonara o porto seguro. A nau não reconhecia mais direção de bússola ou destino. Já ela, eu visitava, todos os dias. Saíamos juntos, bebíamos nas madrugadas. Sempre um estado da embriaguês, um torpor de noites regadas a prazer e poesia. Ela me amava, sofria nas minhas ausências, prendia-me na estreiteza de seus braços, pedia a promessa do não abandonar, enchia meus dias de mimos. Sentia-me como um corpo afogado, sensação do submerso amor. Pouco via meus amigos, que reclamavam meu sumiço. Penso hoje, invejavam. Diziam calúnias entre si e sempre que me encontravam, enchiam-me de conselhos não pedidos.
Durante muito tempo, ela foi minha, na inteireza da posse. Quase que podia respirar-lhe o ar. Longe de sua presença, minhas roupas emanavam seu cheiro. Tocava-me pensando nela e, vagarosamente, enlouquecia. Foi quando fiz para ela um pequeno cárcere de grades invisíveis. As canções só para mim calaram o violão. As poesias repetiam-se dia após dia. Na biblioteca, sempre comigo, tolhia seus passeios pelas prateleiras. Se acaso eu saísse da casa, deixava-a sozinha. Nada de caminhar entre meus amigos, sequer sorrisse. Sem palavras a homem qualquer. Criticava seu corpo quando ela colocava vestido, prendia seus seios em lingeries, ironizava as flores em seus cabelos. Cheguei mesmo a reclamar de nossa cama, dizendo-me insatisfeito com seu ardor. No desejo de torná-la luz só minha, transformei-a, pouco a pouco, em escuridão. Conseguia ser vil. Culpava-a. Fazia com que ela se lembrasse das vezes que dormira com meus amigos, diminuía sua beleza e seu encanto, reduzindo o desejo dos outros homens ao sexo fácil que ela havia oferecido. Remoía o passado, transformava-o em minha mente de maneira doentia, queria que ela não mais desejasse. Reduzia-a, mostrava como eu era generoso guardando-a comigo. Por fim, ela tinha aversão a tanto e tão pouco dizia que, finalmente, vislumbrei-a sozinha. E eu, envaidecido, por domar aquela besta selvagem, agora mansa e sem brilho. Chegava tarde em casa, encontrava-a entre lágrimas, num amuado baixinho. Dava-lhe carinho, fazíamos amor e, embora ainda sentisse o mesmo arrebatamento e prazer que ela oferecia de maneira plena, calava-me e partia. Queria oferecer-lhe minha sensação à deriva.
Contudo, da profunda escuridão que havia lhe reservado, ela emergira de perversa maneira. Sumira durante dias. A moça com quem dividia o velho sobrado, negava-me notícias suas, num conluio de Marias. Já arrebentara o carnaval na cidade santa. Onde estaria? O que sucedera era o de não acreditar. Começaram a chegar notícias. Ela saíra de branco no Bloco da Praia, sem roupas íntimas. Dançara seminua, debaixo da chuva veraneia, beijara homens, mulheres, velhos, meninos. Se perguntavam por mim, não sabia. Saiu no Copo Sujo, nos Metralhas, comeu Pão Molhado, fantasiou-se de homem nas Domésticas, foi prostituta, soldado, freira, dama, Colombina, Arlequino. Numa das noites, encontrei-a em meio a uma roda de samba, linda pombajira... Seu olhar atravessara-me e fugiu como um bicho arisco. Perdi sua presença na multidão carnavalesca. Esperei, à porta da sua casa, já alta madrugada, nada. Havia terminado a segunda-feira e diziam, a São Geraldo, dessa vez, vencia. Escola de samba com nome de santo, tão Brasil.
Sua amiga deixou-me entrar, que a esperasse cá dentro, cansara-se do meu martírio. Deitei em nossa cama, cheirava as roupas, displicentemente, esquecidas. Amanheceu uma terça chuvosa, meio-dia e ela não havia aparecido. Fui para casa, voltava mais tarde. Tardou e ela ainda sem dar vista. Aquele Cavalo-Marinho não tinha brandura. Queria entender o que havia acontecido? O porquê daquela mudança libertina, daquele partido alto ensandecido? Eu já não era de grandezas, sequer sustentaria qualquer altivez. Até que veio um fato ocorrido. Encontraram um corpo feminino na Cachoeira do Catorze: cabelos pretos, pele clara, entre 20 e 25 anos, sem documento. Era para se reconhecer o corpo. Eu fui, mesmo em desatino. No corredor da Santa Casa, contei os ladrilhos. Cheguei à porta das gavetas, abriram. Eu queria mesmo dizer que era ela. Talvez daria descanso, ela morta. Mas, não, nada disso. Na verdade, nunca mais soube notícias suas. Dizem uns que ela se foi, fugida com gringo. Outros, mais iniciados no vento, viram-na nas ruas, num sonho convulso. Eu, por minha vez, tenho apenas a lembrança daqueles olhos sombrios na última ocasião em que nos vimos. Ela tinha medo do escuro e eu sabia disso.
Diadorim,
ResponderExcluircomo havia dito, acho lindo esse seu texto.
Oswaldo
Interessantíssimo texto... Percebo tantas influências, ora de Nelson Rodrigues, ora de García Marquez, ora de Machado de Assis. Continue escrevendo.
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