Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
terça-feira, 29 de abril de 2008
sábado, 26 de abril de 2008
De A geração que esbanjou seus poetas
O futuro também não nos pertence. Daqui a algumas dezenas de anos, seremos chamados, sem qualquer piedade, de gente do milênio passado. Tínhamos apenas cantos apaixonados sobre o futuro e, de repente, esses cantos, frutos da dinâmica do presente, transformaram-se em fatos da história literária. Quando os cantores são assassinados e as canções, arrastadas ao museu e presas ao passado, a geração atual torna-se ainda mais desolada, mais abandonada e mais perdida, mais deserdada, no sentido verdadeiro da palavra.
(Roman Jakobson – in A geração que esbanjou seus poetas. Cosac&Naif. 2006. Tradução: Sonia Regina Martins Gonçalves)
(Roman Jakobson – in A geração que esbanjou seus poetas. Cosac&Naif. 2006. Tradução: Sonia Regina Martins Gonçalves)
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Adônis
O doce Adônis morreu, Afrodite: que fazer?
__ Flagelai, moças, os vossos seios,
rasgai, amigas, as vossas vestes
Safo de Lesbos
terça-feira, 22 de abril de 2008
À ESPERA DOS BÁRBAROS (1)
O livro de Coetzee é uma bela alegoria sobre o poder. Enxuto e pungente, o narrador contrapõe, às certezas de um cotidiano bisonho, o acontecimento. O magistrado de um lugar distante do Império (não há uma localçização precisa para este império) se vê questionado sobre a noção prévia de justiça e, ao mesmo tempo verifica que a "justiça", praticada segundo os códigos de conduta estabilizados sob as ordens do império, pode ser tão mais cruel quando substituída por uma ordem aleatória e pessoal.
Leitura obrigatória para quem gosta de boa literatura.
(oswaldo martins)
domingo, 20 de abril de 2008
Rua dos Gusmões
Enviou-nos o Cesar Cardoso essa nova pérola do Adoniran
Rua dos Gusmões
O meu violão ficou
Como refém nas mãos do meu amor
E agora como é que eu vou fazer
para poder resgatar?
Sem ela eu não posso ficar
Sem meu violão, como é que eu vou fazer?
A malvada quer
Que eu troque o samba pelo iê-iê-iê
Essa mulher sabe que por ela
Sou capaz de tudoSou capaz até
De atravessar a rua dos Gusmões
Lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões
Mas trocar meu samba
Pelo iê-iê-iênão pode ser
(Adoniran Barbosa)
Rua dos Gusmões
O meu violão ficou
Como refém nas mãos do meu amor
E agora como é que eu vou fazer
para poder resgatar?
Sem ela eu não posso ficar
Sem meu violão, como é que eu vou fazer?
A malvada quer
Que eu troque o samba pelo iê-iê-iê
Essa mulher sabe que por ela
Sou capaz de tudoSou capaz até
De atravessar a rua dos Gusmões
Lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões
Mas trocar meu samba
Pelo iê-iê-iênão pode ser
(Adoniran Barbosa)
sábado, 19 de abril de 2008
pompéia
3
nesta voz a sombra de outras vozes
onde pompéia em torso outrora nu
uma mulher descalça
pela língua areenta olhou
salgaram-lhe a carne
despiram-lhe o manto
entretanto o desafio de olhar
persiste nos vazios
que o fogo acicata
(oswaldo martins)
nesta voz a sombra de outras vozes
onde pompéia em torso outrora nu
uma mulher descalça
pela língua areenta olhou
salgaram-lhe a carne
despiram-lhe o manto
entretanto o desafio de olhar
persiste nos vazios
que o fogo acicata
(oswaldo martins)
Caymmi
Caymmi. Sempre a vontade enorme de pensar nas suas composições, sempre a vontade de escrever sobre ele. Noto uma expressão a ponto do osso, intestina, construída sobre a contenção despojada do mínimo. Belo Caymmi.
(oswaldo martins)
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Poema de Cabral e Imagem de Graciliano
GRACILIANO RAMOS:
Falo somente com o que falo:
Com as mesmas vinte palavras
Girando ao redor do sol
Que as limpa do que não é faca:
De toda uma crosta viscosa,
Resto de janta abaianada,
Que fica na lâmina e cega
Seu gosto de cicatriz clara.
Falo somente do que falo:
Do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
Ali do mais quente vinagre:
Que reduz tudo ao espinhaço,
Creta o simplesmente folhagem,
Folha prolixa, folharada,
Onde possa esconder a fraude.
Falo somente por quem falo:
Por quem existe nesses climas
Condicionados pelo sol,
Pelo gavião e outras rapinas:
E onde estão os solos inertes
De tantas condições caatinga
Em que só sabe cultivar
O que é sinônimo de míngua.
Falo somente para quem falo:
Quem padece sono de morto
E precisa um despertador
Acre, como o sol sobre o olho:
Que é quando o sol é estridente,
A contra-pêlo, imperioso,
E bate nas pálpebras como
Se bate numa porta a socos.
(MELO NETO, João Cabral de. Serial. Obras completas vol. I.)
Falo somente com o que falo:
Com as mesmas vinte palavras
Girando ao redor do sol
Que as limpa do que não é faca:
De toda uma crosta viscosa,
Resto de janta abaianada,
Que fica na lâmina e cega
Seu gosto de cicatriz clara.
Falo somente do que falo:
Do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
Ali do mais quente vinagre:
Que reduz tudo ao espinhaço,
Creta o simplesmente folhagem,
Folha prolixa, folharada,
Onde possa esconder a fraude.
Falo somente por quem falo:
Por quem existe nesses climas
Condicionados pelo sol,
Pelo gavião e outras rapinas:
E onde estão os solos inertes
De tantas condições caatinga
Em que só sabe cultivar
O que é sinônimo de míngua.
Falo somente para quem falo:
Quem padece sono de morto
E precisa um despertador
Acre, como o sol sobre o olho:
Que é quando o sol é estridente,
A contra-pêlo, imperioso,
E bate nas pálpebras como
Se bate numa porta a socos.
(MELO NETO, João Cabral de. Serial. Obras completas vol. I.)
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Paul Celan
STEHEN, IM SCHATTEN
des Wundenmals in der Luft.
Für-niemand-und-nichts-Stehn.
Unerkannt,
für dicha
alien.
Mit allem, was darin Raum hat,
auch ohne
Sprache.
ESTAR, NA SOMBRA
do estigma do ar.
Para-ninguém-e-nada-estar.
Irreconhecido,
para ti
somente.
Com tudo o que lá dentro cabe,
Mesmo que sem
Fala.
(Paul Celan – tradução de Cláudia Cavalcanti)
des Wundenmals in der Luft.
Für-niemand-und-nichts-Stehn.
Unerkannt,
für dicha
alien.
Mit allem, was darin Raum hat,
auch ohne
Sprache.
ESTAR, NA SOMBRA
do estigma do ar.
Para-ninguém-e-nada-estar.
Irreconhecido,
para ti
somente.
Com tudo o que lá dentro cabe,
Mesmo que sem
Fala.
(Paul Celan – tradução de Cláudia Cavalcanti)
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Lucidez do oco
5
man ray
a mulher
dos irisados cinzas
curvas
vítreo olhar
tristeza
(oswaldo martins)
man ray
a mulher
dos irisados cinzas
curvas
vítreo olhar
tristeza
(oswaldo martins)
Lucidez do oco
5
dentre as mil utilidades do algodão
a avidez
com que cerram
a boca
as narinas
as orelhas
a rigidez
e o olhar
da quietude
(oswaldo martins)
dentre as mil utilidades do algodão
a avidez
com que cerram
a boca
as narinas
as orelhas
a rigidez
e o olhar
da quietude
(oswaldo martins)
terça-feira, 15 de abril de 2008
Sobre a poesia
A poesia, como a entendo, é feita de radicalidade, da necessidade de ultrapassar os limites. É a pura expressão da liberdade. Todas as censuras, todos os senões caem por terra ante sua presença. Ela instaura sentidos. Sem os sentidos, estaremos todos nós mortos. O comezinho, o cotidiano é nossa morte mais imediata; a outra, a que nos apaga irremediavelmente, não importa, é um acontecimento para os outros. Por isso somos livres, porque cessamos quando enfim cessamos. O que de nós fica é esse exercício diário de buscar sentidos, de doar sentidos para as pessoas – nas quais nos incluímos. Estranhamente não se consegue chegar ao sentido sem uma grande dose de lógica, do exercício constante do deslocamento do que se procura dizer.
Uma das experiências mais frutíferas e curiosas da recepção dos meus poemas são aquelas que os tomam ao pé da letra e por isso ficam tramando um Oswaldo desconhecido de mim mesmo. Poemas são intenções lógicas. Para penetrar seu sentido oculto, deve-se atirar a mão no vazio que fica entre as palavras, como um construtor de nadas que são concretude no exato ali onde são construídas as argamassas que unem as palavras e seu sentido. Muitas vezes a radicalidade do que se afirma no poema vai se tornar ainda mais radical quando se percebe o ponto de ataque que ele contém. Assim como num papel imaginário que pudesse se desdobrar, se desdobrar ao infinito ou um átomo que pudesse ser dividido, dividido até deixar de ser átomo e se tornasse átomo do átomo. Ou as trevas das trevas como nas trevas de Trakl.
Um poema erótico, por exemplo, só é erótico na sua tosca aparência, só é radical porque atrás dele se anuncia uma outra radicalidade, construída através desta lógica do absurdo concreto. Tome-se um exemplo. Aretino. O poeta, inventor da pornografia literária, é sobremodo o poeta de seu tempo. Aquele que permitiu ver mais longe e proficuamente o que nós somos ou fomos. Não foi a ciência de Galileu ou a física newtoniana que nos constituiu, mas foram os espaços vazios do próprio universo, sua inexplicitude – as interrogações que todo homem se faz e para as quais não encontra respostas, senão no imediatismo do corpo – que construíram a precariedade com que devemos encarar a vida e sua relatividade.
Depois do corpo, nada nos resta – sequer o amor. O amor morre com o corpo.
14
no meio do caminho
Uma das experiências mais frutíferas e curiosas da recepção dos meus poemas são aquelas que os tomam ao pé da letra e por isso ficam tramando um Oswaldo desconhecido de mim mesmo. Poemas são intenções lógicas. Para penetrar seu sentido oculto, deve-se atirar a mão no vazio que fica entre as palavras, como um construtor de nadas que são concretude no exato ali onde são construídas as argamassas que unem as palavras e seu sentido. Muitas vezes a radicalidade do que se afirma no poema vai se tornar ainda mais radical quando se percebe o ponto de ataque que ele contém. Assim como num papel imaginário que pudesse se desdobrar, se desdobrar ao infinito ou um átomo que pudesse ser dividido, dividido até deixar de ser átomo e se tornasse átomo do átomo. Ou as trevas das trevas como nas trevas de Trakl.
Um poema erótico, por exemplo, só é erótico na sua tosca aparência, só é radical porque atrás dele se anuncia uma outra radicalidade, construída através desta lógica do absurdo concreto. Tome-se um exemplo. Aretino. O poeta, inventor da pornografia literária, é sobremodo o poeta de seu tempo. Aquele que permitiu ver mais longe e proficuamente o que nós somos ou fomos. Não foi a ciência de Galileu ou a física newtoniana que nos constituiu, mas foram os espaços vazios do próprio universo, sua inexplicitude – as interrogações que todo homem se faz e para as quais não encontra respostas, senão no imediatismo do corpo – que construíram a precariedade com que devemos encarar a vida e sua relatividade.
Depois do corpo, nada nos resta – sequer o amor. O amor morre com o corpo.
14
no meio do caminho
um cupido torto
puxava tanto a carriola,
bia
nossos cabelos voavam
tanto
que
nos consumia
o braseiro
O poema acima – de minha autoria – percorre uma vasta tradição literária, que se apropria de Dante, de Goethe e de algum Drummond. As referências são explicitas – como o sexo é explicito. O Canto do Inferno, o Prometeu de Goethe e a alusão parodística de Drummond. A poesia radicaliza quando lê a tradição. O sexo referido pelo braseiro, a carriola da vergonha medieval – própria para adúlteros – quem não conhece o Lanlelote, o cavalheiro da charrete, de Chretyen? – denunciam o ponto da lógica concreta, contrastam com o prazer dos cabelos voando. Mais além da própria cultura – ou do que se convenceu chamar cultura – fixa-se a entronização do corpo erótico, do prazer que advém de todo erótico – que é a vida na sua duração corporal. Desestabilizadora, a poesia funda a percepção da vida e apela – como um clássico, que nos aconselhe a aproveitar a vida.
(oswaldo martins)
O poema acima – de minha autoria – percorre uma vasta tradição literária, que se apropria de Dante, de Goethe e de algum Drummond. As referências são explicitas – como o sexo é explicito. O Canto do Inferno, o Prometeu de Goethe e a alusão parodística de Drummond. A poesia radicaliza quando lê a tradição. O sexo referido pelo braseiro, a carriola da vergonha medieval – própria para adúlteros – quem não conhece o Lanlelote, o cavalheiro da charrete, de Chretyen? – denunciam o ponto da lógica concreta, contrastam com o prazer dos cabelos voando. Mais além da própria cultura – ou do que se convenceu chamar cultura – fixa-se a entronização do corpo erótico, do prazer que advém de todo erótico – que é a vida na sua duração corporal. Desestabilizadora, a poesia funda a percepção da vida e apela – como um clássico, que nos aconselhe a aproveitar a vida.
(oswaldo martins)
segunda-feira, 14 de abril de 2008
sexta-feira, 11 de abril de 2008
pompéia
2
quando rugiu o vulcão
quando sua língua de fogo
atravessou ruelas e ancoradouros
quando verifiquei que os homens
com seus falos calcinados
fariam de mim desejo
findo
nua
no chão sem acordes
fitei o horizonte de fogo
e contra essa sarça ardente
sob meu corpo despontada
olhei pompéia – a adversa –
e salivei
em sua terra a seiva
o desatino
a sepultura
(oswaldo martins)
quando rugiu o vulcão
quando sua língua de fogo
atravessou ruelas e ancoradouros
quando verifiquei que os homens
com seus falos calcinados
fariam de mim desejo
findo
nua
no chão sem acordes
fitei o horizonte de fogo
e contra essa sarça ardente
sob meu corpo despontada
olhei pompéia – a adversa –
e salivei
em sua terra a seiva
o desatino
a sepultura
(oswaldo martins)
Propiciação
Enviou-me o Elesbão
Propiciação
Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo
Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande
Propiciação
Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo
Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande
quarta-feira, 9 de abril de 2008
Cinzas de um carnaval
Sempre estive a racionalizar tudo, mas ela pensava como sentia. Nunca havia conhecido pessoa tão passional. Acaso chovesse, ela lá, sob a água torrencial, pisando nas poças da rua. Na primavera, flor no cabelo. No inverno, cachecol colorido e vinho quente. Para esquentar o corpo, dizia com malícia. Tocava violão e recitava poesia. Embriagada, gostava de Manuel Bandeira. Uns tomam éter, outros cocaína, eu tomo alegria, e ria entre dentes. Se triste, escolhia, melancólica, Mário de Andrade e Cecília Meireles na angústia poética da vida. Na cama, gostava de Aretino e Oswaldo Martins. Conversava sobre tudo. Na política, esquerdista extrema, citava Marx e subia morro para cuidar de crianças sem pai e ouvir histórias de velhos. Não perdia ocasião de religião. Aproveitava todas. Bebia água de todo rio, como Riobaldo nas Veredas do Rosa. E isso era fala dela, que gostava do homem e daquele ser tão. Lia muito, de revista em quadrinhos à boa literatura. Entretanto, vê-la dizer textos marginais, umedecendo os lábios, num contínuo sem rumo, era paixão em demasia. Gostava de poesia de rua, teatro de esquina, causos de bar. Olha isso, olha aquilo. Olha isso e aquilo. Nunca isso ou aquilo. Aquela mulher sempre somava, compunha mais. Seus olhos amendoados, estranha sensação de ambigüidade. Eu punha prumo naquilo. Contudo, pareciam verdadeiros, mesmo quando chorava e, na verdade, nunca desconfiei de suas lágrimas.
Conheci-a no fim do curso de Psicologia, seguro de mim, homem formado, cheio de teorias sobre a mente e o comportamento. Quase já diagnosticava, laudando páginas e páginas de doenças psicossomáticas. Estava acautelado, pleno. Tinha amigos, gostava das noites boêmias, namorava, há anos, menina recatada e minha, seguramente, minha. Assunto para casar, filhos, tranqüilidade. A retidão da vida, tudo estava resolvido.
Ouvira falar dela na mesa de bar, “a namorada do Abílio”, um amigo filósofo, louco varrido, que na semana santa seguia as procissões aos gritos, em defesa acalorada do demônio. Sempre bêbado, o Abílio. As mulheres se benziam, os beatos com cara feia. Carregávamos nosso anjo decaído aos travancões e seus casos viravam assunto que rendia risadas na mesa do Bar do Paulinho: Abílio mijou na televisão do Luís, saiu rolando no morro da Rua do Ouro, dormiu na escadaria da Nossa Senhora das Mercês, roubou cavalo para ir à festa. A conversa ia noite adentro. Por fim, o fato foi o interesse despropositado de alguém naquele nosso amigo. E ela, não só o namorava, como estava a seu jeito apaixonada. Diziam ainda que era bonita. E sim, ela era bonita.
Nem acreditei quando ele chegou com aquela moça esvoaçante na noite do truco. Ninguém levava namorada e o Abílio não compreendia essas mesuras. Os cabelos negros dela desciam por entre o vestido solto, decote vivo, faltando sutiã que, certamente, ela queimara em praça pública. Por entre o tecido, despontava bico do seio e senti-me, por baixo, enrijecido. Ela possuía uma sinuosa boca sorridente, um caminhar serpenteado e não fugia aos olhos, era de entrar na retina. Conversava com todos, desdenhando o mesmo riso e aceitava, sim, entrar de fora no jogo. Em seguidas rodadas, bateu na mesa com um casal preto ou vermelho, escondidos na barra do vestido. Quem daria conta do ocorrido? Quando empreendíamos as conversas mais sórdidas e lascivas, ela conseguia virar o assunto e ser insinuante o bastante para se manter desafronteirada em inocente sensualidade. Bacante e virgem vestal, condensava as duas. No outro dia, ela foi comentário entre amigos. Quem compreendia aquela mulher com Abílio? Dois achavam que ela se insinuara a eles. Dois disseram mal, chamaram-na infame. Uns estavam encantados, vítimas de um feitiço, calando comentários, sonhando-a em pensamentos.
Meses depois, solteira pelas loucuras descabidas de nosso amigo, ela endiabrara numa dança inebriante, trocando de pares à revelia. Era serviço de noite inteira, diziam. Entregou-se a todos que quis e não quis. Confessou-me isso, depois, quando sofria. Manteve a fama alcançada na primeira noite em que nos fora apresentada: insinuante, infame, encantadora. Ouvi os comentários, mas estive distante. Embriagava-me com meus amigos, tinha meu cotidiano amor, meus estudos. Quem, vidente, poderia supor aquela desmedida em minha vida?
Foi num encontro fortuito na biblioteca da faculdade. Entrava com alguns livros, minhas últimas leituras freudianas, quando a vi entre as mesas, sozinha, lendo. Trocáramos algumas palavras, mas nada mais que isso. Eu tinha minhas certezas, não era de descaminhos. Mas, aquela mesa pareceu-me convidativa. Quem não queria a solidão partilhada a dois, sendo ela a outra parte? Cumprimentei-a, levantou-me os olhos, sorriu, fitando meus movimentos, voltou-se para o livro. Cabelos caídos, decote solto, novamente o seio e meu desejo levou-me à sensação da língua leve em seus mamilos. Gosta de Vinícius de Morais? Quase perdida a pergunta. Ela adivinhava meus pensamentos, descabia-me.
Desencaminhou-me para um vinho naquela tarde que durou toda minha vida. Beijou-me sôfrega durante a noite, ofereceu-se inteira nas passagens escuras que levavam à sua casa. Deitou-se nua na cama, sussurrou baixinho, um cheiro doce, um delicioso sabor no entre pernas. Não tinha nenhum pudor e sua luxúria transbordava de maneira tão natural, chegava a ser pura. Não havia pecado ali. Os olhos cerrados, a boca entreaberta, a pele pálida e suada. Era bela, envolvida naqueles lençóis. O prazer era intenso, sentia latejar meu sexo, perdido em campo úmido e quente. Eu estava entre os encantados. Era Ulisses, sem estar preso ao mastro. Não desejava, acorrentado, enlouquecer sozinho naquela odisséia de Homero. Nem correria o risco do silêncio kafkiano das sereias. Neguei a covardia e o orgulho. Mergulhei nas águas profundas daquela mulher marítima.
Assim, abandonei duas cadeiras na Faculdade. O namoro não sobreviveu às trocas de olhares e aos bilhetes amorosos entre meus pertences. Eu era distante do antigo amor, abandonara o porto seguro. A nau não reconhecia mais direção de bússola ou destino. Já ela, eu visitava, todos os dias. Saíamos juntos, bebíamos nas madrugadas. Sempre um estado da embriaguês, um torpor de noites regadas a prazer e poesia. Ela me amava, sofria nas minhas ausências, prendia-me na estreiteza de seus braços, pedia a promessa do não abandonar, enchia meus dias de mimos. Sentia-me como um corpo afogado, sensação do submerso amor. Pouco via meus amigos, que reclamavam meu sumiço. Penso hoje, invejavam. Diziam calúnias entre si e sempre que me encontravam, enchiam-me de conselhos não pedidos.
Durante muito tempo, ela foi minha, na inteireza da posse. Quase que podia respirar-lhe o ar. Longe de sua presença, minhas roupas emanavam seu cheiro. Tocava-me pensando nela e, vagarosamente, enlouquecia. Foi quando fiz para ela um pequeno cárcere de grades invisíveis. As canções só para mim calaram o violão. As poesias repetiam-se dia após dia. Na biblioteca, sempre comigo, tolhia seus passeios pelas prateleiras. Se acaso eu saísse da casa, deixava-a sozinha. Nada de caminhar entre meus amigos, sequer sorrisse. Sem palavras a homem qualquer. Criticava seu corpo quando ela colocava vestido, prendia seus seios em lingeries, ironizava as flores em seus cabelos. Cheguei mesmo a reclamar de nossa cama, dizendo-me insatisfeito com seu ardor. No desejo de torná-la luz só minha, transformei-a, pouco a pouco, em escuridão. Conseguia ser vil. Culpava-a. Fazia com que ela se lembrasse das vezes que dormira com meus amigos, diminuía sua beleza e seu encanto, reduzindo o desejo dos outros homens ao sexo fácil que ela havia oferecido. Remoía o passado, transformava-o em minha mente de maneira doentia, queria que ela não mais desejasse. Reduzia-a, mostrava como eu era generoso guardando-a comigo. Por fim, ela tinha aversão a tanto e tão pouco dizia que, finalmente, vislumbrei-a sozinha. E eu, envaidecido, por domar aquela besta selvagem, agora mansa e sem brilho. Chegava tarde em casa, encontrava-a entre lágrimas, num amuado baixinho. Dava-lhe carinho, fazíamos amor e, embora ainda sentisse o mesmo arrebatamento e prazer que ela oferecia de maneira plena, calava-me e partia. Queria oferecer-lhe minha sensação à deriva.
Contudo, da profunda escuridão que havia lhe reservado, ela emergira de perversa maneira. Sumira durante dias. A moça com quem dividia o velho sobrado, negava-me notícias suas, num conluio de Marias. Já arrebentara o carnaval na cidade santa. Onde estaria? O que sucedera era o de não acreditar. Começaram a chegar notícias. Ela saíra de branco no Bloco da Praia, sem roupas íntimas. Dançara seminua, debaixo da chuva veraneia, beijara homens, mulheres, velhos, meninos. Se perguntavam por mim, não sabia. Saiu no Copo Sujo, nos Metralhas, comeu Pão Molhado, fantasiou-se de homem nas Domésticas, foi prostituta, soldado, freira, dama, Colombina, Arlequino. Numa das noites, encontrei-a em meio a uma roda de samba, linda pombajira... Seu olhar atravessara-me e fugiu como um bicho arisco. Perdi sua presença na multidão carnavalesca. Esperei, à porta da sua casa, já alta madrugada, nada. Havia terminado a segunda-feira e diziam, a São Geraldo, dessa vez, vencia. Escola de samba com nome de santo, tão Brasil.
Sua amiga deixou-me entrar, que a esperasse cá dentro, cansara-se do meu martírio. Deitei em nossa cama, cheirava as roupas, displicentemente, esquecidas. Amanheceu uma terça chuvosa, meio-dia e ela não havia aparecido. Fui para casa, voltava mais tarde. Tardou e ela ainda sem dar vista. Aquele Cavalo-Marinho não tinha brandura. Queria entender o que havia acontecido? O porquê daquela mudança libertina, daquele partido alto ensandecido? Eu já não era de grandezas, sequer sustentaria qualquer altivez. Até que veio um fato ocorrido. Encontraram um corpo feminino na Cachoeira do Catorze: cabelos pretos, pele clara, entre 20 e 25 anos, sem documento. Era para se reconhecer o corpo. Eu fui, mesmo em desatino. No corredor da Santa Casa, contei os ladrilhos. Cheguei à porta das gavetas, abriram. Eu queria mesmo dizer que era ela. Talvez daria descanso, ela morta. Mas, não, nada disso. Na verdade, nunca mais soube notícias suas. Dizem uns que ela se foi, fugida com gringo. Outros, mais iniciados no vento, viram-na nas ruas, num sonho convulso. Eu, por minha vez, tenho apenas a lembrança daqueles olhos sombrios na última ocasião em que nos vimos. Ela tinha medo do escuro e eu sabia disso.
Conheci-a no fim do curso de Psicologia, seguro de mim, homem formado, cheio de teorias sobre a mente e o comportamento. Quase já diagnosticava, laudando páginas e páginas de doenças psicossomáticas. Estava acautelado, pleno. Tinha amigos, gostava das noites boêmias, namorava, há anos, menina recatada e minha, seguramente, minha. Assunto para casar, filhos, tranqüilidade. A retidão da vida, tudo estava resolvido.
Ouvira falar dela na mesa de bar, “a namorada do Abílio”, um amigo filósofo, louco varrido, que na semana santa seguia as procissões aos gritos, em defesa acalorada do demônio. Sempre bêbado, o Abílio. As mulheres se benziam, os beatos com cara feia. Carregávamos nosso anjo decaído aos travancões e seus casos viravam assunto que rendia risadas na mesa do Bar do Paulinho: Abílio mijou na televisão do Luís, saiu rolando no morro da Rua do Ouro, dormiu na escadaria da Nossa Senhora das Mercês, roubou cavalo para ir à festa. A conversa ia noite adentro. Por fim, o fato foi o interesse despropositado de alguém naquele nosso amigo. E ela, não só o namorava, como estava a seu jeito apaixonada. Diziam ainda que era bonita. E sim, ela era bonita.
Nem acreditei quando ele chegou com aquela moça esvoaçante na noite do truco. Ninguém levava namorada e o Abílio não compreendia essas mesuras. Os cabelos negros dela desciam por entre o vestido solto, decote vivo, faltando sutiã que, certamente, ela queimara em praça pública. Por entre o tecido, despontava bico do seio e senti-me, por baixo, enrijecido. Ela possuía uma sinuosa boca sorridente, um caminhar serpenteado e não fugia aos olhos, era de entrar na retina. Conversava com todos, desdenhando o mesmo riso e aceitava, sim, entrar de fora no jogo. Em seguidas rodadas, bateu na mesa com um casal preto ou vermelho, escondidos na barra do vestido. Quem daria conta do ocorrido? Quando empreendíamos as conversas mais sórdidas e lascivas, ela conseguia virar o assunto e ser insinuante o bastante para se manter desafronteirada em inocente sensualidade. Bacante e virgem vestal, condensava as duas. No outro dia, ela foi comentário entre amigos. Quem compreendia aquela mulher com Abílio? Dois achavam que ela se insinuara a eles. Dois disseram mal, chamaram-na infame. Uns estavam encantados, vítimas de um feitiço, calando comentários, sonhando-a em pensamentos.
Meses depois, solteira pelas loucuras descabidas de nosso amigo, ela endiabrara numa dança inebriante, trocando de pares à revelia. Era serviço de noite inteira, diziam. Entregou-se a todos que quis e não quis. Confessou-me isso, depois, quando sofria. Manteve a fama alcançada na primeira noite em que nos fora apresentada: insinuante, infame, encantadora. Ouvi os comentários, mas estive distante. Embriagava-me com meus amigos, tinha meu cotidiano amor, meus estudos. Quem, vidente, poderia supor aquela desmedida em minha vida?
Foi num encontro fortuito na biblioteca da faculdade. Entrava com alguns livros, minhas últimas leituras freudianas, quando a vi entre as mesas, sozinha, lendo. Trocáramos algumas palavras, mas nada mais que isso. Eu tinha minhas certezas, não era de descaminhos. Mas, aquela mesa pareceu-me convidativa. Quem não queria a solidão partilhada a dois, sendo ela a outra parte? Cumprimentei-a, levantou-me os olhos, sorriu, fitando meus movimentos, voltou-se para o livro. Cabelos caídos, decote solto, novamente o seio e meu desejo levou-me à sensação da língua leve em seus mamilos. Gosta de Vinícius de Morais? Quase perdida a pergunta. Ela adivinhava meus pensamentos, descabia-me.
Desencaminhou-me para um vinho naquela tarde que durou toda minha vida. Beijou-me sôfrega durante a noite, ofereceu-se inteira nas passagens escuras que levavam à sua casa. Deitou-se nua na cama, sussurrou baixinho, um cheiro doce, um delicioso sabor no entre pernas. Não tinha nenhum pudor e sua luxúria transbordava de maneira tão natural, chegava a ser pura. Não havia pecado ali. Os olhos cerrados, a boca entreaberta, a pele pálida e suada. Era bela, envolvida naqueles lençóis. O prazer era intenso, sentia latejar meu sexo, perdido em campo úmido e quente. Eu estava entre os encantados. Era Ulisses, sem estar preso ao mastro. Não desejava, acorrentado, enlouquecer sozinho naquela odisséia de Homero. Nem correria o risco do silêncio kafkiano das sereias. Neguei a covardia e o orgulho. Mergulhei nas águas profundas daquela mulher marítima.
Assim, abandonei duas cadeiras na Faculdade. O namoro não sobreviveu às trocas de olhares e aos bilhetes amorosos entre meus pertences. Eu era distante do antigo amor, abandonara o porto seguro. A nau não reconhecia mais direção de bússola ou destino. Já ela, eu visitava, todos os dias. Saíamos juntos, bebíamos nas madrugadas. Sempre um estado da embriaguês, um torpor de noites regadas a prazer e poesia. Ela me amava, sofria nas minhas ausências, prendia-me na estreiteza de seus braços, pedia a promessa do não abandonar, enchia meus dias de mimos. Sentia-me como um corpo afogado, sensação do submerso amor. Pouco via meus amigos, que reclamavam meu sumiço. Penso hoje, invejavam. Diziam calúnias entre si e sempre que me encontravam, enchiam-me de conselhos não pedidos.
Durante muito tempo, ela foi minha, na inteireza da posse. Quase que podia respirar-lhe o ar. Longe de sua presença, minhas roupas emanavam seu cheiro. Tocava-me pensando nela e, vagarosamente, enlouquecia. Foi quando fiz para ela um pequeno cárcere de grades invisíveis. As canções só para mim calaram o violão. As poesias repetiam-se dia após dia. Na biblioteca, sempre comigo, tolhia seus passeios pelas prateleiras. Se acaso eu saísse da casa, deixava-a sozinha. Nada de caminhar entre meus amigos, sequer sorrisse. Sem palavras a homem qualquer. Criticava seu corpo quando ela colocava vestido, prendia seus seios em lingeries, ironizava as flores em seus cabelos. Cheguei mesmo a reclamar de nossa cama, dizendo-me insatisfeito com seu ardor. No desejo de torná-la luz só minha, transformei-a, pouco a pouco, em escuridão. Conseguia ser vil. Culpava-a. Fazia com que ela se lembrasse das vezes que dormira com meus amigos, diminuía sua beleza e seu encanto, reduzindo o desejo dos outros homens ao sexo fácil que ela havia oferecido. Remoía o passado, transformava-o em minha mente de maneira doentia, queria que ela não mais desejasse. Reduzia-a, mostrava como eu era generoso guardando-a comigo. Por fim, ela tinha aversão a tanto e tão pouco dizia que, finalmente, vislumbrei-a sozinha. E eu, envaidecido, por domar aquela besta selvagem, agora mansa e sem brilho. Chegava tarde em casa, encontrava-a entre lágrimas, num amuado baixinho. Dava-lhe carinho, fazíamos amor e, embora ainda sentisse o mesmo arrebatamento e prazer que ela oferecia de maneira plena, calava-me e partia. Queria oferecer-lhe minha sensação à deriva.
Contudo, da profunda escuridão que havia lhe reservado, ela emergira de perversa maneira. Sumira durante dias. A moça com quem dividia o velho sobrado, negava-me notícias suas, num conluio de Marias. Já arrebentara o carnaval na cidade santa. Onde estaria? O que sucedera era o de não acreditar. Começaram a chegar notícias. Ela saíra de branco no Bloco da Praia, sem roupas íntimas. Dançara seminua, debaixo da chuva veraneia, beijara homens, mulheres, velhos, meninos. Se perguntavam por mim, não sabia. Saiu no Copo Sujo, nos Metralhas, comeu Pão Molhado, fantasiou-se de homem nas Domésticas, foi prostituta, soldado, freira, dama, Colombina, Arlequino. Numa das noites, encontrei-a em meio a uma roda de samba, linda pombajira... Seu olhar atravessara-me e fugiu como um bicho arisco. Perdi sua presença na multidão carnavalesca. Esperei, à porta da sua casa, já alta madrugada, nada. Havia terminado a segunda-feira e diziam, a São Geraldo, dessa vez, vencia. Escola de samba com nome de santo, tão Brasil.
Sua amiga deixou-me entrar, que a esperasse cá dentro, cansara-se do meu martírio. Deitei em nossa cama, cheirava as roupas, displicentemente, esquecidas. Amanheceu uma terça chuvosa, meio-dia e ela não havia aparecido. Fui para casa, voltava mais tarde. Tardou e ela ainda sem dar vista. Aquele Cavalo-Marinho não tinha brandura. Queria entender o que havia acontecido? O porquê daquela mudança libertina, daquele partido alto ensandecido? Eu já não era de grandezas, sequer sustentaria qualquer altivez. Até que veio um fato ocorrido. Encontraram um corpo feminino na Cachoeira do Catorze: cabelos pretos, pele clara, entre 20 e 25 anos, sem documento. Era para se reconhecer o corpo. Eu fui, mesmo em desatino. No corredor da Santa Casa, contei os ladrilhos. Cheguei à porta das gavetas, abriram. Eu queria mesmo dizer que era ela. Talvez daria descanso, ela morta. Mas, não, nada disso. Na verdade, nunca mais soube notícias suas. Dizem uns que ela se foi, fugida com gringo. Outros, mais iniciados no vento, viram-na nas ruas, num sonho convulso. Eu, por minha vez, tenho apenas a lembrança daqueles olhos sombrios na última ocasião em que nos vimos. Ela tinha medo do escuro e eu sabia disso.
terça-feira, 8 de abril de 2008
MULHER, PATRÃO E CACHAÇA
Num barracão da favela do Vergueiro,
Onde se guarda instrumento,
Ali, nós morava em três
Eu, Violão da Silveira, seu criado
Ela, Cuíca de Souza
E o Cavaquinho de Oliveira Penteado.
Quando o Cavaco centrava
E a Cuíca soluçava,
Eu entrava de baixaria.
E a chimangada sambava
Bebia, sacolejava
Dia e noite noite e dia
No barracão,
Quando a gente batucava,
Essa Cuíca malvada
Chorava como ela só,
Pois ela gostava demais do meu ritmo
E bem baixinho gemia
Gemia assim como quem tem
Algum dodói
Tudo aquilo era pra mim
Gemia e me olhava assim
Como quem diz:
“Alô, my boy”.
E eu como bom violão
Carregava no bordão
Caprichava em sol maior
Mas um dia um padrão de horror
Ouvi um rádio que anunciou,
Com fundo musical
“Dona Cuíca de Souza
Com Cavaco de Oliveira Penteado
Se casou”
Me deu uma coisa na caquete
Eu pegar o cavaco
O pandeiro me falou:
“Não seja bobo
Não se escacha
Mulher, patrão e cachaça
Em qualquer canto se acha”.
(Adoniran Barbosa)
Onde se guarda instrumento,
Ali, nós morava em três
Eu, Violão da Silveira, seu criado
Ela, Cuíca de Souza
E o Cavaquinho de Oliveira Penteado.
Quando o Cavaco centrava
E a Cuíca soluçava,
Eu entrava de baixaria.
E a chimangada sambava
Bebia, sacolejava
Dia e noite noite e dia
No barracão,
Quando a gente batucava,
Essa Cuíca malvada
Chorava como ela só,
Pois ela gostava demais do meu ritmo
E bem baixinho gemia
Gemia assim como quem tem
Algum dodói
Tudo aquilo era pra mim
Gemia e me olhava assim
Como quem diz:
“Alô, my boy”.
E eu como bom violão
Carregava no bordão
Caprichava em sol maior
Mas um dia um padrão de horror
Ouvi um rádio que anunciou,
Com fundo musical
“Dona Cuíca de Souza
Com Cavaco de Oliveira Penteado
Se casou”
Me deu uma coisa na caquete
Eu pegar o cavaco
O pandeiro me falou:
“Não seja bobo
Não se escacha
Mulher, patrão e cachaça
Em qualquer canto se acha”.
(Adoniran Barbosa)
domingo, 6 de abril de 2008
ORFEU ELÉTRICO
O que mais me impressionou no filme de Scorcese foi esta ultrapassagem do documentário como observação muitas vezes distanciada (sem, no entanto, querer aqui traçar paralelo com os geniais documentaristas brasileiros). Trata-se de uma poética do documentário em que a tensão do ficcionista invade o palco junto com os atores fazendo o filme acontecer, mas sempre correndo o risco das perdas de prováveis tomadas que não foram planejadas nem calculadas e que angustiam o diretor, mas que se tornam por isso mesmo a meta da narrativa. A banda até o último instante não entrega a seqüência de músicas. Está lançado o motor do filme. Isto que acontece nos instantes iniciais se contrapõe com as remissões ao passado da banda em que se vê como a expectativa dos que estão de fora os (ouvintes ou a mídia em geral) aguarda a paralisia, a parada, o encerramento geral da explosão dos Stones. Esse contraponto do discurso verbal contrasta com a resposta que os corpos elétricos dão num palco que se transforma em cenário de exibição das sinapses neurônicas e de suas metamorfoses em imagens do movimento. Só Scorcese - acostumado a nos proporcionar o susto e a surpresa ao cortar o esperado das seqüências narrativas tradicionais - chega junto e interpreta com luz hiperbólica o que é da ordem do pensamento enquanto fluxo que desliza do córtex e percorre o corpo todo do cantor Mick até a ponta dos dedos, como se eles fossem a voz e a extensão toda do corpo se afinando na ponta e falando intensamente pelas unhas. A banda não parou aos dois anos, como se esperava, os rapazes não param agora e as treze câmeras não param de comover nessa celebração do movimento. O corpo plástico e a perda da unidade provocada pela imagem consagram o instante como lugar do pensamento que está sempre indo mais além da percepção.
(Luiz Fernando Medeiros de Carvalho)
sexta-feira, 4 de abril de 2008
sáficas
5
dizem que em lesbos
vive safo.
a poeta
com as palavras
apaixona tanto
os deuses
que faz o vendaval
desabar sobre os caralhos
(oswaldo martins)
dizem que em lesbos
vive safo.
a poeta
com as palavras
apaixona tanto
os deuses
que faz o vendaval
desabar sobre os caralhos
(oswaldo martins)
quarta-feira, 2 de abril de 2008
Poema
sermão bruto
num mundo onde naufragam
os corpos abrasados
encontro
boas razões
para o comércio da língua incerta
talvez por dilatarem
muito ávidos
os destroços da não poesia
e dos seus habitantes
é dificultoso assegurar
pensamentos levantados
na véspera de males
bom e vário acidente
é hospedar sertão e comédia
(in "olho empírico". inédito)
num mundo onde naufragam
os corpos abrasados
encontro
boas razões
para o comércio da língua incerta
talvez por dilatarem
muito ávidos
os destroços da não poesia
e dos seus habitantes
é dificultoso assegurar
pensamentos levantados
na véspera de males
bom e vário acidente
é hospedar sertão e comédia
(in "olho empírico". inédito)
terça-feira, 1 de abril de 2008
Cântico dos Cânticos
És jardim fechado minha irmã minha esposa um jardim fechado uma fonte selada
as tuas plantas um bosque de romãzeiras com frutos deliciosos
com cipros e nardos nardo e açafrão
cálamo e canela e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés e os bálsamos escolhidos
a fonte do jardim uma cisterna de água viva que jorra desde o Líbano
levanta-te vento norte vem vento do sul soprai no meu jardim espalhem os seus perfumes
entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos doces.
Tradução do hebraico por José Tolentino Mendonça (Livros Cotovia, Lisboa)
as tuas plantas um bosque de romãzeiras com frutos deliciosos
com cipros e nardos nardo e açafrão
cálamo e canela e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés e os bálsamos escolhidos
a fonte do jardim uma cisterna de água viva que jorra desde o Líbano
levanta-te vento norte vem vento do sul soprai no meu jardim espalhem os seus perfumes
entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos doces.
Tradução do hebraico por José Tolentino Mendonça (Livros Cotovia, Lisboa)
Órfãos do Eldorado
A gente quer entender uma pessoa, só encontra silêncio
(Milton Hatoum - Órfãos do Eldorado)
Recomendando a leitura 10
Milton Hatoum vem se revelando, ao longo destes últimos anos, um dos nossos maiores escritores. Desde Relato de um certo oriente até o último livro, Órfãos do Eldorado, sua prosa, decidida, traz a lembrança dos grandes mestres. Por isso, a recomendação de leitura se restringe aos quatros romances que publicou.
1 – Relato de um certo oriente – Milton Hatoum – Cia. das letras. 1989.
2 – Dois irmãos – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2000,
3 – Cinzas do Norte – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2005
4 – Órfãos do Eldorado – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2008.
1 – Relato de um certo oriente – Milton Hatoum – Cia. das letras. 1989.
2 – Dois irmãos – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2000,
3 – Cinzas do Norte – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2005
4 – Órfãos do Eldorado – Milton Hatoum – Cia. das letras. 2008.
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