quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Pesadelo refrigerado

Quando surgiu o telégrafo sem fio, todo mundo pensava: "Que maravilha! Agora vamos estar em comunicação com o mundo todo!" E a televisão: "Que maravilha! Agora Agora vamos poder ver o que acontece na China, na África, nas partes mais remotas do mundo!" Eu costumava pensar que talvez um dia surgisse um aparelho que me permitiria veros chineses andando nas ruas de Pequim e Xangai e selvagens no coração da àfrica celebrando seus ritos de iniciação. O que vemos e ouvimos de fato hoje? O que os censores nos permitem ver e ouvir, nada mais. A Índia continua tão remota como sempre foi - na verdade, acho que mais remota agora do que cinquenta anos atrás.

(Henry Miller)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

lorca

1

passam em bandos os urubus
as crianças olham

o universo se perde
tudo a una cor

astrolábio de cimento
e cal

****

granada
de terracota

construiu salamanca
para julgar

galileu

para deixar
livres

os velhos padres
sandeus

(oswaldo martins)

sábado, 25 de outubro de 2008

Fez, trinta poemas

Fès Aimeé
Fès trahie
Fès oubliée, emportée sur un paquebot
Vers Venise
Pour laver les mur et paver les rues.

Fès est une nuit de Sharazade
Avec ses palais abîmés
Ses ruelles infinies
Avec ses pierres
Ses mots, ses versets e ses ètoiless déchues.

Fès circule au Caire, la jupe fendue, le buste nu
Fès s’installe au marché de Sana’a
ET essuie lês balles de La guerre

Fès Voyage
Et lâche sés orpeaux
Partout où elle est prise d’asthme.

(Fès. Treite poèmes)

(Tahar Ben Jelloun)


****


Fez amada
Fez ferida
Fez esquecida, enviada num cargueiro
Rumo a Veneza
Para lavar os muros e pavimentar as ruas.

Fez é uma noite de Sherazade
Com seus palácios deteriorados
Suas vielas infinitas
Com sua pedras
Suas palavras, seus versículos e suas estrelas depostas.

Fez circula no Cairo, a saia fendida, o busto nu.
Fez se instala no mercado de Sana’a
E enxuga as balas da guerra.

Fez viaja
E deixa seus ouropéis
Por todo lado quando atacada de asma.

(Fez, trinta poemas)

(Tahar Ben Jelloun – Tradução Cláudia Falluh Balduino Ferreira)

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Jacopone da Todi

XLVIII

O Senhor, por cortesia,
Males ao corpo me envia!

Me venha a febre quartã,
Febre contínua e treçã,
Febre à noite e de manhã
E uma grande hidropisia.

Que me venha dor de dente,
Dor de cabeça e do ventre,
Arda a garganta atrozmente,
E o estômago tenha azia;

Os olhos doam e o flanco,
E um abscesso que não ‘stanco;
Que eu fique tísico e manco,
Sofra sempre de anemia.

Fique o fígado inflamado,
Podre o baço, o ventre inflado;
O pulmão em mau estado
Com tosse e paralisia.

Me venham cancros minúsculos
E milhares de furúnculos,
Fistulas como carbúnculos,
Sem parar, a cada dia.

Me venha grave podagra,
Cílios doentes eu traga,
E hemorróida em rubra chaga
De tanta desinteria.

Que eu tenha a boca ulcerosa
E cólica impiedosa;
Uma angina dolorosa
No peito, asma e asfixia.

Que o mal-caduco eu apanhe,
No fogo e na água, inane,
Eu desfaleça e me banhe,
Sem descanso ou melhoria.

Venham cegueira, surdez,
Venha depois a mudez,
Venha miséria e escassez,
Penas que nada alivia.

Que meu fedor afugente
Todo e qualquer ser vivente,
Que eu siga enfermo e dolente
Por uma estrada vazia.

No fosso horrível jogado
Que Regoverci é chamado,
Me consuma abandonado
Sem uma só companhia.

Neve, granizo, mau tempo,
Raio e treva, trovão, vento:
Não me poupe um contratempo,
Nem se vá se me assedia.

Demônios do negro inferno
Me tenham sob o seu governo,
Que seja um suplício eterno
Meu lucro após a folia.

Neste mundo sem guarida
Vá durando toda vida,
Mais tarde enfim, na partida,
Me aguarde morte sombria.

Seja um lobo a sepultura
Que me roa a ossada impura,
E relíquia a bosta escura
Caída entre a ramaria.

Os milagres ‘pós morte:
Com visões de toda sorte
Se aflija o incauto sem norte
que acaso tome esta via.

E sempre que eu for lembrado,
Sinais-da-cruz afobados
Sejam a medo esboçados,
Ou um desgraça viria.

Senhor, o castigo é nada,
Branda apena reclamada:
Tua cria bem-amada,
Te matei por vilania.

(Jacopone da Todi – século XIII)

Para estudar Jacopone:

Em português:
Ungaretti, Giuseppe: Invenção da poesia moderna: lições de literatura no Brasil, 1937 – 1942. São Paulo. Ática, 1996, p. 42-74.
Auerbach, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo. Perspectiva, 1987, p. 147-150.

Spina, Segismundo. Manual de versificação românica medieval. São Paulo: Ateliê, 2003, p. 88-95.

Falbel, Nachman. Os espirituais franciscanos. São Paulo. Perspectiva, 1995

Souza, Marcelo Paiva. Traduzir Jacopone da Todi, in: Revista eletrônica de Estudos Literários. UFES. www.ufes.br/~mlb/>.

Em inglês:

Dronke, Peter. Medieval Lyric. Cambridge: D.S. Brewer, 2002

Peck, George T. The fool of God: Jacopone da Todi. Alabama. The University of Alabama Press, 1980.

As fontes de pesquisa, assim como o poema que aqui se lê, são de livro editado pela Editora UnB. Assina a seleção, a tradução e organização Marcelo Paiva de Souza.

A coleção chamada poetas do mundo edita diversos poetas de diversas nacionalidades Vale a pena conferir para que se possa conhecer e estudar essa produção, que para nós soa ainda como marginal. Encontrei os livrinhos na Arlequim, agora livraria, café e loja de CDs.
Para apreciação de vocês, um poema da japonesa Yosano Akiko, que viveu entre 1878 e 1942.

cabelo solto
espalha-se no quarto
perfume de lis
lentamente esvaece
a noite de amor rosa

(Yosano Akiko)

1

supor teus seios
catedrais onde celebro

nelas compor o desespero
da alegria

e olhos
para o despudor.

(oswaldo martins)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Um país parnasiano

Um país parnasiano


Os poetas modernistas leram a poesia parnasiana e a condenaram. Procuravam mudar os padrões de leitura do país. Desde os manifestos aos poemas escritos, pode-se ler o desprezo e o combate contra a retórica dos poetas do fim de século. Sabiam os modernistas que a poesia parnasiana, por trás do artesanato correto e erudito, escondia monstros – como os de Goya. O aparente deslocar-se da realidade, para privilegiar a forma poética, escondia o retrato monstruoso do país.

Os movimentos sociais do final do século XIX permitiram uma série de modificações no corpo político da nação. A substituição – da mão de obra escrava pela sub-assalariada; a Monarquia pela República positivista; os cortiços e casas de pensão por uma cidade que se queria asséptica – é apenas um dos índices destas modificações. A poesia parnasiana é outra dessas modificações. Conforme diz Antônio Candido em seu instigante artigo sobre a poesia realista, Os primeiros baudelairianos[1], os seguidores do parnasianismo “não poderiam aceitar Baudelaire, que naquele tempo era sinônimo de revolta, niilismo, neurose e desmando sexual – alimentos fortes demais para os nossos corretos parnasianos, que foram uns verdadeiros campeões de falsas ousadias”. (grifo meu). (Candido: 38 – 1987).

A recusa de Baudelaire faz pensar. Ao se recusarem ir para ruas, como a nação brasileira não foi, quando se anunciaram as modificações políticas a que se refere acima, os parnasianos interpretavam o país asséptico que se confirmava, através do positivismo, com seus lemas inspirados na ordem, na limpeza, na sujeira e miséria varridas para baixo do tapete. A cidade francesa de Haussmann transformou-se na cidade de Passos e deu frutos nação afora. Higienização e pureza d’alma, padrões que se reproduziram durante todo o século XX. Seja no Estado Novo de Vargas, seja na edição golpista de 64. Não se pode esquecer que diversos dos baluartes civis e militares de 64 atuaram no corpo político do governo Vargas. A democracia que surge e se instaura no país, após 64, teria a necessidade de recompor-se contra o autoritarismo. Triste país, que se esconde sob o manto da pureza e do silêncio, quando quaisquer vozes se elevam para discordar, futucar o estabelecido como norma. Ousadias, aqui, só se forem as parnasianas.

Por isso o legado modernista é mal compreendido. Quando Manuel Bandeira escreve seus poemas que incentivam a vida, – ler o Pneumotórax, por exemplo, como um reflexo da tuberculose é de uma incapacidade tola, pois nele o que se lê é o apelo à vida que se esvai, um último desejo que se revela pelo aproveitamento do dia – surgem as marcas sujas da vida, da sordidez, da lama. Diz o poeta, em 1949:

O poeta deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor contente de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e
[as amadas que envelhecem sem maldade.[2]

Parece que os leitores deste nosso século XXI preferem a assepsia dos poetas parnasianos, sua falsa ousadia, a capacidade tola de se comprazer com a emoção fácil das televisões – o que revela um outro dado poético de permanência no universo da escrita brasileira, o apelo romântico, a visão beatífica do paraíso. Por isso buscam esquecer que as meninas da gare – nossas índias, ou seu legado – foram prostituídas e, assim, isoladas pela limpeza que o parnasianismo representou e ainda representa. Daí a necessidade da poesia – e da prosa – suja, em que se mesclam a bunda da miséria e a exploração do universo espantoso da palavra.

Rio, outubro, de 2008

Oswaldo Martins



[1] Candido, Antônio. Educação pela noite. Editora Ática. São Paulo. 1987.
[2] Bandeira, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1993

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Desestudos

2

todo
o mar

as quilhas
o farol das cobras

a ilha apagada

(oswaldo martins - desestudos - doze estudos para marinhas)

4

desver a cidade
é um ato
uma prática

sem olhos
sem sentidos

fundamento errático

sob o vão
do próprio

sovaco

(oswaldo martins - desestudos - Doze estudos para caos e linguagem)

Poemas da Invenção de Orfeu

II

A ilha ninguém a achou
porque todos a sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terras e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

Nem achada nem não vista
nem descrita nem viagem,
há aventuras de partidas
porém nunca acontecidas.

Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indicíos de canibais,
sinais de sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido.

Rosa dos ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
dosmingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?


XVIII

Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sobre as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como ortigas

sugar vieram o esterco fugante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; neste instante,

os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depoisa as beijam como beijam lírios.

(Jorge de Lima - Invenção de Orfeu)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poesia do dia

UNIDADE

Minh’alma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe.

Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com suas palmas os seus mormaços o seus ventos de sôfrega
[mocidade
Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície
O instinto de penetração já despertado
Era como uma seta de fogo
Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.

(Manuel Bandeira)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Poema da lucidez

8

quadros há que a respiração suspendem
certa mão de tinta, certa carícia:
revelada aquela nem a ausência
modelam antes o que antes havia

e não há no quadro. o vento que secara
a pele exausta o cós aberto a calça
no chão largada e essa voz avara
que se não se ouve no quadro alça

seu traço (antes taça). tal silêncio, hèlas,
manuseia-me o antinome e mudo
o quadro vaga torto para sempre

no meu mundo. com vinho, pois, celebre
a taça derramada o rosto o fruto
destas mulheres nuas soltas nas telas.


(oswaldo martins – lucidez do oco)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Ninguém compreenderia um samba naquela hora

1. Tenho andado afastado dos blogs e da escrita. Achei que era só um recesso, ou que estava ocupado com o nascimento de minha filha (ou melhor, com o mundo em que a Clarice acaba de nascer) mas acho que não é nada disso.

Um pouco no embalo do Paulinho, que está no post logo abaixo, hoje eu vim, minha nega.

O fato é que tenho preferido assistir à novela das 8 a escrever poesia. E o que me trouxe aqui? justamente um episódio recente que me deixou muitíssimo abalado.

Recorto da minha revista de fofocas preferida:
Violência
Ator global Jackson Antunes é agredido e acaba no hospital
Publicado em 22.07.2008, às 12h24
O ditado "A vida imita a arte" virou realidade para o ator Jackson Antunes, que interpreta um homem que agride a esposa na novela "A favorita": confudido com seu personagem, Antunes foi agredido na rua, teve sangramento interno e ficou internado durante três dias.
Vítima de trombose na perna esquerda, o ator usava muletas e chegou a cair durante a briga. "Parece uma coisa medieval o que me aconteceu, mas acho que quando a novela provoca esse tipo de reação é porque está dando o recado e denunciando esse tipo de realidade", afirmou.
Fiz um samba sincopado, pra zombar do seu azar.

2. O Paulinho é mesmo um artista. E seu samba é POESIA. Copio uma fala do Elifas Andreato, que define define bem essa coisa - artista. Li no encarte do CD da Teresa Cristina:
Paulo Cesar Batista de Oliveira é um ser humano, um artista cuja vida e obra renovam cotidianamente o significado da palavra humanidade. Sem ele, o mundo seria ainda pior.
A razão poque mando um sorriso e não corro.

3. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. A escola.

Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Um belo samba de Wilson Batista

Meu mundo é hoje
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim

Meu mundo é hoje
Não existe amanhã pra mim
Eu sou assim
Assim morrerei um dia
Não levarei arrependimentos
Nem o peso da hipocrisia

Tenho pena daqueles
Que se agacham até o chão
Enganando a si mesmos
por dinheiro ou posição
Eu nunca tomei parte
Desse enorme batalhão
Pois sei que além de flores
Nada mais vai no caixão

(Wilson Batista)

Há uma bela gravação do Paulinho da Viola.