Mundo moinho
Estou sempre olhando pra todos os lados, como se algo estivesse para acontecer. A sensação de que corro perigo vem a todo instante. O mundo é chão de armadilhas. Vou chegando, arisco. Sempre olhando para os outros a ver se algum bando está por perto. Tenho muita fome nessa hora. Estou sempre com fome. A fome guia minha caminhada. E me alimento rápido porque a armadilha pode estar à minha volta. Pode ser o próprio alimento. Talvez já esteja apanhado nela sem saber. A velocidade que me fez ir nessa direção encontra-se com a minha aflição. Não sei o que fazer. Achei o que saciava, mas tenho aflição. Minha cabeça roda, procurando motivos do medo. O meu olho também roda. E se desloca como se tivesse eixo próprio alhures. Como saber se já não estou na armadilha? Tudo talvez esteja perdido. Minha cabeça roda tanto e olha tudo tão rápido que só posso estar preso. Tento me acalmar. Meus óculos funcionam como câmeras que vasculham cada recanto do shopping.
Acabo de me perder de minha mulher, estou com um filho me esperando com a sessão começada do Ensaio sobre a cegueira, eu tenho a chave da casa e ela não. Em vez de entrar na sessão percorro andares várias vezes e nos mesmos lugares. E não consigo controlar a aflição. Por que fiquei com a chave se ia ao cinema? E continuo a rodar, o corpo como câmera. Num desses instantes me vem aquele menino que acordou na noite e não tinha ninguém na casa. Houve um lapso aí, esse menino cerca de uma hora talvez esteja muitas casas abaixo na varanda de vizinhos, ouvindo uma voz que vem de cima, de um senhor que diz que o seu pai já vem. Aquela voz não dizia nada, os grandes são engraçados, acham que tudo passa. Mas alguma coisa estranha se passou ali, talvez o primeiro abismo. Continua a câmera olhando ao redor. Não estou lá nem procurando mãe. A angústia é a mesma. O filme já está em meio. A cegueira é aqui. Tateio e sufoco entre a multidão que pivoteia no cilindro, na confusão de línguas. Nenhuma lucidez, nenhuma calma, à espera da divina imagem surgir nos degraus de uma escada rolante.
Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
26 de janeiro
Estou sempre olhando pra todos os lados, como se algo estivesse para acontecer. A sensação de que corro perigo vem a todo instante. O mundo é chão de armadilhas. Vou chegando, arisco. Sempre olhando para os outros a ver se algum bando está por perto. Tenho muita fome nessa hora. Estou sempre com fome. A fome guia minha caminhada. E me alimento rápido porque a armadilha pode estar à minha volta. Pode ser o próprio alimento. Talvez já esteja apanhado nela sem saber. A velocidade que me fez ir nessa direção encontra-se com a minha aflição. Não sei o que fazer. Achei o que saciava, mas tenho aflição. Minha cabeça roda, procurando motivos do medo. O meu olho também roda. E se desloca como se tivesse eixo próprio alhures. Como saber se já não estou na armadilha? Tudo talvez esteja perdido. Minha cabeça roda tanto e olha tudo tão rápido que só posso estar preso. Tento me acalmar. Meus óculos funcionam como câmeras que vasculham cada recanto do shopping.
Acabo de me perder de minha mulher, estou com um filho me esperando com a sessão começada do Ensaio sobre a cegueira, eu tenho a chave da casa e ela não. Em vez de entrar na sessão percorro andares várias vezes e nos mesmos lugares. E não consigo controlar a aflição. Por que fiquei com a chave se ia ao cinema? E continuo a rodar, o corpo como câmera. Num desses instantes me vem aquele menino que acordou na noite e não tinha ninguém na casa. Houve um lapso aí, esse menino cerca de uma hora talvez esteja muitas casas abaixo na varanda de vizinhos, ouvindo uma voz que vem de cima, de um senhor que diz que o seu pai já vem. Aquela voz não dizia nada, os grandes são engraçados, acham que tudo passa. Mas alguma coisa estranha se passou ali, talvez o primeiro abismo. Continua a câmera olhando ao redor. Não estou lá nem procurando mãe. A angústia é a mesma. O filme já está em meio. A cegueira é aqui. Tateio e sufoco entre a multidão que pivoteia no cilindro, na confusão de línguas. Nenhuma lucidez, nenhuma calma, à espera da divina imagem surgir nos degraus de uma escada rolante.
Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
26 de janeiro
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