Muitos, nestes últimos anos, leitora querida, são os que vêm perguntando indagando sobre Capitu. Apenas cócegas no nariz me fazem algumas das questões propostas, outras me dão o desejo de levantar-me e ir até quem as faz e dar-lhe uns poucos piparotes. Inútil tanto uma quanto outra, já que não posso me mover e levantar os braços, levá-los até à altura do rosto e deixar que os dedos me livrem deste pequeno incômodo, nem ir ao pé daqueles que me provocam para aprestar-lhes o piparote. Fico aqui, nesta quietude. Ao meu lado José Dias se permite uma involuntária careta, fruto talvez de suas andanças pela terra, a querer descobrir e fazer por mim aquilo que é minha vontade.
A narrativa de minha vida, que em determinado momento escrevi, fechou-se. No início, indagava-se a leitora se teria mesmo Capitu me enganado. Eu ria, defunto novo, de suas conjecturas. Libelos foram escritos contra e a favor das minhas atitudes, uns defendiam meu tirocínio, outros viam em mim um monstro, apenas. Eu ria, José Dias era quem ficava incomodado.
Este século, leitora, não é o meu. Andávamos pelas ruas, freqüentávamos os jardins da cidade – uma ou outra confeitaria. A bisbilhotice era feita em sussurros, os ovos vinham das granjas ao pé da cidade. Nada era relativo. Os homens vestiam seus ternos e trabalhavam ou ao menos fingiam. As ciências contavam verdades. Hoje nem nas ciências pode-se acreditar mais – os artefatos que servem para educar uma criança permitem que elas tracem sistemas complexos, que, embora não entendam, produzem maravilhas visuais.
Peço, leitora amiga, que tome um objeto de meu tempo. Observa este objeto. È simples. Basta girá-lo que maravilhas se produzem. É feito de um tubo cilíndrico, um jogo de espelhos, uns poucos vidros, papéis, coisas coloridas. Há nele um pequeno orifício no qual colocamos somente um dos olhos. As imagens mudam, se transformam a cada movimento que faz se neste tubo. Chamam-lhe calidoscópio ou caleidoscópio.
Se o não tomar nas mãos, esqueça de mim, de meu pequeno romance – não se perde grande cousa, ou apenas impute, caso o queira, a Capitu pena ou perdão. Caso queira compartir de meu pensamento, compare. Na ânsia de descobrirem a verdade dos fatos, muitos de vocês reinventaram minha vida. As mulheres disseram que eu previra os dias em que elas sairiam de suas casas e disputariam com os homens um lugar na hierarquia do trabalho. Outras viram em mim o advogado ansioso por livrar-me de minhas angústias e dúvidas. Até um, mais jocoso, quis acusar de prever, em sua época, as modificações dos costumes entre os homens e as mulheres.
Todos se enganam, não compreendem ainda o calidoscópio narrativo que inventei. Torça o romance, faça-o girar, leitora amável. Não faz o calidoscópio, com os mesmos vidros, com um único tubo e um jogo de espelhos imagens inumeráveis? Tome o partido ora de um, ora de outro. Inicie pela indignação de José Dias, vá compondo o que a partir dele forma a narrativa e terá uma imagem. Aceite o ponto de vista de Dona Glória e terá outro livro. Mude o tempo em que o lê, ainda outro livro cairá em sua mão. Não se esqueça das ciências, elas também compõem o mosaico de meu instrumento. Não se esqueça de observar Capitu.
Se não quiser receber o piparote que lhe reservo, leitora, já há um século, cuida de me esquecer Capitu. Seu século inventou um outro mundo – nele cabe pensar na relatividade das coisas – pois que até o universo tornou-se relativo – já não adianta pedirem os namorados que olhem as estrelas, elas já não estão mais ali.
Meu livro é somente a narração de uma vida, de um silêncio. Há diversas lacunas nele, para preenchê-las deve fazer girar o artefato e não desprezar nenhum dos desenhos que se formar – anota-os com cuidado e deixe essas anotações para aqueles que venham se ocupar desta tarefa inútil de apreender a totalidade da vida.
(oswaldo martins)A narrativa de minha vida, que em determinado momento escrevi, fechou-se. No início, indagava-se a leitora se teria mesmo Capitu me enganado. Eu ria, defunto novo, de suas conjecturas. Libelos foram escritos contra e a favor das minhas atitudes, uns defendiam meu tirocínio, outros viam em mim um monstro, apenas. Eu ria, José Dias era quem ficava incomodado.
Este século, leitora, não é o meu. Andávamos pelas ruas, freqüentávamos os jardins da cidade – uma ou outra confeitaria. A bisbilhotice era feita em sussurros, os ovos vinham das granjas ao pé da cidade. Nada era relativo. Os homens vestiam seus ternos e trabalhavam ou ao menos fingiam. As ciências contavam verdades. Hoje nem nas ciências pode-se acreditar mais – os artefatos que servem para educar uma criança permitem que elas tracem sistemas complexos, que, embora não entendam, produzem maravilhas visuais.
Peço, leitora amiga, que tome um objeto de meu tempo. Observa este objeto. È simples. Basta girá-lo que maravilhas se produzem. É feito de um tubo cilíndrico, um jogo de espelhos, uns poucos vidros, papéis, coisas coloridas. Há nele um pequeno orifício no qual colocamos somente um dos olhos. As imagens mudam, se transformam a cada movimento que faz se neste tubo. Chamam-lhe calidoscópio ou caleidoscópio.
Se o não tomar nas mãos, esqueça de mim, de meu pequeno romance – não se perde grande cousa, ou apenas impute, caso o queira, a Capitu pena ou perdão. Caso queira compartir de meu pensamento, compare. Na ânsia de descobrirem a verdade dos fatos, muitos de vocês reinventaram minha vida. As mulheres disseram que eu previra os dias em que elas sairiam de suas casas e disputariam com os homens um lugar na hierarquia do trabalho. Outras viram em mim o advogado ansioso por livrar-me de minhas angústias e dúvidas. Até um, mais jocoso, quis acusar de prever, em sua época, as modificações dos costumes entre os homens e as mulheres.
Todos se enganam, não compreendem ainda o calidoscópio narrativo que inventei. Torça o romance, faça-o girar, leitora amável. Não faz o calidoscópio, com os mesmos vidros, com um único tubo e um jogo de espelhos imagens inumeráveis? Tome o partido ora de um, ora de outro. Inicie pela indignação de José Dias, vá compondo o que a partir dele forma a narrativa e terá uma imagem. Aceite o ponto de vista de Dona Glória e terá outro livro. Mude o tempo em que o lê, ainda outro livro cairá em sua mão. Não se esqueça das ciências, elas também compõem o mosaico de meu instrumento. Não se esqueça de observar Capitu.
Se não quiser receber o piparote que lhe reservo, leitora, já há um século, cuida de me esquecer Capitu. Seu século inventou um outro mundo – nele cabe pensar na relatividade das coisas – pois que até o universo tornou-se relativo – já não adianta pedirem os namorados que olhem as estrelas, elas já não estão mais ali.
Meu livro é somente a narração de uma vida, de um silêncio. Há diversas lacunas nele, para preenchê-las deve fazer girar o artefato e não desprezar nenhum dos desenhos que se formar – anota-os com cuidado e deixe essas anotações para aqueles que venham se ocupar desta tarefa inútil de apreender a totalidade da vida.
Bela e eficiente lição, de um professor que é poeta - e que deixa cavalgarem em si personagens.
ResponderExcluirAi, senti um piparote! cl
Oswaldo,
ResponderExcluirO texto é emocionante, vejo que o século 20 não fez o seu Machado perder aquele humor que, disfarçado em amargura, dá esse piparote no leitor, até quando o anuncia explícito, sem nem a preterição.
Esse texto vai para o Projeto do TextoTerritório, ok?
Um abraço
Alexandre, claro que, sim. Fico feliz.
ResponderExcluirAbraço,
Oswaldo