sexta-feira, 28 de março de 2008

Chave

Estávamos fechados no quarto há três meses. Saíamos, às vezes, apenas para, aqui e ali, fazermos uma rápida refeição. Voltávamos correndo ao nosso jogo, ao nosso quarto. R. e eu decidíramos não mais pertencer a este mundo, julgado por nós absurdo e mesquinho. Poucas palavras trocaríamos com ele, conosco mesmos - poucas palavras, era a regra; apenas as essenciais. A vida se assemelharia a uma outra realidade - sem causas, sem efeitos ou conseqüências - nenhum apelo existiria.

Dávamos cambalhotas e anotávamos os ruídos que as costas, ao baterem no chão, faziam. Depois líamos em voz alta os ruídos, e cada um dava a eles seu sentido próprio - essencial. Não era possível traduzi-los em outra língua que não esta, feita de espantos, descobertas e engasgos, cada vez mais excitantes e velozes. Batíamos palmas que, então, eram anotadas. Nossas interjeições!

Chegáramos mesmo a buscar a expressão minuciosa de cada ruído produzido e, como a caneta sobre o papel também fazia um leve e imperceptível ruído - jum, um, um -, procurávamos anotá-lo. Dependendo do traço, esse ruído eram vários - intermináveis. Sempre, sempre uma nova criação, um novo modo de encarar a vida - tudo era, então, a vida que se produzia a si mesma - intensa e inquieta.

Um dia, R. olhou-me; eu olhei R. - nos olhos - rimos muito e não anotamos mais nada. Saímos do quarto, trancamos a porta, jogamos - nosso último jogo - as chaves fora. Porque descobríramos não haver essência, mas a vida, a vida que não podíamos dominar. Por isso propusemos que hoje seríamos um; amanhã, outro e depois e depois, outros mais.

(Oswaldo Martins)

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