Prezado Aldir Blanc,
Escrevemos-lhe essa carta pública como manifestação do mais profundo respeito e da maior admiração que nutrimos por sua criação. Uma admiração que nasceu desde a primeira vez que ouvimos a sua letra de “O bêbado e a equilibrista”, na interpretação da saudosa e insubstituível voz. Mas por esse motivo já podíamos ter nos manifestado, publicamente, há muitos anos. Se só o fazemos hoje, é por um torpe motivo que mobiliza e inquieta nosso espírito cidadão.
Escrevemos para esclarecer que hoje, 06 de dezembro de 2017, a equilibrista caiu da corda bamba. Quem somos nós para trazer a público a obviedade dos tempos tétricos em que vivemos? Quem somos nós para alertar-lhe sobre a sistemática usurpação de direitos a que estamos sendo submetidos? Como poderá essa canhestra missiva tocar o ourives do palavreado? Falar de usurpação de direitos com Aldir Blanc é chover no molhado. Antes dos direitos trabalhistas, já lá se tinham ido os direitos autorais no Brasil, não é mesmo?
Mas é que dizem por aí as más línguas, paranoicas da conspiração, que em breve perderemos o direito de ir e vir, de expressar o pensamento e de cantar. Dizem que os chupões das manchas torturadas estão voltando flores de carne viva. Imagino até que esse papo deve te encher o saco, pois pra quem sabe que, há uma porrada de tempo, as rubras cascatas jorram das costas dos santos, nada de novo no front. Chutes na santinha e atentados terroristas nos terreiros são a repetição da história e das mentalidades que tuas canções deixam bem mapeadas.
Não somos dessas Marias vão com as outras, fica frio. Sem lenha na fogueira. Mas queríamos te assegurar que nunca é na pele que a tortura começa. É na língua. No apagamento dos sentidos e na transformação dos significados também se embarca na judiaria. Fiquemos atentos, que logo logo “Pra não dizer que não falei das flores” vira jingle de campanha de alistamento militar (lengalenga do padre Zezinho já virou faz tempo). Mas hoje quem caiu foi a nossa equilibrista. Dizemos nossa, porque gostaríamos mesmo de acreditar que tuas letras – essa em especial – fossem patrimônio público do povo brasileiro. E se fossem domínio público, que a canalha as usasse para nomear qualquer tipo de sordidez, ou mesmo que polícia federal designasse com um brinco de esmeralda verbal da tua lavra uma operação que se esmera em apagar a memória da anistia política.
E é este o motivo dessa carta. Ela, a equilibrista, não é nossa. Nem acreditamos – faça-nos crer que estamos certos – que o senhor tenha cedido os direitos para o uso da letra. Trata-se de sua propriedade. E essa é uma palavra que a lei entende muito bem no jogo neoliberal da usura e da escravização de corpos e mentes. Exija seus direitos e quem sabe isso nos facilitará lutar pelos nossos.
Desculpe-nos apenas por um motivo. Não estamos bêbados o suficiente para fazer irreverências para essa nova noite. Se é na língua que começa a tortura, nossa carne já dói. Mas se você enfrenta essa parada e recoloca a mocinha na corda bamba, prometemos, tomaremos um porre e continuaremos o show.
Alexandre Faria e Oswaldo Martins
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