sábado, 29 de março de 2008

a foto de um rei vadio

V. S. Maipaul

Meu pai estava doente. Mas ainda não à beira da morte. Eu costumava visitá-lo nos finais de semana. Sempre me aborrecia ver que a casa - mais um chalé do que uma casa na realidade - estava em péssimo estado de conservação, cheia de poeira e fuligem, as paredes precisando de pintura nova; e isso também aborrecia meu pai. Ele pensava que aquilo era muito pouco para uma vida inteira de trabalho e atribulações.
Eu sentia que meu pai tinha uma visão demasiado romântica de si mesmo. Especialmente quando se punha a falar de sua longa vida de trabalho. Há trabalhos e trabalhos. Criar um jardim, uma empresa, é um tipo de trabalho. É uma aposta em si mesmo . Num trabalho desse tipo, pode-se dizer que a recompensa é o próprio trabalho. Executar tarefas repetitivas na propriedade de alguém ou numa grande empresa é uma outra coisa. Ocupações assim nada têm de sagradas, por mais que, citando a Bíblia, as pessoas digam o contrário. Meu pai descobriu isso na meia idade, quando já era tarde para mudar. De modo que a primeira metade de sua vida foi dominada pelo orgulho, a idéia exagerada que ele fazia de sua empresa e de quem ele próprio era, ao passo que a segunda foi consumida pelo fracasso, pela vergonha, pela raiva, pelo dissabor. A casa sintetizava isso. Tudo nela era metade uma cois, metade outra. Nem cabana nem casa, nem indigente nem próspera. Um lugar abandonado á propria sorte.
(V. S. Maipaul - Sementes mágicas)

sexta-feira, 28 de março de 2008

Chave

Estávamos fechados no quarto há três meses. Saíamos, às vezes, apenas para, aqui e ali, fazermos uma rápida refeição. Voltávamos correndo ao nosso jogo, ao nosso quarto. R. e eu decidíramos não mais pertencer a este mundo, julgado por nós absurdo e mesquinho. Poucas palavras trocaríamos com ele, conosco mesmos - poucas palavras, era a regra; apenas as essenciais. A vida se assemelharia a uma outra realidade - sem causas, sem efeitos ou conseqüências - nenhum apelo existiria.

Dávamos cambalhotas e anotávamos os ruídos que as costas, ao baterem no chão, faziam. Depois líamos em voz alta os ruídos, e cada um dava a eles seu sentido próprio - essencial. Não era possível traduzi-los em outra língua que não esta, feita de espantos, descobertas e engasgos, cada vez mais excitantes e velozes. Batíamos palmas que, então, eram anotadas. Nossas interjeições!

Chegáramos mesmo a buscar a expressão minuciosa de cada ruído produzido e, como a caneta sobre o papel também fazia um leve e imperceptível ruído - jum, um, um -, procurávamos anotá-lo. Dependendo do traço, esse ruído eram vários - intermináveis. Sempre, sempre uma nova criação, um novo modo de encarar a vida - tudo era, então, a vida que se produzia a si mesma - intensa e inquieta.

Um dia, R. olhou-me; eu olhei R. - nos olhos - rimos muito e não anotamos mais nada. Saímos do quarto, trancamos a porta, jogamos - nosso último jogo - as chaves fora. Porque descobríramos não haver essência, mas a vida, a vida que não podíamos dominar. Por isso propusemos que hoje seríamos um; amanhã, outro e depois e depois, outros mais.

(Oswaldo Martins)

quinta-feira, 27 de março de 2008

Bicicleta

Mariinha não era Maria, era Julieta. Bicicleta, o sobrenome não era Bicicleta, mas Maria. Do pouco que se sabia da vida pregressa de Mariinha, essa era, com certeza, a única. O nome Bicicleta, que lhe acompanhava o pré-nome e que fora mantido pela tradição da cidade, era grande mistério sobre o qual muito se discutia. Mariinha era baixinha; loura, conforme relatos mais antigos, que dela guardavam lembrança. Usava cabelo curto, parecia uma atriz desconchavada de cinema e representava um papel crucial em na vida de todos. Era um ícone das noites em que se percorria a cidade em busca do que ela – em época áurea – oferecia.

O nome Bicicleta era um mistério. Várias era as coisas imaginadas – das mais estapafúrdias até as mais concretas e possíveis. Alguém peremptoriamente afirmava – história que todos aceitavam e preferiam – que vinha o bicicleta do nome de uma cena acontecida na cidadezinha onde morava, às margens do Rio das Mortes. Mariinha era moça e teria sido ali que escolhera nome e profissão.

Sucedeu que, pedalando pelas margens do rio, crendo estar só, resolveu, como uma Godiva das Gerais, pedalar nua. Teria sido vista assim em sua bicicleta e fora seduzida por um que passou. Gostou e resolveu começar seu noviciado a partir de então. Depois fora para a zona, de uma cidade próxima – onde exerceu seu magistério, depois seu pontificado.

Nas Gerais, a fama antecede o conhecimento. Mariinha era, mesmo antes de estabelecer-se como a preferida, um fenômeno que todos desejavam, pois correra de boca em boca a frase que teria dito pela ocasião do famoso passeio de bicicleta.

__ Gentes, num é que há coisa mió que zanzá daqui prá li. A temp’ra de uma vara tem mais valia que as bicicreta.
(oswaldo martins)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Eugênio Hirsch

Eugênio Hirsch

Abro ao acaso a edição em que li pela primeira vez o Henry Miller. Sexus. Sobre um fundo branco, o retrato do autor cercado por mulheres de seios, pernas e bundas de fora. As letras que escrevem o nome de Miller, o título e subtítulos, dispersos, como se construíssem sobre o caos. Com prazer e saudade, releio o nome do autor da capa. Eugênio.

Eugênio Hirsch.

Tenho o prazer de ter na capa de um de meus livros – o minimalhas do alheio (por favor, revisor, com minúsculas) – o desenho de uma mulata, que me presenteou. No alto, à esquerda, as palavras que o descrevem e o nomeiam “Aurora de zapato alto e xibiu de fora”. Tão Eugênio, o desenho me permite diariamente o deleite de sua lembrança, de sua amizade e carinho.

Eugênio, nascido na Áustria, emigrado para a Argentina, veio um dia para o Brasil e daqui não mais saiu; fascinado, sobretudo pelas nossas belas mulatas. Dizia ele que as mulatas eram sua fascinação mais antiga, desde que, criança, em seu país natal, e pela primeira vez, viu seu corpo nu, cheio de encantos e magia. Ao desembarcar na Praça Mauá, dirigiu-se para um dos cabarés que ali davam acolhida aos estrangeiros. Casou-se com primeira que viu.

Quando o conheci, morava no mesmo prédio em que eu moro. Posso precisar a data, pois sua vinda para a Pires de Almeida 76 se deu quando meu segundo filho nasceu, em 1988. Convivi com Eugênio de 89 até sua morte em 2001. Foram 12 anos.

Eugênio andou pelo mundo. Fez trabalhos na Espanha, Inglaterra, EUA e alhures. No Brasil foi diretor de arte da Civilização Brasileira e da José Olympio, inovando a concepção da capa dos livros. Muitas são as histórias que contava, muitos os trabalhos que fazia. Lembro-me de dois especialmente interessantes feitos para a revista Playboy americana, que me mostrou. O das Bundas famosas e o do Jardim zoológico, que consistiam em transformar o corpo feminino em imagens reconhecidas da política internacional e em animais. Algo como se a bunda nomeasse o bunda retratado. Assim, o bunda Hitler, o bunda Stalin, o bunda Roosevelt, o bunda Churchil. Hilário.

Eugênio tinha o dom de um anarquismo profícuo e destruidor. Como quem brinca, teceu comportamentos, tomou decisões inusitadas. Dele, além da falta e do anarquismo comportamental, que admiro em qualquer pessoa, ficaram alguns desenhos e colagens. Dentre os trabalhos com que me presenteou está o projeto feito para o Pif-paf, intitulado Doze maneiras de entrar e sair da chavasca da dona. Uma festa para o espírito.

domingo, 23 de março de 2008

Mário Faustino

Mário Faustino- o quarto poema dos sete sonetos de amor e morte:


AGONISTES

Dormia um redentor no sol que ardia
O louro e a cera, dons hipotecados
Da carne postulada pelo dia;
Dormia um redentor nos incensados
Lençóis que a lua póstuma cobria
De mirra e de açafrões embalsamados;
Dormia um redentor no navegante
Das mortalhas de escuma que roía
O verme de seus sonhos abafados;
E até no atol do sexo triunfante
Do mar e da salsugem da agonia
Dormia um redentor: e era bastante
Para acordá-lo o verso que bramia
No cérebro do atleta e lá morria.

(Mário Faustino)

Sophia de Mello Breuyner Andresen

Senhor


Sempre te adiei
Embora sempre soubesse que me vias
Quis ver o mundo em si e não em ti
E embora nunca te negasse te apartei


1987
Sophia de Mello Breyner Andresen
Acaia

Aqui despi meu vestido de exílio
E sacudi de meus passos a poeira do desencontro



Sophia de Mello Breyner Andresen
(Rio de Janeiro, Cláudio Correia Leitão)

sexta-feira, 21 de março de 2008

Lima Barreto

Enviou-me o Elesbão.

Embarco em Cascadura. É de manhã. O bonde se enche de moças de todas as cores com os vestuários de todas as cores.

(Lima Barreto)

minimalhas do alheio

7

nelson/segall


o olho
o branco do olho

de sinhá vitória

é o de um rapsodo
nordestino

ou o de um quadro
que erra.

(oswaldo martins, minimalhas do alheio)

Mulheres errantes II Segall

No porto

Jovem, de vinte e quatro anos, num barco de Tinos
chegou Emes a este porto sírio,
com a intenção de aprender o ofício de perfumista.
Contudo adoeceu na travessia. E, apenas
desembarcou, faleceu. Seu sepultamento, paupérrimo,
realizou-se aqui. Poucas horas antes de morrer, algo
disse em voz baixa a respeito de uma "casa" e de "pais muito velhos".
Mas quem eram eles ninguém sabia,
nem qual era sua pátria no extenso mundo helênico.
Melhor. Porque assim, enquanto
jaz morto neste porto,
seus pais sempre vão esperá-lo, vivo.

(K. Kaváfis. Trad. Ísis Borges da Fonseca)

quinta-feira, 20 de março de 2008

desestudos

3
ó surgida

ítaca sobra
sombras

sobre o marulho
das voragens

Homero

Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada
se encontravam em casa.salvos da guerra e do mar.
Só àquele, que tanto desejava regressar à mulher,
Calipso, ninfa divina entre as deusas, retinha
em côncavas grutas, ansiosa que se tornasse seu marido.
Mas quando chegou o ano (depois de passados muitos outros)
no qual decretaram os deuses que ele a Ítaca regressasse,
nem aí, mesmo entre o seu povo, afastou as provações.
E todos os deuses se compadecem deles,
todos menos Posídon: e até que sua terra alcançasse,
o deus não domou a ira contra o divino Ulisses.

(Homero - Odisséia - Canto I - segunda estrofe. Trad. de Frederico Lourenço)

terça-feira, 18 de março de 2008

Homero

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Tróia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a ele, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido á sua loucura,
insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hiperíon,
o Sol – e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deus, filha de Zeus.

(Homero – Odisséia Canto I – primeira estrofe – Trad. de Frederico Lourenço)

sábado, 15 de março de 2008

Balada de Pedro Nava 1º trecho

(O anjo e o túmulo)
I
Meu amigo Pedro Nava
Em que navio embarcou:
A bordo do Westphalia
Ou a bordo do Lidador?

Em que antárticas espumas
Navega o navegador
Em que brahmas, em que brumas
Pedro Nava se afogou?

Juro que estava comigo
Há coisa de não faz muito
Enchendo bem a caveira
Ao seu eterno defunto.

Ou não era Pedro Nava
Quem me falava aqui junto
Não era o Nava de fato
Nem era o Nava defunto?...

Se o tivesse aqui comigo
Tudo se solucionava
Diria ao garçom: Escanção!
Uma pedra a Pedro Nava!

Uma pedra a Pedro Nava
Nessa pedra uma inscrição:
"- deste que muito te amava
teu amigo, teu irmão..."

Mas oh, não! que ele não morra
Sem escutar meu segredo
Estou nas garras da Cachorra
Vou ficar louco de medo

Preciso muito falar-lhe
Antes que chegue o amanhã:
Pedro Nava, meu amigo
DESCEU O LEVIATÃ!

(Vinícius de Moraes)

Pedro Nava

Deus Nosso Senhor depois de recortar as ilhas gregas, de fazer Siena e Florença, veio, em pessoa, criar um dos lugares mais lindos do mundo nessa entrada atlântica que é a baia de Guanabara. Pôs aqui o mais fabuloso perfil de montanhas que se possa imaginar. Deu-nos de presente o Pão de Açúcar, o Corcovado, os Dois Irmãos, a Pedras da Gávea, o Pico da Tijuca. Como rebanho menor ofereceu-nos, de quebra, colinas cheias de graça: São Diogo, favela, Saúde, Providência, senado, Conceição, São Bento, Castelo, Santo Antônio, Glória, Viúva, Nova Cintra, São João, Dona Marta, Cabritos... Soltou destas encostas seus riachos de ouro e prata serpeando entre avencas, samambaias e tinhorões: Carioca, Caboclas, Bispo, Rio Comprido, Maracanã.... Os portugueses entenderam como ninguém a paisagem e construíram à margem de seus córregos, ao longo de suas praias, na encosta de seus morros e dentro de sua floresta uma cidade harmoniosa, amena, doce e lógica como Lisboa. Veio depois o progresso. Tinha de vir, meu Deus! A cidade tinha de crescer e mudar no seu aspecto urbano. A república art-nouveau fez a cidade francesa de Passos, da Avenida Mem de Sá, do Cais do Porto. Aceitável. Seria fatal a cidade americana que vemos construir, Mas por que não construí-la com bom gosto e edifica-la só a custa de burrice? Por quê? Destruir nossas mais lindas igrejas e passar por cima delas o monstro da Presidente Vargas, cujo traçado funcional era a linha Marechal Floriano – Praça da República – Mangue. Pra quê? Derrubar o morro do Senado, o Castelo, o Santo Antônio. Cada um sabe que estas esplanadas se conquistam para explorações imobiliárias. Quem paga o pato é a baía, cujas angras, reentrâncias, singras e varadouros vão sendo retificadas aterradas, entupidas pela boçalidade que empurra o Rio para Niterói e Niterói para o Rio. Dentro de cinqüenta anos, se tanto, nossa baía será uma lembrança. È preciso retificar os rios. Certo. Mas por quê? Tapa-los como a esgotos e com isso enlouquecer as águas das enchentes. E as igrejas? São Francisco de Paula, Carmo, São Francisco Xavier, Santa Luzia, São José, Senhor do Bonfim, Candelária, Lapa dos Carmelitas são templos luso-brasileiros de torres de azulejos brancos, amarelos e azuis espelhando ao sol. Pois estão sendo capeados de cimento como já aconteceu a São José e com Senhor do Bonfim. Vocês lembram? Da Casa do Trem e do Paço da Cidade antes das restaurações-depredação de Gustavo Barroso e de Washington Luís. E o diabo é que ninguém pode fazer nada... Ah, Senhor, senhor, meu reino por uma forca!

(Pedro Nava – Balão Cativo)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Dora Ribeiro Poesia

para as gaivotas de ruy belo

parca serenidade I

nunca gostei de gaivotas
não tenho mar suficiente
nem sequer águas
menos correntes

bicho que
pisa ondas e pedras
com a mesma certeza
não me parece fiável

luiza disse que
o poeta é um animal longo
desde a infância
mas isso incluirá
as gaivotas?



parca serenidade II

a infância é o nosso mais fiel e longo animal
(Dora Ribeiro in Teoria do Jardim)

bidê

permite a tuas pernas o invólucro
das paixões os tapetes os guizos
na água morna roçam-se as coxas
ó desmesurado, concebe nos teus
cômodos nossa acre licenciosidade

(oswaldo martins)

cena III

dentro não olho mais e ainda o olha
a imagem negadora trago fumo e coxa
a moldura dos quartos decaídas mãos

e valsas

cena II

o detalhe capta a imagem e te
integra toma teus olhos olha
na perspectiva mínima

(oswaldo martins)

terça-feira, 11 de março de 2008

figura deitada



em pancetti
o mar

aquarela
de canoas rotas

nesga de mar
e areia

uma mulher -
figura deitada -

enquanto o olhar
desaparece

sem horizontes

(oswaldo Martins)

GALWAY KINNELL

Everyone Was In Love
Galway Kinnell


One day, when they were little, Maud and Fergus
appeared in the doorway, naked and mirthful,
with a dozen long garter snakes draped over
each of them like brand-new clothes.
Snake tails dangled down their backs,
and snake foreparts in various lengths
fell over their fronts, heads raised
and swaying, alert as cobras. They writhed their dry skins
upon each other, as snakes like doing
in lovemaking, with the added novelty
of caressing soft, smooth, moist human skin.
Maud and Fergus were deliciously pleased with themselves.
The snakes seemed to be tickled too.
We were enchanted. Everyone was in love.
Then Maud drew down off Fergus’s shoulder,
as off a tie rack, a peculiarly
lumpy snake and told me to look inside.
Inside that double-hinged jaw, a frog’s green
webbed hind feet were being drawn,
like a diver’s, very slowly as if into deepest waters.
Perhaps thinking I might be considering rescue,
Maud said, “Don’t. Frog is already elsewhere.”


Segue outro de que gosto muito.
Galway Kinnel é americano e seu Selected Poems ganhou o Pulitzer em 1982.

(Lúcia Leão)

domingo, 9 de março de 2008

Do Lucidez do Oco

4

são nos quadros de chagal
aéreas viagens

pairam sobre nossas cabeças
pontes entre

o aqui
e o nada

(oswaldo martins)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Gritos e sussurros

Mariinha contava casos. Um dos mais célebres de sua longa experiência se deu ali pela década de 50, quando ela ainda se preparava para ser a grande dama que é. A graça e riso contido sempre faziam parte de suas histórias.

Havia na cidade um relojoeiro manco e solteiro, que freqüentava a Casa toda quinta-feira, ali pelas oito horas da noite, quando as últimas pessoas se recolhiam a seus lares ou buscavam o aconchego que lhes faltava. Tal senhor cumpria seu périplo, disfarçava, lentamente olhando para aqui e ali, parando nas janelas da rua principal para um dedo de prosa. Não percebia que este era o aviso. Quanto mais disfarçava, mais atiçava o riso quieto das senhoras e a assuada da garotada, que ia se ajuntando, formando um distanciado, mas atento grupo. Dirigia-se, após essas delongas, manquitolando à augusta casa de Mariinha.

Chegava, olhava mais uma vez em torno de si, e entrava. Aflito que estava, não percebia a meninada que esperava na esquina. Após alguns minutos, tomava uma senhora já meio entrada em anos, mas ainda em suas funções, e se dirigia ao quarto três, que ficava na lateral da construção. Uma janela fechada, com cortinas simples, uma cama e a bacia com água para os testes de saúde e lavagem posterior. O quarto era franciscano. Havia outros melhor decorados, mas o dele devia imitar os quartos conventuais, com o toque inusitado das bacias de bentas águas.

Tinha, dizia a Mariinha, uma peculiaridade. Gostava de gritar na hora do gozo. Gritava, mas não como se costuma gritar os sem-sentidos do prazer, quando se é tomado pela animalidade dos sons. Gritava, correto. Evocava Deus, Jesus, a santíssima trindade toda! Os “ai meu Deus”, “ai Jesus” e os “meu espírito santinho”. Era o sinal para a algazarra da meninada. Vaiavam, gritavam reproduziam o pobre senhor. Macaqueavam, anunciando a famosa trepada pela cidade afora.

Saía após se arrumar. Ganhava a rua em direção a sua moradia que ficava perto. O rapsodo de sua façanha corria a cidade, enquanto ele, recolhido, dormia o sono dos justos.

As versões eram tantas e cada vez mais escabrosas que os – digamos – responsáveis pelos usos e costumes da cidade buscaram intervir. Foram o Padre, o Doutor para persuadir e o Chefe de Polícia para ordenar. Mariinha os recebeu no seu salão. Conhecia de cada um deles os desejos, as manias. Ameaças de uns e de outros, acordaram. O infeliz do homem não seria mais recebido. Aquilo era um assunto privado e não um espetáculo público.

“Acordos são acordos devem ser cumpridos ou burlados”, dizia a sábia senhora. Na quinta seguinte, o relojoeiro apareceu e, ao invés de se deparar com Zínia, sua amante, deparou-se com Mariinha, que o chamou para uma conversa. Acordaram. Não mais a gritaria seria ouvida, sob pena de as portas se fecharem. Mariinha instruiu. Nada de dedo de prosa, sorrisos. Isso apenas criava expectativas e a cidade nada tinha a ver com isso.

Fora a garotada esperava ansiosa. Já se passara mais tempo que o costume e nada, nada, nada. A decepção aumentou quando o viram sair da Casa e dar-lhes uma sonora banana. Depois manquitolar até a porta de casa. Os episódios serenaram. A garotada o seguiu mais umas duas quintas e foram rareando, rareando até sumirem-se. Estava limpa a cidade. Mariinha, percebendo que sua Casa e reputação não mais corriam perigo chamou o relojoeiro:

__ Vossemecê, já pode gritar. Agaranto a paz. Mas, veja, nada de sorrisos, conversas. De hoje em diante só os gritos. E chamou:
__ Zínia! Zínia! O senhor Napoleão. Deixe-o gritar.

E Napoleão gritou feliz seus ais que ecoaram sobre a cidade. Ai, meu Deus, como é bom. Ai Jesus, que eu morro. Zínia, Zínia ai que vou gritar.


(oswaldo martins)

segunda-feira, 3 de março de 2008

2

para o elesbão

púchkin
e a morte

klebnikov
e a morte

maiakovski
e a morte

o cartaz

convoca
para o próximo plenilúnio

(oswaldo martins)

domingo, 2 de março de 2008

A QUADRILHA DE MATA-CAVALOS

Bentinho amava Capitu que amava Escobar
que amava Iaiá Garcia que amava Brás Cubas que amava Carolina
que não amava ninguém.
Bentinho foi pra o Engenho Novo, Capitu para a Suíça,
Escobar morreu afogado, Iaiá Garcia acabou na tv,
Brás Cubas foi o primeiro defunto-autor
e Carolina casou-se com Joaquim Maria Machado de Assis
que sempre quis entrar para a história.


(Cesar Cardoso)

Piparotes

Muitos, nestes últimos anos, leitora querida, são os que vêm perguntando indagando sobre Capitu. Apenas cócegas no nariz me fazem algumas das questões propostas, outras me dão o desejo de levantar-me e ir até quem as faz e dar-lhe uns poucos piparotes. Inútil tanto uma quanto outra, já que não posso me mover e levantar os braços, levá-los até à altura do rosto e deixar que os dedos me livrem deste pequeno incômodo, nem ir ao pé daqueles que me provocam para aprestar-lhes o piparote. Fico aqui, nesta quietude. Ao meu lado José Dias se permite uma involuntária careta, fruto talvez de suas andanças pela terra, a querer descobrir e fazer por mim aquilo que é minha vontade.

A narrativa de minha vida, que em determinado momento escrevi, fechou-se. No início, indagava-se a leitora se teria mesmo Capitu me enganado. Eu ria, defunto novo, de suas conjecturas. Libelos foram escritos contra e a favor das minhas atitudes, uns defendiam meu tirocínio, outros viam em mim um monstro, apenas. Eu ria, José Dias era quem ficava incomodado.

Este século, leitora, não é o meu. Andávamos pelas ruas, freqüentávamos os jardins da cidade – uma ou outra confeitaria. A bisbilhotice era feita em sussurros, os ovos vinham das granjas ao pé da cidade. Nada era relativo. Os homens vestiam seus ternos e trabalhavam ou ao menos fingiam. As ciências contavam verdades. Hoje nem nas ciências pode-se acreditar mais – os artefatos que servem para educar uma criança permitem que elas tracem sistemas complexos, que, embora não entendam, produzem maravilhas visuais.

Peço, leitora amiga, que tome um objeto de meu tempo. Observa este objeto. È simples. Basta girá-lo que maravilhas se produzem. É feito de um tubo cilíndrico, um jogo de espelhos, uns poucos vidros, papéis, coisas coloridas. Há nele um pequeno orifício no qual colocamos somente um dos olhos. As imagens mudam, se transformam a cada movimento que faz se neste tubo. Chamam-lhe calidoscópio ou caleidoscópio.

Se o não tomar nas mãos, esqueça de mim, de meu pequeno romance – não se perde grande cousa, ou apenas impute, caso o queira, a Capitu pena ou perdão. Caso queira compartir de meu pensamento, compare. Na ânsia de descobrirem a verdade dos fatos, muitos de vocês reinventaram minha vida. As mulheres disseram que eu previra os dias em que elas sairiam de suas casas e disputariam com os homens um lugar na hierarquia do trabalho. Outras viram em mim o advogado ansioso por livrar-me de minhas angústias e dúvidas. Até um, mais jocoso, quis acusar de prever, em sua época, as modificações dos costumes entre os homens e as mulheres.

Todos se enganam, não compreendem ainda o calidoscópio narrativo que inventei. Torça o romance, faça-o girar, leitora amável. Não faz o calidoscópio, com os mesmos vidros, com um único tubo e um jogo de espelhos imagens inumeráveis? Tome o partido ora de um, ora de outro. Inicie pela indignação de José Dias, vá compondo o que a partir dele forma a narrativa e terá uma imagem. Aceite o ponto de vista de Dona Glória e terá outro livro. Mude o tempo em que o lê, ainda outro livro cairá em sua mão. Não se esqueça das ciências, elas também compõem o mosaico de meu instrumento. Não se esqueça de observar Capitu.

Se não quiser receber o piparote que lhe reservo, leitora, já há um século, cuida de me esquecer Capitu. Seu século inventou um outro mundo – nele cabe pensar na relatividade das coisas – pois que até o universo tornou-se relativo – já não adianta pedirem os namorados que olhem as estrelas, elas já não estão mais ali.

Meu livro é somente a narração de uma vida, de um silêncio. Há diversas lacunas nele, para preenchê-las deve fazer girar o artefato e não desprezar nenhum dos desenhos que se formar – anota-os com cuidado e deixe essas anotações para aqueles que venham se ocupar desta tarefa inútil de apreender a totalidade da vida.
(oswaldo martins)