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terça-feira, 9 de abril de 2019

OS CINCO SENTIDOS


 Todos os dias o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.

Provérbio Bambara, Mali


Não há dia nenhum
em que os teus ouvidos
não oiçam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado escutar.

Não há dia nenhum
em que os teus olhos
não vejam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado observar.

Não há dia nenhum
em que o teu nariz
não inale

um odor que nunca antes
lhe foi dado a conhecer.

Não há dia nenhum
em que as tuas mãos
não tocam

em algo que nunca antes
lhes foi dado acariciar.

Não há dia nenhum
em que a tua boca
não prove

um sabor que nunca antes
lhe foi dado a degustar.

Não há dia nenhum
em que a vida,
o mundo,

os cinco sentidos
não te surpreendam.

− Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!


ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, ebriedades e ofícios. Lisboa: Maldoror Livros, 2018.

quarta-feira, 27 de março de 2019

FALAM, CONVERSAM O MUNDO



Para Arnaldo Santos e José Luandino Vieira,
Meninos Mais-Velhos dos Pássaros e dos Rios,
na celebração dos seus 80 anos de Vida e Poesia
         

Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.

E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.

                                                8.9.2012-29.7.2013

ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: Noite Vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

À FLOR DO FOGO


Bate o desejo suas lentas águas fundas,
e desata sobre nós: seus laços vivos – sôfregas: suas teias,
trançadas de relâmpagos. Digo:
aqui tens o colo que te dou.
E tu alongas o teu corpo em oferenda pelo chão:
o olhar pundonoroso que súbito trespassa,
implode – aferindo o rumor tocado
pelo ar − ao alto e em redor.
E eu revolvo os teus cabelos sentados no meu colo,
como quem perscruta um rio desde a infância,
e agora plantasse horizontes no teu rosto.

− Fecha os teus olhos, meu amor,
fecha os teus olhos, e abre − perfeita –
a lentíssima nudez – em flor
e fruto,
dançada.

As mãos devoram as mãos – devoram
suas marcas, seus ofícios: alimentam-se
do refazer esculpido e trabalhado dos corpos,
do estremecimento abrupto dos sentidos.
As línguas iluminam o sal dulcíssimo da pele:
como relâmpagos navegando
alucinados – procuram:
a secreta e nocturna flor do fogo.
E o ar perfuma-se de nós
como um bosque das suas árvores atentas.

E passam beijos que se demoram – sexo a sexo:
a respiração crepita num tremor jubiloso.
E todo o chão é lençol e mar − e dentro de ti,
eu te me dou inteiro
− oh meu amor
acabado de nascer!


                                                                            3.1-20.8.2013

(Zetho Cunha Gonçalves)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O TESTAMENTO DO MUNDO


Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces − a Terra toda
em alfabetos, assombros,
degraus.
E se abrem os tesouros:
vertigem: as vísceras
iluminadas.

Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o fogo,
o arco e a pedra, a seta envenenada
e o sangue − a sua carne
a árvore dos ventos.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz
deste dizer, a sua caligrafia −
do voo
dirá a flecha,
da viagem, os caminhos.

Porque daqui se levantará
Todo o horizonte, nasces − Terra
e nómada
               − Bosquímano.


2.


Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces: Terra
de ombro a dedos o instante,
esse rigor
de caligráficos fonemas − o nome.

Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o sangue,
o arco e a pedra,
a seta envenenada e o fogo.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz deste dizer,
a sua caligrafia − do voo
dirá a flecha,
da viagem, os caminhos.

Quem passa e se atreve, atravessando,
do ar − que dirá
teu sonho de em ti mesmo te inaugurares
a casa? Fogos violentam
a luminosidade noctívaga.


3.


Porque sou eu quem abre nas casas − árvores
os pés que sobem ao mel,
contorno dos ventos o pressentimento, as abelhas e o fumo     o capim
em volta: Oh Lua Nova, relampeja:
relampeja
no alto e negro da Terra,
traz-nos a água esculturada
nos ventos, a chuva − penteando
o verde exausto dos horizontes.

Porque sou eu quem leva ao ombro a aljava
e nos passos
os frutos e a carne adolescente do desejo − dos antepassados:

as quatro caudas do leopardo.


ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: A Palavra Exuberante. Lisboa: Parceria A.M. Pereira, 2004.