Mostrando postagens com marcador Poesia angolana. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Poesia angolana. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Dois poemas de Amosse Mucavele

Mafalala

 

Os sinos da munhuana estão velhos

Tocam nas enrugadas horas da esperança

Murcha, o cansaço das lembranças estampadas

nas casas de madeira e zinco

E no chão cimentado por pântanos

As rãs fazem ajuste de contas com o eco do abandono.

 


Subúrbio

 

Nas margens da cidade

as acácias são como almas adiadas a arder

na melancólica procura de um sonho

para enxugar os pés

e sei que nenhum peão restituirá os buracos

 

 

(Amosse Mucavele)

quarta-feira, 11 de março de 2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

Estrambólico


Isso de misturar
azeite, mel e mostarda
enfeite, pedra e palavra
Isso de escrever
Isso de fazer salada
Isso de banho e tosa
tudo invenção nossa
Um modo de fazer crível
a viagem no quarto
a bonança na tempestade
e a liberdade no vício

(Ana de Santana)

terça-feira, 9 de abril de 2019

OS CINCO SENTIDOS


 Todos os dias o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.

Provérbio Bambara, Mali


Não há dia nenhum
em que os teus ouvidos
não oiçam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado escutar.

Não há dia nenhum
em que os teus olhos
não vejam

aquilo que nunca antes
lhes foi dado observar.

Não há dia nenhum
em que o teu nariz
não inale

um odor que nunca antes
lhe foi dado a conhecer.

Não há dia nenhum
em que as tuas mãos
não tocam

em algo que nunca antes
lhes foi dado acariciar.

Não há dia nenhum
em que a tua boca
não prove

um sabor que nunca antes
lhe foi dado a degustar.

Não há dia nenhum
em que a vida,
o mundo,

os cinco sentidos
não te surpreendam.

− Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!


ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, ebriedades e ofícios. Lisboa: Maldoror Livros, 2018.

quarta-feira, 27 de março de 2019

FALAM, CONVERSAM O MUNDO



Para Arnaldo Santos e José Luandino Vieira,
Meninos Mais-Velhos dos Pássaros e dos Rios,
na celebração dos seus 80 anos de Vida e Poesia
         

Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.

E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.

                                                8.9.2012-29.7.2013

ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: Noite Vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O TESTAMENTO DO MUNDO


Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces − a Terra toda
em alfabetos, assombros,
degraus.
E se abrem os tesouros:
vertigem: as vísceras
iluminadas.

Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o fogo,
o arco e a pedra, a seta envenenada
e o sangue − a sua carne
a árvore dos ventos.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz
deste dizer, a sua caligrafia −
do voo
dirá a flecha,
da viagem, os caminhos.

Porque daqui se levantará
Todo o horizonte, nasces − Terra
e nómada
               − Bosquímano.


2.


Porque daqui se levantará
todo o horizonte, nasces: Terra
de ombro a dedos o instante,
esse rigor
de caligráficos fonemas − o nome.

Porque sou eu quem levanta das palavras o dizer
inscrevo nas fábulas o sangue,
o arco e a pedra,
a seta envenenada e o fogo.
E nenhuma voz (rio adormecendo
a margem frágil) repetirá a voz deste dizer,
a sua caligrafia − do voo
dirá a flecha,
da viagem, os caminhos.

Quem passa e se atreve, atravessando,
do ar − que dirá
teu sonho de em ti mesmo te inaugurares
a casa? Fogos violentam
a luminosidade noctívaga.


3.


Porque sou eu quem abre nas casas − árvores
os pés que sobem ao mel,
contorno dos ventos o pressentimento, as abelhas e o fumo     o capim
em volta: Oh Lua Nova, relampeja:
relampeja
no alto e negro da Terra,
traz-nos a água esculturada
nos ventos, a chuva − penteando
o verde exausto dos horizontes.

Porque sou eu quem leva ao ombro a aljava
e nos passos
os frutos e a carne adolescente do desejo − dos antepassados:

as quatro caudas do leopardo.


ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: A Palavra Exuberante. Lisboa: Parceria A.M. Pereira, 2004.