De
dentro da névoa que a claridade do sol matinal vinha desfazendo, começou a se
movimentar a procissão de Corpus Christi. Agora de repente a noite virou dia
luminoso e o sol brilhava intenso. Estranho, a procissão se parecia demais com
o aparatoso cortejo que o Capitão-General mandou preparar para a sua execução.
As mesmas gente e irmandades, só que no cortejo do enforcamento não havia santos
e andores, carros triunfais e figuras de Ventos e Planetas, a não ser os padres
e o cruciferário. Quando Mulungu apareceu rebrilhando negro como untado de
alcatrão, numa estátua de bronze, soberbo.
[...]
Agora seguia de longe a procissão, os olhos maravilhados. O cruciferário
erguendo alto o Cristo de prata, todos se ajoelhavam se benzendo à sua
passagem. Mulungu, o peito nu, brilhoso. O que estava fazendo ali o preto
Mulungu? Não, não era sonho, ele sabia apesar da nitidez diáfana, do brilho das
coisas. Procurava atribuir a presença de Mulungu à cabeça cansada, à sua
confusão de espírito. Também não era coisa que Isidoro tivesse contado, nada
ainda tinha acontecido: a sua prisão no Sabará, a sua fuga da cadeia, a
conversa
com o carcereiro, a despedida do pai. A sua morte em efígie ainda ia acontecer
na praça, veria pelo branco acastanhado dos olhos de Isidoro, raiados de
sangue.
E
tudo ele via nítido e preciso, como se as coisas existissem sozinhas e isoladas
e não misturadas e embaralhadas, cinzentas. Com um olho lúcido, agudo e imóvel
de relojoeiro montando e desmontando complicado engenho. Ele via de novo, revia
(Autran
Dourado – Os sinos da agonia)