sexta-feira, 11 de julho de 2014

Pilulinha 39

Mil rosas roubadas, de Silviano Santiago, editado pela Cia das Letras, constrói uma tensa narrativa dos anos vividos, que não se conforma com os elogios de praxe. Ensina o narrador que o fato vivencial só se completa quando dele se pode aproximar com vigor e coragem. A narrativa da amizade, do amor e da cumplicidade, nesta ordem, se desenvolve com a percepção crítica do próprio ato da escrita.

Ao negar-se o narrador às delícias da compaixão e da nomeada, faz com que ressurjam do fundo falso das narrativas transitivas o substrato da intransitividade com que se compõem narrativa e vida. Neste sentido, permite ao leitor o mergulho nas imposições do próprio fazer literário, permeando escolhas e metáforas que vão sendo, ao longo do desenvolvimento do livro, redefinidas para açambarcar todo o multifacetado de uma personalidade sempre em construção.

A própria tensão exposta entre o biógrafo e biografado, entre Zeca e o professor, entre a morte e a vida, constantemente troca de lado, num jogo cioso que pretende perseguir os caminhos e descaminhos da vida. Entretanto, engana-se o leitor, que assim segue a narrativa, quando pensa (ou é levado a pensar, machadianamente, diga-se de passagem) que a vida que se desenrola na ficção de Silviano Santiago signifique completude.

Se a vida que se retrata no livro teve seu fim demarcado pela morte, a vida, ela mesma, ressurge na sua completa incompletude, seja pelo fato de que Zeca a viveu desta maneira, seja pelo fato de o biógrafo, emaranhado na vida do amigo e cumplice, apreender também ele essa incompletude e dela participar antecipando a percepção crítica, que o leva a um pungente, e não romântico, mergulho em si mesmo e nas características que demarcaram suas escolhas mais pessoais.

Livro de coragem, Mil rosas roubadas, é leitura obrigatória para o leitor interessado nas perspectivas contemporâneas da percepção do outro e das novas formas que a liberdade vem assumindo, sem que, contudo, percam a mordacidade crítica e a capacidade de repensar a si mesmas a cada nova voz que surge no cenário da diversidade humana.


(oswaldo martins)

Nenhum comentário:

Postar um comentário