segunda-feira, 28 de julho de 2014

Pilulinha 40

Mar Negro, de Dau Bastos, editado pela Ponteio, em 2014, conta a história de Anderline, uma alagoana cuja feiura impede-a de ser aceita por seus pares. A narrativa de diretriz dupla – a Alagoas malfadada e as não menos malfadadas terras por onde passa até acostar-se nas margens do Mar Negro – vai aos poucos demarcando seus territórios.

Desde a apresentação do livro, percebe-se a dupla face do romance. A capa é ao mesmo tempo livro e tela. A narrativa a ser lida manterá a duplicidade do personagem que se conta com a consciência de ser e não ser, de quem se narra e é narrado. A duplicidade do texto cria uma possibilidade de lê-lo como um palimpsesto que hora deixa-se ficar no fundo da tela/livro, hora permite-se o desabrigo das afirmações certeiras sobre o mundo. Misto de personagem e persona, Anderline representa um continuo desdobrar-se. Da dobra original passa-se a outra e outra. Muitas são as anderlines quanto diversas são as entradas que o romance permite ao leitor.  

O ritmo da viagem de Anderline – que abandona a Alagoas das impossibilidades – vai se intensificando e tem como ponto central os mesmos motivos do abandono. Mudam os cenários, adquirem-se consciências que confirmam o motivo inicial do deslocamento da personagem. O deslocamento assume, então, sua face oculta e se transforma em permanência. O livro volta à tela e o périplo se mantém o mesmo e outro, sob o disfarce da burca que esconde e revela o jogo social a que se deve – ou devemos nós, leitores – seguir para que as expressões da vida se façam presentes e atuantes.

Os disfarces burca/corpo, tela/livro, deslocamento/permanência permitem que se percebam em Mar Negro os ecos de nosso ficcionista maior e mestre do disfarce social. Deve-se, pois, ler,  com os cuidados devidos, as ironias plantadas no romance pelo autor.


(oswaldo martins) 

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