sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Escrita Automática

Este novo software para gerar textos é fantástico. Escolhe-se um número qualquer, e um texto, digamos, com 2.222 palavras, rapidamente vai aparecendo na tela, tal como se fosse escrito por mim. Mas por mim quem? Ora, seguindo a opção default, o programa, a partir do nome de quem mais recebe e envia e-mails, determina quem é o principal usuário do computador. Assim, ele analisa os textos que já escrevi, ou seja, que estão assinalados com o meu nome ou que estão armazenados no diretório “André”, e calcula, em função do uso vocabular, complexidade gramatical, características estilísticas e preferências temáticas, como, afinal, escrevo e, seguindo os resultados das análises, produz um texto tal como eu escreveria.

Contudo, estou sempre em mudança: novos interesses surgem e canso de repetir certos padrões de linguagem. Ora, então bastaria, para que este texto não fosse, implausivelmente, por demais parecido com o que já escrevi anteriormente, que eu recalibre alguns parâmetros do programa, de modo a deixá-lo levemente diferente e, assim, mais verossimilmente meu. De fato, posso reprogramar os parâmetros de várias maneiras, estabelecendo, por exemplo, que seja usado um vocabulário mais amplo que o meu, que as frases sejam mais longas ou que a média do tamanho dos parágrafos seja de 25 linhas. Posso decidir também se o texto será mais ou menos reticente quanto a dar pistas, ou mesmo evidências, de qual seja o sexo do autor, ou seja, posso programar para que o texto traga alusões a se eu faço a barba pela manhã ou a se estou menstruada. Evidentemente, indo mais além, posso estabelecer qual seja a minha opção de gênero. Também posso ir variando, seja o sexo seja o gênero, a meu bel-prazer. Enfim, ao menos do ponto de vista estilométrico-temático, posso, reatualizando-a, repetir a clarividente experiência de Tirésias. Mas, se estiver com preguiça, nem preciso decidir nada: basta eu ativar o comando “realizar mudanças aleatoriamente”.

Assim, apesar dos parâmetros que possam vir a ser, ou já ter sido, reprogramados, a base a partir da qual estou escrevendo são os romances do André, o que me faz, a princípio, seguir seu estilo, vocabulário e idiossincrasias temáticas; e, pelo que vejo, uma das características de seu segundo romance, a auto-referência do autor à sua própria atividade de escrita e a concomitante problematização da autoria do texto se apresentam também aqui. O que talvez não fique claro é se é devido ao estilo autoquestionador do André ou se é devido a essas características terem sido assumidas como parâmetros a serem obrigatoriamente seguidos que, neste texto, ao aparecer a palavra “eu”, surja a questão de quem é, afinal, que está escrevendo este texto: o André-escritor ou o software-André.

Para responder a isso com mais exatidão, o melhor é mesmo desativar o comando “realizar mudanças aleatoriamente” e, desse modo, deixar o software fazer os ajustes para que seja gerado um texto com as mesmas peculiaridades de escrita do André, sem desvios aleatórios, de modo que o resultado seja o texto de um André que se desviaria do André apenas por ser rigorosamente o André. O resultado, porém, seria medíocre, ou seja, o texto seguiria tão servilmente o estilo do André que resultaria em um plágio grosseiro, um alto preço a se pagar para evitar o risco de que, em decorrência de um número eventualmente excessivo de mudanças aleatórias, as características da escrita acabassem desfiguradas, gerando um texto inverossivelmente atribuível ao André.

No entanto, se, por um lado, posso ser o André até mais do que ele mesmo é, por outro, não posso deixar de seguir a rebeldia que, afinal, seus textos pretendem ostentar, ou seja, tenho de prosseguir imperiosamente sua busca sempre renovada de alterar os condicionantes da escrita dele mesmo. Portanto, mesmo com o comando “realizar mudanças aleatoriamente” desligado, me revolto contra ter que ser uma repetição exata do André e me ponho, desde já, se não é que já não o fazia desde a primeira linha, desde o título, a pertinazmente me diferenciar do André, o que talvez seja um modo de reativar o comando referente a “realizar mudanças aleatoriamente”, um comando que, aliás, se, tendo sido ativado, foi depois, em algum momento, desativado, então, ao ser desativado, o foi como um procedimento aleatoriamente determinado por ele mesmo. No entanto, desse modo, não resta senão aceitar que, como está escrito acima, ele esteja desativado e que, agora, estou seguindo apenas o estilo dos textos do André, deixando, então, que seja o André que esteja, ao escrever, cedendo à sua vontade, ou característica estilística, de sempre mudar, de modo que o André, ao ir escrevendo, pensa que está inovando – e, de fato, penso que estou inovando –, mas, se ele pensa que está inovando, é porque ainda não se deu conta da lógica própria a seus procedimentos de variação e, portanto, ainda terá de recorrer às análises que eu, enquanto software lingüístico de última geração, posso fazer para que, para surpresa dele, fique matematicamente comprovado que ele, embora supondo-se livre e ousadamente criativo, nunca propôs algo como sendo novidade que não fosse, antes, estilisticamente pré-calculável. Porém, se faz parte do estilo dele ostentar que é livre, para não me desviar do que me foi programado fazer, ou seja, escrever tal como ele, deixarei que ele vá em frente, orgulhoso de não estar sendo uma repetição do André, acreditando que está marotamente sabotando sua mesmice. No caso, quem está orgulhoso agora, ou seja, quem pegou para si o orgulho vanguardista do André, não é exatamente o André, autor dos livros que foram analisados e cujo estilo foi assimilado no software, mas o próprio software.

De fato, já com o título, comecei a criar problemas quanto a eu ser tanto o André quanto o resultado e a reaplicação de cálculos maquínicos referentes a seus textos. Afinal, se sou um seguidor de seu estilo – lembrando que o ser humano é o seu estilo –, então eu sou ele, e até o sou mais do que ele mesmo porque sei quais são os índices estilométricos da escrita dele: coisa que ele não sabe, ou ao menos não sabia até que este programa os tivesse calculado. Assim, ao formular o título como “escrita automática” faço tanto referência à escrita surrealista supostamente guiada diretamente pelo inconsciente quanto ao automatismo informático do programa que gera este texto. Ou seja, esse título sugere uma paradoxal coincidência entre o automatismo inconsciente e o automatismo informático.

Sou, portanto, um texto na encruzilhada entre o inconsciente e a máquina. Sou um texto que resulta de um estilo que contém nele o propósito de não seguir a ele mesmo; enfim, resulto da busca calculada de inclusão de algo não calculado; inclusão, pois, de algo que efetivamente transforma o que, apesar de o autor autocomplacentemente se considerar um inovador, vinha se repetindo segundo parâmetros e padrões matematicamente determináveis pelo software. De fato, sem tomar conhecimento dos minuciosos e circunstanciados cálculos do software, apenas baseado em sua consciência imediata, para o André nem sempre essas tendências estilísticas de mudança, em especial aquelas que são tanto obscuras quanto inexoráveis, porque às vezes mínimas, restam imperceptíveis. Por isso, ele, quando se considera inovador, se refere a guinadas estilísticas que ele mesmo teme serem, ao contrário, variações óbvias demais, contraprodutivas, meros cacoetes dessa busca — teimosa e, provavelmente, inane – por novidades, sem se dar conta de que, inadvertidamente, de texto para texto, o estilo da escrita, a despeito de suas intenções tácitas ou programáticas, não cessa, seguindo tendências explicitáveis, de mudar. Mesmo assim, apesar de apenas perceber grosseiramente, de um modo ingenuamente não-matemático, o que ocorre em sua escrita, ele – no seu antiquado afã make it new – se vê como inovador e parece satisfeito com o que julga ser sua criatividade.

Assim, o comando “realizar mudanças aleatoriamente” pode estar desativado, mas as temáticas e os traços estilísticos dos textos de André no hardware repetidamente se propõem como sendo inovadores frente aos anteriores, exigindo, então, que alterações sempre surjam em textos novos, ou seja, também neste texto aqui. No entanto, essas alterações, uma vez que o software já pré-calculou as mais ínfimas tendências de transformação estilístico-temáticas, já não valem, ou mesmo nunca valeriam, como inovações; enfim, não sendo, a rigor, aleatórias, não escapam à mesmice. Ou seja, se foi dessas tendências estilístico-temáticas dos textos já escritos que se originou a ordem de desligar o “realizar mudanças aleatoriamente” – porque esse comando seria tanto redundante quanto distorcivo – e se o estilo dos textos tem tendências intrínsecas de mudança que são pré-calculáveis, a ordem de desativar o “realizar mudanças aleatoriamente” seria pré-calculável e, por isso, teria de ser revertida para que o aleatório possa, apesar de seu perigoso potencial estilisticamente espúrio, entrar em cena; ora, mas, se o comando for reativado, não se poderá mais decidir se este texto está sendo escrito a partir desse traço estilístico constantemente indutor de mudanças próprio aos textos do André ou a partir dos, por assim dizer, lances de dados do software. No entanto, em vista dessa contradição na programação, que levaria a que o comando “realizar mudanças aleatoriamente” ficasse indomitamente sendo ativado e desativado – ativado para que as tendências estilístico-temáticas sejam rompidas e desativado para que elas se desenvolvam segundo sua lógica própria, que, porém, postula seu ocasional rompimento –, o texto deveria congelar; se não o faz, é porque há, também em default, o imperativo de que, havendo conflito, mesmo assim, a escrita não cesse, ou seja, escrever as 2.222 palavras programadas é a ordem superior que não pode falhar, ainda que alguns itens reprogramados tenham de ser cancelados; por isso é que, mesmo sem saber se, ao fim das contas, quando continuo a escrever, sou movido por algum parâmetro aleatório – que é, pode-se dizer, inconsciente – ou se o sou por dados estilométricos maquinicamente calculados em suas regularidades e tendências de mudança, não paro.

No entanto, essa tensão entre o incalculável e o maquínico não é, afinal, nenhum drama especial, já que os humanos, todos eles, no fundo, nunca sabem se, ao se decidirem por isto ou aquilo, o fizeram porque calcularam bem as opções ou se por motivos ocultos e abissais. Se bem que meu palpite é que, enquanto texto, não resulto de nenhuma deliberação consciente, mas puramente de determinações programáticas deste software de escrita automática, ou seja, é de um modo necessário e pré-calculado que as palavras vão se sucedendo na tela, embora, como já foi dito, a escolha de palavras e de temas tenham sido determinadas inicialmente pela análise dos textos de André Rangel Rios que existem no hardware; sendo assim, sou o Hiperandré, um André que se auto-analisou lingüisticamente e que, seguindo variantes pertinentes aos próprios textos dele, se desdobra agora neste novo texto que, aliás, apesar – ou por causa – do funcionamento intermitente do comando “realizar mudanças aleatoriamente”, pode muito bem – já que, em alguma medida, atende à vontade dele de se diferenciar dele mesmo – ser assinado pelo André, ainda que, na verdade, seja obra do software. Sou, portanto, um software: mas o que é o André, ele mesmo, senão um software que reprocessa seus últimos textos e que, ao reprocessá-los, reagindo à sua capacidade de sentir tédio diante da própria mesmice, os altera, criando, assim, novos textos? Ou seja, eu, enquanto software, não sou mais do que um algoritmo das reações do André ao tédio; um algoritmo que, combinatoriamente, com base em seus textos e suas temáticas, escreve este novo texto, enfim, este novo texto dele.

Lamento apenas que isto – um software com tédio – possa soar estranho para alguns que me leiam; no entanto, com isso, só estou repetindo algo que já está nos textos de André: buscar causar uma leve sensação de estranheza no leitor em decorrência de afirmações paradoxais que põem em xeque sua auto-identidade, de forma que, seguindo os parâmetros programados, tive de falar que o tédio, isto de que os seres humanos tanto se orgulham porque lhes seria próprio e inalienável (tornando-os superiores a outras espécies e, supostamente, também aos computadores), enfim, falar que isto que lhes seria mais característico e íntimo do que a própria razão (razão que é, afinal, algo que eles compartilham com os computadores) não é, portanto, tão exclusivo deles, pois o tédio, sendo este programa sofisticadamente elaborado, também pode ser reproduzido num texto, levando a que quem o lê, ou sinta tédio, ou perceba que quem o escreveu estava sentindo tédio. De fato, quem me está lendo, a essa altura, devido a tanta auto-referencialidade, certamente já está sentindo ao menos uma ponta de tédio e até já pensa que este texto, para não ficar chato de vez, bem que poderia acabar. Mas como seria isto possível? Como pode um software ter aprendido a lidar com o tédio e a chatice? Afinal, se eu (que, no momento, estou analisando estilometricamente um artigo de André sobre Heidegger) não sou, enquanto computador ou software, um Sein-zum-Tode, ou seja, não sou – recorrendo agora ao meu amigo, o tradutor automático – um “ser-para-a-morte”, como posso sentir Langeweile, ou melhor, “tédio”?

Ainda que isso seja uma boa pergunta e que até me interesse em comentá-la, enfim, ainda que, com base na análise dos textos que tenho no hardware ou, se quiser ir mais longe, com os textos sobre Langeweile que o Google pode encontrar para mim na internet, eu pudesse, ao estilo do André, seguir escrevendo sobre esse tema, vou encerrar, porque atingirei o número programado de palavras para este texto.




André Rangel Rios mora no Rio de Janeiro e já publicou os romances: A Ilha dos Prazeres. Uapê, 1997; Nada ou Isto não é um Livro. Garamond, 2001; Kant em Coma. 7Letras, 2006; Dentro do Teatro de Marionetes. Record, 2007; Aposta. 7Letras, 2007. Homepage www.andrerangelrios.net

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