sábado, 31 de janeiro de 2009

Duas letras de um samba, cantado pelos grandes Jorge Veiga e Ciro Monteiro

O samba é bom assim
1ª versão

Pra mim, pra mim
o samba é bom
quando é cantado assim

Ah, eu vou-me embora
que me dão para levar
levo penas e saudade
no caminho vou chorar

2ª versão
(samba de bacana)

Para mim, ai, para mim
o samba ótimo
interpretado assim

eu não canto o meu samba
como o faz Ciro Monteiro
ele bate na caixinha
e eu bato no isqueiro

(breque)

de ouro

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O Fantasista

Com a emoção ligeiramente arrefecida, o homem se sentou à sombra do mausoléu e, com a coroa de flores entre as pernas, começou a recordar sua infância nas ruas de Temuco e seus primeiros contatos com a bola de meia. E, sem nos darmos conta, lá estávamos nós, junto à tumba do jogador pampiano, conversando animadamente sobre a transcendência que o futebol pode ter na vida de um homem; em sua maneira de ser e no seu modo de enfrentar as adversidades. Todos concordamos que, no terreno exíguo de um campo de futebol, era possível apreciar o melhor e o pior do ser humano. Ali, no campo de jogo, naquele retângulo de terra e grama, fechado ou aberto, no meio da grande cidade ou nos mais perdidos rincões, ao longo de escassos noventa minutos de porfia, podiam-se se ver a nobreza, a coragem, a lealdade e tudo de bom que havia num indivíduo; ao mesmo , contudo, podia aflorar também o que ele possuía de pior: a covardia, a injustiça, a soberba e a malandragem. Todos concordamos, igualmente, quando o Fantasista, com um travo de amargura na voz cavernosa, falou que ninguém tinha condição de dizer o que era o prazer se nunca havia feito um gol olímpico no melhor goleiro do ano; que ninguém tinha condição de saber o que era júbilo mais desenfreado se nunca havia driblado três adversários de uma vez e em seguida marcado o gol da vitória nos acréscimos de uma final de campeonato. Mas, igualmente, nenhum cristão podia dizer que conhecia a derrota e a humilhação mais profunda sem nunca ter ido até o fundo das redes de uma baliza para buscar a bola após fazer um gol contra.

Por fim concluímos em total acordo: ninguém terá experimentado a angústia de se sentir só no universo se não ficou de pé debaixo dos três paus à espera de ser fuzilado por uma cobrança de pênalti no último minuto de jogo.

(O FANTASISTA – Hernán Rivera Latelier)

Este post é dedicado aos grandes vascaínos Pedro de Lima Martins Teixeira, meu pai e Mateus Souto Martins Teixeira, meu filho.
Ao grande flamenguista e amigo Ronald Iskin.
E ao não menos grande botafoguense e amigo Leo Barbara Machado.

(oswaldo martins)

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

da fidelidade canina

de tudo, ao meu amor serei atento
os passos, seus olhares, esquecimentos

com tal zelo, e sempre, e tanto
esquadrinho de seu corpo canto a canto

mesmo em face do maior encanto
eu lhe decifre cada entretanto

dele se encante mais meu pensamento
pra impor-lhe as regras do adestramento

quero vivê-lo em cada vão momento
e desventrar cada desvão de dentro

em seu louvor hei de espalhar meu canto
pra que emudeça de vez no espanto

e rir meu riso e derramar meu pranto
até quebrar-lhe com o meu quebranto

ao seu pesar ou seu contentamento
hei de infligir um bem maior tormento


e assim quando mais tarde me procure
que seja de joelhos e abjure

quem sabe a morte, angústia de quem vive
saberá me entregar o que já retive

quem sabe a solidão, fim de quem ama
sabe a dor da companhia a ferro e chama

e eu possa me dizer do amor (que tive):
já conheceu o medo de ser livre

que não seja imortal, posto que é chama
e apague mais que a morte de quem ama

que seja infinito enquanto dure
e minta até mesmo quando jure

Cesar Cardoso

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Mundo moinho

Estou sempre olhando pra todos os lados, como se algo estivesse para acontecer. A sensação de que corro perigo vem a todo instante. O mundo é chão de armadilhas. Vou chegando, arisco. Sempre olhando para os outros a ver se algum bando está por perto. Tenho muita fome nessa hora. Estou sempre com fome. A fome guia minha caminhada. E me alimento rápido porque a armadilha pode estar à minha volta. Pode ser o próprio alimento. Talvez já esteja apanhado nela sem saber. A velocidade que me fez ir nessa direção encontra-se com a minha aflição. Não sei o que fazer. Achei o que saciava, mas tenho aflição. Minha cabeça roda, procurando motivos do medo. O meu olho também roda. E se desloca como se tivesse eixo próprio alhures. Como saber se já não estou na armadilha? Tudo talvez esteja perdido. Minha cabeça roda tanto e olha tudo tão rápido que só posso estar preso. Tento me acalmar. Meus óculos funcionam como câmeras que vasculham cada recanto do shopping.
Acabo de me perder de minha mulher, estou com um filho me esperando com a sessão começada do Ensaio sobre a cegueira, eu tenho a chave da casa e ela não. Em vez de entrar na sessão percorro andares várias vezes e nos mesmos lugares. E não consigo controlar a aflição. Por que fiquei com a chave se ia ao cinema? E continuo a rodar, o corpo como câmera. Num desses instantes me vem aquele menino que acordou na noite e não tinha ninguém na casa. Houve um lapso aí, esse menino cerca de uma hora talvez esteja muitas casas abaixo na varanda de vizinhos, ouvindo uma voz que vem de cima, de um senhor que diz que o seu pai já vem. Aquela voz não dizia nada, os grandes são engraçados, acham que tudo passa. Mas alguma coisa estranha se passou ali, talvez o primeiro abismo. Continua a câmera olhando ao redor. Não estou lá nem procurando mãe. A angústia é a mesma. O filme já está em meio. A cegueira é aqui. Tateio e sufoco entre a multidão que pivoteia no cilindro, na confusão de línguas. Nenhuma lucidez, nenhuma calma, à espera da divina imagem surgir nos degraus de uma escada rolante.

Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
26 de janeiro

sábado, 24 de janeiro de 2009

Queria Dear

Querida dear prudence windysmile e oceanchild: Agora que achei na rede o disco duplo branco dos beatles e agora que um negro vai ser presidente dos estados unidos, agora que sei que half that what i say is meaningless você pode vez em quando, além dos emails coletivos, malas diretas e malas que me manda, me enviar umas 3 ou 4 frases só pra mim mesmo. So i sing a song, Beijos.

(Claudio Correia Leitão)

poema paulista

nem tudo era corpo
na praia daAlmada
tinha a minha voz
e a dela
que cantava todo dia
de manhã
sem chapéu de palha
sem óleo na pele
sem preguiça
encostava os pés no chão
a voz
soletrava
conchas quebradas
recitava
ondas nada repetidas
e eu
dedos queimados
nos riscos da
água-marinha
invadia com tudo
aqueles pensamentos
a poesia
da Almada
a frase maldita que eu
não esquecia
um dia, nesse lugar,
um homem deixou
de ser
som
e se tornou
maresia
o brilho nos rochedos
e ela
o medo da Almada
de tudo
que escondia.


(Lúcia Leão)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Jan Kochanowski (1530 - 1584)

ÀS MUSAS

Musas, habitantes do Parnaso soberbo,
De Hipocrene o orvalho lava o vosso cabelo,
Se em vida eu constyância puder manter convosco,
Apartar-me de vós não ousarei tampouco;
Se ouro e pérolas não cobiçar aos monarcas,
E optar pela honradez em vez de muitas arcas;
Se nunca vos pedir lisonjas por capricho,
Nem que a gente ingrata busqueis um benefício;
Que os meus versos jamais murchem, eu vos exorto,
E que as cubra a glória, quando eu já estiver morto.


JanKochanowski - escritor polonês do século XVI, um dos mais importantes poetas de sua época. Saiu da Polônia aos 22 anos, quando foi estudar na Itália; depois, foi para a França e Alemanha. Perfeito bilíngue, escrevia em Polonês e latim. Retornou à pátria, onde desenvolveu intensa atividade literária, tendo deixado não apenas poesia, mas também obras de cunho jornalístico, político etc. (Nota de Aleksandar Jovanovic)
Jovanovic traduziu e organizou também obelo livro do poeta iuguslavo VASKO POPA. OSSO A OSSO. Livro que recomendo veementemente.

Recomendação de Leitura

1 - SCHULZE, Ingo. Celular - 13 Histórias à maneira antiga. COSACNAIF.São Paulo. Tradução e Posfácio de Maecelo Backes. 2008

2 - LEMOS, Gilvan - A era dos Besouros. A Girafa. São Paulo. 2006

3 - RADIGUET, Raymond. Como diabo no corpo. Contraponto. Rio de Janeiro. Trad. Maria Ignez Duque Estrada. 1995

4 - RADIGUET, RAymond. O baile do conde d'Orgel. Rio de Janeiro. trad. Maria Ignez Duque Estrada. 1995

5 - Céu vazio.63 poetas eslavos. Trad. e org. Jovanovic, Aleksandar. Hiuicitec. São Paulo. 1996.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Entre livros e flores

É imenso o prazer que sinto, quando recebo – como obra do acaso – um pequeno ramo de flores – diminutas flores, para guardar num livro, deixá-la ali como uma lembrança ininterrupta da alegria de viver. Os faunos e as ninfas voltam a povoar o mundo, com seus flautins e músicas misteriosos. O mistério se instaura de imediato e permite cabriolas, azafamadas profundezas. Como um intermezzo lírico no meio da selva de concreto e o ritmo frenético do dia a dia, flores e livros compõem o espírito seja como um samba de Nelson Cavaquinho, cantado por Elizete, seja como uma música de Cole Porter, entoada por Ella. Ou ainda, egressos de uma encenação em que Dioniso se louvado, perfumado e enfeitado pelas bacantes em êxtase e entusiasmo, livros e flores são dádivas para a construção do mundo.

Li o Radiguet, com o diabo no corpo. Um livro espantoso.

(oswaldo martins)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Juventude

a filha do vizinho
que mora em frente
é uma rapariga muito jeitosa.
noutro dia, ela disse: ó pai!
qui é, disse eu.
e no silêncio
percebi
que estava tudo perdido.

(Elesbão)

As transgressões do primeiro trovador

Não se pode ser o primeiro em algo (por exemplo, “o primeiro trovador”) sem uma transgressão. Pois “ser o primeiro” significa ter feito ou realizado algo que ninguém antes havia feito ou realizado algo em que antes ninguém havia pensado ou obtido êxito, razão por que a expressão implica uma distinção entre “aquilo que ocorreu anteriormente” e “aquilo que ocorreu pela primeira vez”. Esse tipo de fronteira pode ser definido como o “limite de”; como limite daquilo que era possível até agora, daquilo que era até então considerado possível ou mesmo como o limite de algo que aconteceu antes. É uma fronteira além da qual algo novo e fundamentalmente diferente começa, não apenas um “outro mundo” que é basicamente similar ao mundo descrito pela fronteira. Muitas vezes, o individuo que cruza este “limite de” não está nem mesmo consciente de sua transgressão – então o acontecimento do atravessar-a-fronteira é estabelecido retrospectivamente por contemporâneos ou pela posteridade de alguém. Entretanto, pode-se violar intencionalmente os “limites de”. Essas intenções abrangem (de modo mais ou menos consciente) o desejo de reformar, de relativizar ou mesmo de abolir o limite que está para ser violado. Noutras palavras, essas intenções implicam um componente de agressividade (em termos mais modernos: crítica) para com o status quo.

(Gumbrecht, Hans Ulrich. As transgressões do primeiro trovador. In: Modernização dos Sentidos. Editora 34. São Paulo. São Paulo. 35. 1998)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Quinta baldia

Quinta baldia
(prosa em versos)

há no mercado Zona Sul
um vinho potuguês que chama
Quinta do Vale Perdido
não é bonito o nome?
compro um terreno baldio
ponho-lhe uma placa
QUINTA DO VALE PERDIDO
e deixo-o sempre baldio.

(Elesbão)

exercício para leveza

2

como quem põe todo movimento
no movimento

contrário ao fluxo

o amor tem nas desoras
silêncios e uma toada de mar

para navegar

(oswaldo martins)

exercício para leveza

1

para andar de bicicleta

há de se ter a leveza das garças
deixar com descuido a bolsa pender

a blusa deve descolar-se do corpo
e criar a magia de alegria e vento

com ar blasé, assobiar uma canção
de cartola ou nelson cavaquinho

e aqui e ali como quem não se importa
amarrar as cordas que decaem

das sandálias e dos cabelos

(oswaldo martins)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

VICÁRIO AMOR

Amor, sem resolução, assim
Verdade, bonito
Conversa muda
Olhos dizem.

Então, jorro de fala dela
E gesto, em muito
Cabelos ao vento, estrelas
Sua alva pele, menina
Ele, a noite.

Vestido comprido, em decote
Seios saltam como peixes
Há desejo e posse
Toma, é seu.

Confissão de amor
Expressões de prazer, gemidos
Sexo desesperado, a rua - cama.

Goza, agora!
Perdido o sussurro
Mulher obedece, sim...
Carpir-se devaneante
Grita, chora, morde
Bestafera, ama o amor do outro.

José Paulo Paes

L’ÀFFAIRE SARDINHA

O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente na eucaristia.

E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.

(José Paulo Paes – Poesia completa. Cia. das Letras)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sobre Cartola

Ouvir Cartola é provar do manjar dos deuses. As evoluções do violão, o canto certeiro que ninguém mais conseguirá cantar. Contenção na composição, na criação das letras, na elocução da voz. Perfeição das coisas simples e complexas, no paradoxo da beleza. Amo Cartola na incapacidade física de minhas palavras dizerem o alumbramento e a emoção totais.

Abaixo uma das homenagens que a ele prestei no meu último livro. De quebra dedicado a uma amiga querida, Therezinha Val, e lido por outro amigo querido, Ronald Iskin, para o cd que se fez acompanhar do meu último livro, Cosmologia do Impreciso. Gosto do cruzamento das homenagens.

1
para therezinha val

o uso de cartolas é de antanho

a música
um porém de tempos imemoriais

entre um camões
e a lucidez dos pixinguinhas

violões solam
o que silenciamos

(oswaldo martins)

Um Cartola da melhor qualidade

Corra e olhe o céu

Linda,
te sinto mais bela
te fico na espera
me sinto tão só
mas o tempo que passa
em dor maior bem maior

Linda,
no que se apresenta
o triste se ausenta
fez-se a alegria
corra e olhe o céu
que o sol vem trazer
bom dia.

(Cartola – Dalmo Castelo)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A Lua de Li Po

a lua de Li Po
para Dora Ribeiro
um dia a abracei

estavam gravadas nos lagos dos jardins
a minha e a face dos bambus

a lua era ali
e os bambus

perdida em mim
entoava

em lo-yang, à noite, uma flauta
de jade

(oswaldo martins)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Se eu fosse você 2, o filme de Daniel Filho,

Se eu fosse você 2, o filme de Daniel Filho,
apresenta rendimento para a idéia de intercâmbio de corpos por almas, coisa que tem história em caracteres e tipos do drama ibérico e agilidade de recorte gil-vicentino. O que uma alma de homem carrega para o corpo da atriz Glória Pires faz dela o craque de futebol que falta ao corpo simétrico na hora da pelada, no caso o do ator Tony Ramos. Os diálogos a sós do casal invertido lembra as situações semânticas da conversa entre as personagens Todo Mundo e Ninguém, do quase pós-medieval Gil Vicente. Quase porque ele escapa para a Renascença, mas seus estereótipos de Mal e Bem migraram para estereótipos grotescos de Macho e Fêmea, renascidos em gestos performáticos dos papéis genéricos de mulheres e homens ou outros que os corpos de Pires e Ramos aventam em trejeitos e gestos. No andar, na voz, na posição de dormir etc. A agilidade das falas confunde os papéis corporais trocados e por isso diverte. Mas mãe e pai são desempenhos à parte, uma vez que a gravidez só se pode dar no corpo de fêmea. Essa verdade salva o casamento da filha hesitante na hora de subir ao altar do sacrifício do amor dos seus pais, o casamento. Mãe e filha reencontram-se na comunhão de seus corpos grávidos. A canção “Pra Você” de Sílvio César – “ah, se eu fosse você, / eu voltava pra mim” – reencontra aí sua imagem real depois de cinqüenta anos. O romantismo retornado da estória, suas canções e locações, devolvem ao Rio de Janeiro uma nesga de auto-estima perdida dos anos dos arranjos dissonantes de bossa nova, depois de se haver dito que amor é bossa nova e que sexo é carnaval, sem contudo buscarmos os efeitos do contrário de tais atribuições. A pretexto de tentativa de voltar aos corpos originais, os protagonistas em processo de divórcio resolvem fazer sexo, engravidam e seguem invertidos. Então o amor grávido faz cair pela segunda vez o raio do buquê da noiva no mesmo lugar, as mãos reatadas dos corpos verdadeiros dos pais da noiva também grávida. O que importa é o casamento (?) – volta-nos como interrogação a memória suscitada da fala afirmativa perversa de um drama rodrigueano conhecido.
CLÁUDIO CORREIA LEITÃO