sexta-feira, 29 de março de 2019

geografia impessoal


não desço mais a pires
embora a rua permaneça
com o lixo nas calçadas
os buracos os abismos

na certa haverá um busto
à praça e ao abandono
até que ao descerem a rua
derrubem a cabeça oca

onde mijarão os cães
e – do caos à lucidez
de uma forja desatada

a vir – a rua escura
há de cobrir o espanto
com um vaso de gerânio

oswaldo martins

quarta-feira, 27 de março de 2019

FALAM, CONVERSAM O MUNDO



Para Arnaldo Santos e José Luandino Vieira,
Meninos Mais-Velhos dos Pássaros e dos Rios,
na celebração dos seus 80 anos de Vida e Poesia
         

Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.

Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.

E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.

                                                8.9.2012-29.7.2013

ZETHO CUNHA GONÇALVES
In: Noite Vertical. Lisboa: Língua Morta, 2017.

Hérnia - Rogério Batalha


quarta-feira, 20 de março de 2019

duas oswaldianas


1.

Dum país que possui a maior reserva de ferro e o mais alto potencial hidráulico, fizeram um país de sobremesa. Café, açúcar, fumo, bananas.

2

Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de base e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Leitura 03 2019


Livros:

1 – Relato de um certo oriente – Milton Hatoum
2 – Os sinos da agonia – Autran Dourado

Os encontros objetivam colocar em circulação ideias e discussões sobre romances clássicos e contemporâneos da Literatura Universal e Brasileira. Serão quatro encontros semanais, com duas aulas dedicadas ao estudo de um dos livros selecionados, da sua época, do significado literário e filosófico em que se inserem os autores. Os livros selecionados para o novo ciclo de leituras críticas são RELATO DE UM CERTO ORIENTE, do premiado escritor manauara, Milton Hatoum e o livro, OS SINOS DA AGONIA, do clássico mineiro, Autran Dourado.

O livro de Hatoum, a partir da imigração árabe para o Brasil, busca reconstituir, através de relatos, a vida, a memória e a formação das personagens, muitas vezes os relatos retomam os mesmos motivos a partir de diversos pontos de vista. O Livro de Autran Dourado, construído com o rigor que marca a obra do escritor mineiro, traz também a marca da diversidade de pontos de vista. A estrutura obedece à estrutura da tragédia grega e o romance busca reconstituir, no período barroco mineiro, a percepção de uma ética ligada à afirmação das percepções humanas.

Programação:

09/04 – Relatos de um certo oriente – Hatoum.
Apresentação do romance e estudo das linhas gerais da construção romanesca, problematização do narrador. A construção dos diversos ponto-de-vista.

16/04 – Relatos de um certo oriente – Hatoum.
Memória e ficção. Os problemas que envolvem o gênero e a constituição de um como da memória como ficção.

23/04 – Os sinos da agonia – Autran Dourado.
Apresentação do romance e estudo das formulações trágicas e sua adaptação ao romance de Autran Dourado.

30/04 – Os sinos da agonia – Autran Dourado.
A reconstituição do Barroco. Os aspectos da história como ficção. Os relatos de amor e morte presentes no romance.

Local: Rua Pires de Almeida 76/201- Laranjeiras
Duração dos encontros 1:30 h.
Horário: das 20:00 às 21:30 h.
Custo: 400,00 reais os quatro encontros
Mediador de leitura: Oswaldo Martins
Contato pelo tel (021) 981439622

Oswaldo Martins, nascido em Barbacena – MG, em 1960, reside no Rio de Janeiro desde 1979. Fez graduação em Letras (Português-Literatura), pela PUC-RJ o mestrado (Literatura Brasileira), pela UERJ. Autor dos livros desestudos (2000 -  7 Letras / 2015 TextoTerritório); minimalhas do alheio (2002 – 7 Letras / 2015 – TextoTerritório);  lucidez do oco (2004 – 7 Letras / 2015 – TextoTerritório) cosmologia do impreciso (2008 – 7 Letras); língua nua (com ilustrações de Elvira Vigna (2011 – 7 Letras); lapa (2014 – TextoTerritório); manto (2015 – TextoTerritório); paixão, sobre imagens de Roberto Vieira da Cruz,  (2018  TextoTerritório).


Fez os roteiros dos filmes Urânia, poema de Alexandre Faria (com Felipe David Rodigues – 2009); Venta-não, (com Felipe David Rodrigues e Alexandre Faria – 2013). É editor da TextoTerritório.

sábado, 16 de março de 2019

sistema bancário


maricota quando trepa cobra com juros
ministra sua lição com cuidados e atroz
derrama sobre os corpos na maciota
um vírus ou mesmo um cancro duro

com agulhas ministra o seu ai jesus
trata-nos com os chupões dos pentelhos
e a falsas sementes de alcaçuz
cospe de lado e nos mete o relho

maricota usa disfarces tem roupas
para o mercado roupas para viagens
em umas finge-se virgem em outras

desvela altaneira suas vantagens
diz que seu peixe nunca foi sem luta
depois ministra-nos doses de cicuta

(oswaldo martins)


domingo, 10 de março de 2019

Dois poetas gregos


Anacreonte

Anda rapaz, traz-me uma taça
para eu beber um gole,
deitando dez medidas de água
e cinco de vinho.
Quero festejar Baco
de novo, sem insolência.

**

Safo Fr. 31

φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν’ ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι
ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φονεί-
σας ὐπακούει

καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ’ ἦ μὰν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν•
ὠς γὰρ ἔς σ’ ἴδω βρόχε’, ὤς με φώναί-
σ’ οὐδ’ ἒν ἔτ’ εἴκει,

ἀλλά κὰμ μὲν γλῶσσα μ’ἔαγε, λέπτον
δ’ αὔτικα χρῷ πῦρ ὐπαδεδρόμηκεν,
ὀππάτεσσι δ’ οὐδ’ ἒν ὄρημμ’, ἐπιρρόμ-
βεισι δ’ ἄκουαι,

κὰδ’ δέ μ’ ἴδρως κακχέεται, τρόμος δὲ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ’ ὀλίγω ‘πιδεύης
φαίνομ’ ἔμ’ αὔτᾳ.

Ele me parece ser par dos deuses,
O homem que se senta perante ti
E se inclina perto pra ouvir tua doce
Voz e teu riso

Pleno de desejo. Ah, isso, sim,
Faz meu coração ‘stremecer no peito.
Pois tão logo vejo teu rosto, a voz eu
Perco de todo.

Parte-se-me a língua. Um fogo leve
Me percorre inteira por sob a pele.
Com os olhos nada mais vejo. Zumbem
Alto os ouvidos.

Verto-me em suor. Um tremor me toma
Por completo. Mais do que a relva estou
Verde e para a morte não falta muito —
É o que parece.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Na poesia

Na poesia
a palavra só ressoa depois
primeiro fala para dentro
numa fidelidade própria das coisas sem começo
nem fim

aqui
como nas Ruas
há caos e transparência
poucas saídas e urna só entrada.

(Dora Sampaio)

quinta-feira, 7 de março de 2019

estudo para a nudez ante o sol de edward hopper


todo nu se quadricula inexatos parâmetros
a luz sobre o corpo a cama os dois sapatos
jogados como se nada

a efusão que ultrapassa as duas janelas
os dois quadros as sombras das pernas
e embora não se vejam as duas cadeiras

surgem nesta disposição mútua de quem
agora só em sua esquizofrenia despida
espera que venha pela luz o visitante

das sombras que desde então nada
ou quase sempre surge na evidência
escondida de uma cor, e surpreende

(oswaldo martins)

sábado, 2 de março de 2019

O cotovelo de deus

para lula

1

O cotovelo deitado sobre a escada em Montmartre se construía sob o impacto de quem nunca pousara seus olhos na paisagem das velhas putas. O gínglimo – este artefato inumano – com seus graxos, possuía a percepção de um pequeno traço, pontudo. Quase uma seta ardente no momento fugaz da unidade. Apontava nortes exatos, na bailarina exausta desta dobra particular do tempo, como se apontasse para dentro de si mesma. E em uma imagem invertida a rua que se desdobrava abaixo era um reflexo dos peitos murchos de uma vadia ou eram os peitos deitados sobre as ruas a medida milimétrica da tradição aproveitada pelas cores que aqui e ali pareciam um corte no supercílio, um pedaço de músculo, o olho cego exposto por todos corpos torturados nos porões da gendarmaria, da KGB, da CIA, da polícia brasileira Os corpos dos cubanos, dos negros, dos argelinos, das meninas de programa, reunidos neste cotovelo anverso.

2

JM nunca esteve em Montmartre. Olhava a cidade de cima. O presente. O tapa na cara. A boceta nua e o cotovelo de deus. Fora apenas pequenos excertos de um coubert, o realismo pouco lhe interessava, preferia as noites estreladas, o joelho de Tarsila, as máscaras do Benin. A gramática exposta nas entranhas dos corpos esquartejados nos mais diversos substratos. Madeira, tela, pedaço de pano, refugos. Não subira as escadas, não visitara a Sacre-coeur, preferira apontar para os ícones, construir proximidades nada espontâneas, forçadas, pois acreditava que a forja da resistência era construída das derrisões, da destruição das casas apalacetadas que a arte compunha comprometida com o esgar burguês da fotografia e da representação das democracias ocidentais. JM preferia os cotovelos de uma democracia anárquica.

3

O flash o estampido a inexistência da vírgula do ponto dois travessão uma linguagem vertida vômito frêmito, embora a razão sobrevoasse todo demão de tinta, colada aos poros em uma obsessiva busca de anatomias escondidas em que o beco e não a glória sobressaísse, denominasse pelo nome mais exato este cotovelo repousado sobre a escadaria de Montmartre.

4

Todo equívoco nasceu quando imbuído das tenebrosas interdições a que nossos pintores, nossos escritores se prenderam. Dai este pedaço escuso, essa absurda alegoria de outro deus.