quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Pilulinha 47

O romance Sem Gentileza, de Futhi Ntshingila, da Editora Dublinense, lê-se de um único fôlego. A autora sul-africana, de etnia zulu, aos poucos, vai descerrando os percalços de um país no qual a miséria e a subvida dominam a narração, e o drama da gravidez precoce, da aids e da impossibilidade de se manter vivo se concretizam por meio das palavras da escritora.

A literatura vem acentuando no mundo todo esse escrever legítimo dos que nunca puderam dar a ver seu drama. A temática às vezes acerta, às vezes erra. Muitas vezes o erro está, paradoxalmente, na pouca profundidade da exploração da linguagem e do que pode ela construir sobre universo tão profundamente inquietante. Se se pudesse pensar a matéria literária matematicamente, diria que a igualdade formulada para a resolução de uma equação se perde numa incongruência. Se de um lado o drama vigoroso da vida admite que nele se debruce o escritor, do outro a matéria sobre a qual é seu ofício se perde nem dois desdobramentos bastante complexos.

O primeiro estaria em que nem sempre a resolução dos problemas trazidos à tona pela vida permite que se escolha entre a gentileza e a falta dela; essa escolha denotaria uma percepção maniqueísta da vida não permitindo que o trágico se coloque, para que dele possa surgir uma ética, apostando-se apenas na narrativa do desastre, que acaba por ser redentor, pois que deixa antever apenas uma moral, que sempre será volátil e excludente.

O segundo estaria na composição da trama. Ntshingila a compõe de maneira admirável, fazendo com que confluam os eixos narrativo numa mesma direção. As personagens se desenvolvem aos poucos vão ganhando contornos definidos e as ligações entre eles, obscuras por motivo necessário e verossímil, se fecham de modo perfeito. Percebe-se aí a mão da escritora, sua maestria.

Entretanto o segundo desdobramento não é o bastante. Há de se ultrapassar certo bom mocismo que desponta no plano geral da narrativa e alivia – porque parte do exemplo – a consciência culpada que obrigatoriamente e por motivos éticos deveria recair sobre a parcela usurpadora dos direitos sociais e humanos.

Ao dar à personagem uma saída integradora, a autora, ao mesmo tempo que chama atenção para as mazelas que afligem a sociedade apartada da África do Sul, não permite que se aprofundem as questões que a levaram a esta exclusão, bastando-lhe a leve comoção moral com que seus leitores certamente se identificarão.
(oswaldo martins)




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