sábado, 20 de outubro de 2012

Urubu, rapace danado


Urubu
Texto da contracapa
Antonio Carlos Jobim

Jereba é urubu importante como, aliás, todo urubu. Mas entre eles, urubus, observam-se prioridades. E esse um é o que chega primeiro no olho da rês. Sem privilégios. Provador de venenos, sua prioridade é o risco. O que ele não toca é intocável. Jereba é urubu importante e por isso ganhou muitos nomes. Peba. Urubupeba. Urubu Caçador. Achador. Urubu Procurador. Urubu de Cobra. Urubu de Queimada. Camiranga. Urubu de Ministro. De cabeça Vermelha. Urubu Gameleira .Urubu Peru. Perutinga. Urubu Mestre. Cathartes Aura.            

Não confundir com Urubu Rei. Nem é Urububu. Não tem pompas, nem é tão igual assim. Só se parece consigo mesmo.

Não é Urubutinga. Nem Urubu do Mar, Carapirá. Nem o de Cabeça Amarela, nem o famoso Urubu Chacareiro, que voa baixo sobre chácaras e quintais, só come manga e não existe. É mentira de caçador perna-de-pau, de cadeira de balanço, de aposentada carabina.

Nem mera citação de nomes - Urubu Sonho. Nem conotação de azar - Urubu Morcego. Na verdade não és culpado da nossa devastação. Corcovado de duas corcovas, solenes ombros altos de tanta asa sobrante, as mãos cruzadas às costas, narinas conspícuas vazadas, grave, ministro de assuntos impossíveis, só tu sentas à mesa com o Rei.

No chão não te moves bem. Fraco de pernas, maljeitoso, troncho, pousado és o mais feio dos urubus. Despropositado passarão.

Matas com fezes ácidas a árvore onde dormes à espera do dia solar. E vem o dia, as termais e o vento, e a necessidade de voar.

Dia velho, as asas aquecidas, o Jereba mergulha na piscina. Pé de serra, fim de baixada onde começa a ladeira e os contrafortes azulam na distância, o Jereba sobe na chaminé do dia. Urubupeba. As rêmiges das asas púmbleas, prata velha fosca, dedos de mão apalpando o vento, adivinhado tendências. Urubu Mestre. As grandes asas expandidas cavalgam as bolhas de ar quente emergentes da ravina. Tolo papagaio, tola pipa boiando no ar, não-querente, não desejo navegante, à deriva, à bubuia - pois sim! - preguiçoso atento dormindo na perna do vento. Esse sabe o que há de vir. Aquário do céu.

Teu canto imita o vento. Hisss... As asas agora curtas, sobraçando trilhos de ar, pacote negro compacto, bico cravado no vento, velocidade feita letal, muro de azul aço abstrato - e adeus viola que o mundo é meu.

Nas lentes dos olhos, a águia oculta y entrabas e salias por las cordilleras sin pasaporte.

Urubu procurador. Urubu Achador. Que sabes do alto o que se esconde no chão da mata virgem e dos muitos perfumes que sobem do mundo.

Eterno vigia de um tempo imperecível. Guardião de dois absurdos.

Nos vetustos paredões de pedra, esculpidos pela millennia, dorme de perfil um urubu.

 A vida era por um momento.

Não era dada. Era emprestada.

Tudo é testamento.


Antonio

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Do Estive lá fora de Ronaldo Correia de Brito


Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de impulso é apenas a cartada final.
Homens puxam carroças, indiferentes a Cirilo e ao manguezal sobrevivendo nas margens do rio. Será que o concreto armado substituiu alguma ponte de madeira? Vira-se em busca de trilhos de ferro, imagina se passavam bondinhos por ali. Deseja romper com o cenário em volta, mas não consegue. A memória refaz seus vínculos com o Recife, apega-se covardemente às imagens que afogará no mergulho. Cansou de procurar Geraldo, ausente da família desde que veio morar na cidade. Prometeu à mãe que cuidaria do irmão, vigiaria seus passos. Mas Geraldo sabe aonde vai, ligou-se a um partido político e faz discursos nas praças. Cirilo oscila ao movimento dos ônibus cheios de passageiros, avistados num relance. Exaustos e solitários, eles escurecem igual à tarde em que o sol e a chuva se revezam arbitrariamente.
Entre o impulso do corpo e o salto para baixo, nesse tempo mínimo, Cirilo se despede das coisinhas pequenas, sem significado aparente. Os olhos, doentes de tudo querer ver, enxergam aguapés na correnteza lamacenta e flores semelhantes ao lótus. Sujeira borra as pétalas aquáticas e refaz lembrança de outros rios e flores, num lampejo de gosto pela vida. E se desistir de morrer? As mãos se crispam na balaustrada da ponte entre ilhas do Recife, cidade cujo destino é inundar-se no Atlântico. Ele também irá sumir; encher os pulmões de lama podre e sepultar-se entre algas marinhas que o olhar não alcança. Caso sobreviva ao afogamento, morrerá de pneumonia ou remorso pelo crime de João Domísio, o fantasma cuja história o persegue desde criança.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Antiode, em forma de interrogação, para o STF



para gregório de mattos e guerra


julgais, senhores, a bastardia
a pobreza dos órfãos da pátria
a indigência mental que se permite repetir os slogans da ideologia

julgais, senhores, os crimes dos torturadores
os crimes que se fizeram contra zumbi
contra frei do amor divino caneca

julgais, senhores, os crimes da justiça
os desfalques dos carros oficiais
dos salários astronômicos

julgais, senhores, os sinistros falseadores
as falácias dos comportamentos dirigidos
o investimento na burrice alheia e unânime

julgais, senhores, os crimes das poupanças roubadas
os juros altos os ganhos dos bancos
a burra cheia dos espertos

julgais, senhores, as casa das dindas,
as casas ministeriais o lago paranoá
os supremos de frango com legumes  supervalorizados

julgais, senhores,  a própria horta
julgais, senhores, como ao personagem de kafka
julgais, senhores, o superintendente da casa

julgais, senhores que julgais, o que julgar se deve
julgais, senhores, a simonia e os crimes da santa madre
julgais, senhores, o negócio, o socrócio, o ócio

julgais, senhores, as casas da banha
julgais, senhores, as casas da fama
julgais, senhores, as casas da privatização

julgais, senhores, as fronhas, os travesseiros
da consciência enlatada, midiatizada, carbonizada, afamada
das más condutas sempiternas

julgais, senhores, o eu lírico que chico cantou em sinhá
os pobres do haiti, que é aqui,
julgais o julgo empedernido e disfarçado em vestal da república

julgais as vestais que recebem prêmios
julgais as vestais da intectualidade dispersa
nas academias de letras e números

julgais, senhores, os responsáveis pelo analfabetismo
que fazem a glória dos que julgam e que como o deus de gregório
estão prontos para o perdão por nele encontrar sua glória

ou pensais, senhores que julgam, que as ovelhas desgarradas
se permitem rebanhos falsos
se permitem a cabeça abaixada dos condenados

se assim julgais,
julgais em falso.

(Oswaldo Martins)

memorinha


Entre as muitas coisas que vivemos, algumas se destacam – mínimos presentes que são deixados aqui e ali na nossa maluquice diária. Não me lembro de haver sequer um ano dado presentes do dia das crianças para meus filhos. Nunca caí no canto de ouro das sereias sibilantes do mercado. Os presentes eram dados em outras datas, conforme dava na vontade. E mais simbólicos que de agrado fácil, percebidos só com passar do tempo como forma de alegria diária. Acontece, por exemplo, quando acordava diariamente pelo fim da madrugada e chamava os meninos para andar na praia e ver raiar o dia. Coisas simples que corroboram para a mitologia familiar, com a força dos heróis do passado que agiam sem finalidade.

(oswaldo martins)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Literatura e Censura


O avanço dos conservadores no cenário brasileiro não se resume às eleições findas. Uma série de episódios isolados vem demarcando o avanço destas forças. O constante ataque às obras literárias e artísticas e a alguns conceitos sobre arte o revela. Há um clima de insuportável vigilância sobre os temas e a forma de expô-los. Não satisfeita de impor aos cidadãos as câmaras aplanadoras da vigilância sobre um grupo privado, as garras dos monstros produzidos pelo sonho da razão se estendem ao âmago do pensamento e de sua construção. Há uma urgência de vigilância e controle nos meios formadores da ideologia privatista e antidemocrática com que convivemos cotidianamente no nosso ofício de escritores, artistas plásticos e livres-pensadores.

Tal controle é que faz os comuns preferirem os selinhos da má dama Hebe Camargo à formulação do mega pensador Hobsbawm ou à obra do escritor mineiro, brasileiro e universal Autran Dourado. Há um quê de pensamento formador no ar que intencionalmente nos faz esquecer, pela ausência, o que realmente importa e se constitui universalidade. Assim criam as possibilidades que atingirão, para além do anedótico, o centro nevrálgico da nova censura que se dá de forma absolutamente naturalizada e constante. Mesmo algumas “reações” contrárias à censura são escritas e veiculadas como uma “corajosa” afirmação da desculpa de que há pessoas que pensam na impertinência das construções que incomodam o lugar de conforto em que a sociedade se acha mergulhada, mas, na verdade, possuem fôlego maior. A simples veiculação do objeto de censura não livra a cara de ninguém de compactuar com a própria censura. A exposição dos fatos, com a neutralidade dos covardes, é uma forma – talvez a mais bizarra – de refirmar o lugar da censura. Ao não afirmarem o absurdo de se censurar qualquer criação humana, criam as brechas para os “eu não disse”, os “não vê que deveriam”, repetidos aqui e ali como um coro mal digerido de cidadãos sem cidadania, que mais concordam com seus líderes do que a eles apontam a usurpação dos direitos e a eles se opõem. Dizer que tal ou qual obra sofreu censura é apenas informação e não tomada de consciência de que de fato haja censura.

Os episódios vêm sendo constantes e partem de instituições particulares, que se acham no direito de legislar sobre o que pode ou não ser visto, lido ou desfrutado pela liberdade dos comuns. Ora, desde a Constituição votada em 1988, a censura acabou oficialmente no país, o que equivale dizer não haver censura oficial. O perigo que a censura privatista constrói e a que se deve estar atento e à qual se deve opor é a da insidiosa criação de um ambiente propício ao ressurgimento das censuras oficiais.  Em nome do politicamente correto, em nome da atitudes possíveis, em nome da naturalização do saber oficiosamente busca-se recalcar a livre manifestação, a livre apreciação do escabroso, do distorcido, do horroroso.

Como a literatura moderna nasce a partir da proximidade com o que é desviante e escuso, a apropriação desta matéria pouco nobre, o abandono do sublime, se antes serviu para que se naturalizasse o desejo subjetivo, hoje – quando as relações se querem livres e afirmativas – há um incômodo no ar, quando o poeta e o artista contemporâneo buscam, na expressão do que incomoda, o objeto através com o qual fala ao mundo – e ironicamente isso se dá quando o artista expõe a fragilidade do conceito da arte, através da interferência imediata e não mediata das afirmações vivenciais do próprio corpo, do erotismo e mesmo da pornografia literária. Se no início da modernidade eram as corcundas, as manchas da alma e do corpo, as fezes que fizeram arrepiar o leitor, no fim da modernidade, como se a conhece, esse pequenos desvios já não falam senão do que é gosto comum e como a necessidade da poesia – ou da arte em largo senso – é dizer o que foge ao senso comum e defini-la como artigo do belo, surgem os embates contra o que está arraigado pelo moralismo da sociedade controlada pelo semianalfabetismo, pelas diretrizes dos que adquiriram algum poder – relativo à própria instituição ou mais amplo.

A necessidade da arte é a de ultrapassar os limites da justiça e criar um vazio na sua própria constituição para verificá-la fora dos ditames temporais demarcados pela construção de uma justiça alheia e que é determinada como justa pela ausência de embate. Curiosamente os poetas e artistas agredidos se calam ou, se falam, não encontram eco nos ampliadores formais da comunicação, que preferem a formulação rasteira que se esconde no truísmo da informação clean e não opinativa.


(Oswaldo Martins)

Epigrana



Gregório de Mattos e Guerra


I

Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

sábado, 6 de outubro de 2012

antiode para a biblioteca parque de manguinhos


1.
esta biblioteca é minha
está na conta de todos os calotes que dei no 310 (del castilho-praça xv) para me despencar pra biblioteca nacional pro centro cultural bando do brasil
esta biblioteca é minha
está na conta de todas as esperas madrugadas em claro por um cata-corno na central do brasil depois de voltar de um teatro longínquo da gávea
esta biblioteca é minha
está na conta dos cochilos dos pontos perdidos das tardes inteiras de ir e vir saens pena botafogo lendo no ar-condicionado metropolitano
esta biblioteca é minha
está na conta da vesícula biliar que deixei pra pagar garimpos livrarias sebos de tudo que que me interessa e não é meu o ouro do outro a cidade
a cidade é minha

2.
não está na conta essa biblioteca parque da biblioteca da senhora parker apesar da quase homonímia de seus sobrenomes
lá, a antialexandria, o senso do privado contamina a ordem pública
lá, o trambique agostinho minou mina minará a sala das famílias do brasil
de lá sai cuspido e escarrado o poema em que nossas mães se reconhecem

não está na conta dos inocentes do Leblon a biblioteca parque de manguinhos
cá, por mais que venham todos os dias muitos inocentes com seu interesse antropólogo diante da tribo esquecida o elo perdido
cá, por mais que se assustem todos os dias os projetinhos beneficentes chá de caridade “aaaah eu não entendo porque ele não gosta de mim”
cá, furaram os olhos do sabiá

e mais, não está nem na minha conta que cada um diga aqui agora “a biblioteca é minha"
é tudo nosso a biblioteca a praça a cidade

3.
então não agradeço (a biblioteca é minha)
ao excelentíssimo presidente da república luiz inácio lula da silva e seu crescimento acelerado
então não agradeço (a biblioteca é minha)
ao excelentíssimo governador do estado apesar de todo respeito que tenho por seu pai (sergio cabral pai, um livro público da minha cidade)
então não agradeço (a biblioteca é minha)
à excelentíssima senhora adriana rattes pelo quanto sonhei um estação partindo direto de bonsucesso
então não agradeço (a biblioteca é minha)
às lágrimas e à luta da ilustríssima senhora vera saboya
então não agradeço (a biblioteca é minha)
às noites em claro do ilustríssimo senhor alexandre pimentel
então não agradeço (a biblioteca é minha)
ao estresse diuturno da dona ivete da dona maura das meninas da produção cultural
então não agradeço (a biblioteca é minha)
por nenhuma gota de suor de quem rala para fazer acontecer a biblioteca parque de manguinhos
então não agradeço (a biblioteca é minha)
por nenhuma gota de suor inclusive do meu para que num lugar obscuro do planeta os livros substituíssem os fuzis de um velho quartel

e não me venham com boa vontade que a paz é mais embaixo

e não me venha o senhor ventura que sei unir a cidade partida

e não esperem que entre o lupenarcotraficário e os interesses privados dos peixes pequenos nasça um senso público colombiano – falta-nos umas FARC 

e nem me digam terra ingrata filho ingrato poeta de merda

não agradeço nem nunca agradecerei pelo que é meu
não agradeço a deus pelos anos a fio dos meus cabelos brancos em que ficaram me devendo essa biblioteca e ficaram me devendo meu sono minhas solas meu fígado
a deus só posso agradecer por tudo que não me pertence
mas esta biblioteca é minha
é minha a praça a cidade meu o país

4.
esta biblioteca é minha como é minha a cidade de são conrrado a santa cruz sem cruzar pela barra
nos meus roteiros o usucapião da casinha na marambaia à da vinci pela rampa caracol do marques de herval
na mão tenho linhas que vão dos rotos da cracolândia do jacarezinho ao albene do teatro dos quatro
na mão tenho a rota do inesperado gozo das meninas da rua ceará ao delírio sangrento das carnes do porcão
na minha mão as cotas do pré-vestibular comunitário aprendem a safar-se do bullying, dos pilotis da puc, dos pedantismos diurnos do fundão, dos suicídios décimo-segundo andar da uerj
nas entrelinhas da minha mão, a cola das fórmulas para a prova de geometria

e agora que lhes dou o mapa que explico o poema à sombra das palmeiras quem cola comigo?
nem o craqueiro nem a atriz
nem a puta nem o dentista

pois quem me deu a minha cidade (e o amordesprezo que sei nutrir pelos sorrisos amarelos, pelos olhos por trás dos óculos de sol)
foram as minhas bibliotecas

5.
é isso aí
se precisar tiro onda de doutor

(Alexandre Faria)

Mineiro Autran Dourado produziu uma narrativa original e cosmopolita


SILVIANO SANTIAGO
Na sexta-feira passada fui a Cascais para conhecer o Museu Paula Rego, ameaçado de ser extinto pelas recentes medidas de austeridade tomadas pelo governo português. A partir de certo momento, o nome da cidade de Sintra aparecia a cada bifurcação da estrada e a seta apontava para as montanhas vizinhas ao oceano. Batia-me forte a lembrança do amigo e romancista Autran Dourado - que morreria na manhã do último domingo, aos 86 anos de idade.

Anos atrás, aquela cidade organizara uma Festa da Língua Portuguesa. As autoridades locais desejavam homenagear os escritores luso-brasileiros e africanos que tinham sido agraciados com o Prêmio Camões. Depois de enviar o gentil convite a Autran Dourado e família, a comissão organizadora estendeu outro a mim, que falaria sobre a obra dele. Viajamos Lúcia, a esposa querida, ele e o neto, filho de Ofélia, até Sintra. Pouco reconhecido no Brasil, Autran era recebido em Portugal com as honras merecidas. Minhas palavras de louvação foram tímidas diante dos aplausos da plateia. A sessão foi presidida por autoridades portuguesas.

De fácil e agradável leitura, a vasta e multifacetada obra romanesca de Autran Dourado é, no entanto, de difícil interpretação. A defasagem entre a leitura episódica, feita por seus inúmeros leitores e admiradores, e a leitura reflexiva, de responsabilidade dos estudiosos, advém de duas características de sua prosa.

Por um lado, Autran é o escritor que, na geração a que Clarice Lispector e Guimarães Rosa também pertencem, cultivou com o maior carinho e respeito os livros clássicos da língua portuguesa, independentemente da nação que tinha visto o autor nascer. Entrar em texto dele é como bater à porta da casa de parente, ou como entrar na casa materna da língua. A linguagem ficcional brota no sangue dos nossos legítimos vocabulário e sintaxe e, sem nacionalidade, é atemporal.

Autran Dourado foi um estilista clássico em vida. Nos ouvidos sensíveis, o português dos romances e contos flui com a graça de quem teve trato com o cronista-historiador Fernão Lopes, o escrivão Pero Vaz Caminha e com as múltiplas desventuras narradas em A História Trágico-marítima. Também teve ele trato com os gigantes José de Alencar e Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era seu ídolo e motivo para leituras anuais da obra completa.

Abrangentes, generosas e atemporais, língua portuguesa e poética da narrativa abrigam o leitor, qualquer leitor que ama nosso instrumento de expressão como a um bem inalienável, que não pode e não deve ser conspurcado. Ao abrir as páginas de conto ou de romance do nosso pranteado autor, o leitor se sente em salão de festas. Sua imaginação artística dança com naturalidade, ao ritmo da valsa ou da modinha que exala dos vocábulos e das sentenças cadenciados pela tradição.

No entanto, Autran Dourado é também o romancista que, com inteligência crítica e imaginação solta, lidou com autores estranhos à língua portuguesa, que se situam dentro da linhagem realista-naturalista dominante no século 19. Refiro-me a figuras notáveis como Gustave Flaubert, Henry James e William Faulkner. Com eles, aprendeu que o apego à História e suas conjunturas direciona as obras propriamente literárias, e as transforma em expressões artísticas e definitivas da sociedade em que se inserem - e do tempo que toca aos personagens viver.

Autran lidou, ainda, com autores estrangeiros que compuseram obras ficcionais dentro da linhagem mítica, como é o caso de James Joyce e do seu famoso romance Ulisses, como é também o caso, já no campo da psicanálise, de Sigmund Freud, e do tratamento que dispensa a isto a que podemos chamar de a vida humana no planeta Terra. O romancista irlandês e o pensador austríaco se apegam ao mito como forma estruturante de toda e qualquer vida, de toda e qualquer narrativa. A composição mítica leva o texto a transcender época e circunstâncias históricas, para apresentar o ser humano como regido por leis universais, tão ricas e rigorosas quanto, por exemplo, a figura de Fedra na peça homônima de Racine, ou o complexo de Édipo, em Hamlet.

Por ter o romancista adotado o método mítico na composição, o personagem de Autran Dourado, antes de ser produto de uma sociedade particular, a mineira ou a brasileira, encontra-se envolto (é dito e repetido, é reescrito) pela cultura ocidental. Nessa linha de raciocínio, um romance dele antes de ser regional, é cosmopolita. Antes de ser brasileiro, português ou africano, é ocidental. A vida do personagem no romance principia onde termina a história regional de Duas Pontes, cidade mítica mineira que adota como sua. No entanto, aquela vida só deslancha na ficção onde principia o mito. Como nos diz o próprio Autran Dourado: "Assim o mito permanece e se renova incessantemente".

O novo na literatura de Autran Dourado está no outra vez, no novamente, no retorno, no eterno retorno, na sucessão do dia e da noite, na repetição dos dias e das noites. Dessa forma é que se organiza sua obra-prima A Barca dos Homens. Dessa forma é que o romance se dá ao leitor, desde que ele tenha o desejo de nela embarcar para a aventura do conhecimento humano. Informa o romancista que A Barca dos Homens "se estrutura pelo desdobramento cíclico ou circular de três grupos principais ou três metáforas".

Nos romances mais significativos, Autran Dourado utiliza o método de composição mítico, mas não se vale apenas dele para a caracterização e constituição do personagem no contexto da história contemporânea. Ele alarga o campo do drama humano pelo estreitamento operado pelo contexto histórico em que ele o insere. É graças ao manuseio da história social brasileira que Autran Dourado trama os magníficos painéis históricos a que nos acostumamos desde A Ópera dos Mortos. Na direção estreita do seu projeto ficcional, Autran foge do específico joyciano (o mito como estruturante de um material de vida que escapa à História) e se adentra para o passado patriarcal da sociedade brasileira com reflexão originalíssima sobre a obra magna de Gustave Flaubert, com destaque para pequenas joias como Un Coeur Simple.

Assim sendo, e por este lado, Autran busca inserir o indivíduo na vida social brasileira. A leitura da novela Uma Vida em Segredo, adaptada para o cinema com direção de Suzana Amaral, propicia uma reflexão crítica sobre o papel e a função da mulher na sociedade patriarcal e machista. Escrita na linha traçada por outros grandes escritores modernistas mineiros, como Carlos Drummond de Andrade e Ciro dos Anjos, Uma Vida em Segredo revela a complexa condição socioeconômica das Gerais pelo viés da vida em família. O conflito que abre a novela é o da decisão sobre o destino da prima Biela, no momento em que perde o pai e se encontra só no mundo.

Moça criada sem mãe e na roça, solteirona e arisca, será ela acolhida pelos primos na cidade? Tornar-se-á a indispensável companheira da prima casada e também solitária? Ou será enviada pelo primo, designado seu tutor e testamenteiro, ao convento das freiras para lá passar o resto dos dias? Acolhida em casa dos primos citadinos, qual será seu papel e função junto à família? Caso entre para o convento, que será da sua herança? As relações entre parentes próximos, descritas e dramatizadas com elegância e primor por Autran Dourado, podem ajudar o leitor a estabelecer, de maneira inteligente e criativa, leitura contrastiva entre os costumes tradicionais do campo e os novos da metrópole brasileira.

As obras ficcionais de Autran Dourado se fundam na excelência da língua portuguesa e têm origem nos autênticos conflitos fundadores da nossa contemporaneidade. E desabrocham em caldo linguístico nacional e cosmopolita, segundo os contornos duma estética realista-naturalista e mítica, num desenrolar do universo humano que é espesso e vário, contraditório e milionário. De tal modo os conflitos fundadores da literatura e da arte moderna são trabalhados por ele que a leitura de suas obras requer do estudioso a força só concedida aos amantes da cultura. Daí a dificuldade da interpretação dos seus contos e romances que, no entanto, são de leitura simples e prazerosa.

SILVIANO SANTIAGO É ESCRITOR, ENSAÍSTA E COLUNISTA DO SABÁTICO

quinta-feira, 4 de outubro de 2012



Apresenta


Sarau Poético


Sábado, dia 06 de outubro, a partir das 17h

Poeta convidado
Oswaldo Martins

Lançamento da Oficina Antiodes, do TextoTerritório.
Microfone aberto – Traga sua poesia!


BIBLIOTECA PARQUE DE MANGUINHOS
Avenida Dom Helder Câmara, nº 1184 (atrás do Colégio Estadual Luiz Carlos da Vila)
Tel: (21) 2334.8915/8916/8917

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Capricho-Nara Leão-poema de Castro Alves

Capricho


Ai! quando
Brando
Vai o vento
Lento
À lua
Nua
Perpassar sutil

E a estrela
Vela,
E sobre a linfa
A ninfa
Suspira
Mira
O divinal perfil

Num leito
Feito
De cheirosas
Rosas
Risonhos
Sonhos
Sonharemos nós

Revoltos
Soltos
Os cabelos
Belos
Vivace
A face
Tremulante a voz

Cantos
E prantos
Que suspira
A lira
A alfombra
À sombra
Encontrarei pra ti

Celuta
Escuta
De meu seio
O enleio
Vem, linda
Ainda
Há solidões aqui.

(Castro Alves)

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Entrevista de Autran Dourado para a Folha de São Paulo


Folha - O senhor já disse que há um grupo de livros seus que pensa terem dado conta do recado. O que os dois que estão sendo relançados agora têm a acrescentar?


Autran Dourado - Sempre me perguntam, sobretudo quando vou a universidades, quais foram os autores que me influenciaram. Fiz "O Meu Mestre Imaginário" para não ter mais que responder a essa pergunta. Já estou quase com 80 anos, uma idade até vergonhosa de dizer, e em uma fase em que já selecionei meus autores. Leva-se a vida inteira selecionando os livros que se deve ler quando se está aposentado. Agora sei os livros que devo ler. E não tenho medo de clássicos. Os clássicos são necessários.



Folha - E o que seria o clássico?



Dourado - É aquele que, mesmo sem querer, inova. Alguém disse algum dia que ler Homero é chato. Mas a chatice não é uma qualidade literária para ser julgada.


Folha - A erudição é necessária ao escritor?


Dourado - A erudição é acidental, embora seja uma coisa que se busque. Quando o autor está começando a escrever, não pode pensar em ninguém. Nem em outros autores nem em seu público, porque sequer consegue saber quem é seu público. O escritor é aquele solitário. Eu não sei qual é meu leitor e não me submeto à posição de procurá-lo.



É por isso que vejo com certo escândalo o que está acontecendo no Brasil: pessoas jovens que se iniciam na literatura e querem logo vender livro. Têm vocação de best-seller. São fabricantes de livro, e o livro que você vê não resultou de nenhum esforço maior, não correu nenhum sangue por ele. Isso não é ser escritor. Vender livro é um acidente na vida de um escritor.



Folha - O senhor diz que o escritor é um solitário, e é impossível não pensar em seus personagens, que são também solitários, tomados de medo e angústia.



Dourado - Meus personagens se parecem muito comigo. Eu os conheço muito bem e sofro a angústia que eles sofrem. Não tenho nenhum prazer em escrever. Depois de pronta a obra, aí me dá uma certa satisfação, mas a mesma que dá quando se descarrega dos ombros um fardo pesado.



Folha - Se não dá prazer, então por que escrever?



Dourado - É também uma fatalidade. Você é destinado à literatura, e não a literatura a você. Escrever é uma imitação. A gente escreve feito um menino que vê o livro como um brinquedo e pensa "ah, eu quero um". Quando eu li pela primeira vez "Dom Casmurro", eu disse "puxa, eu quero o meu". Daí a necessidade que se tem de ler. Quando estou para escrever, gosto muito de ler um poema, Drummond, João Cabral. Não é o poema que eu vou fazer, mas acho que me prepara.



Folha - E que expectativa o senhor tem em relação à sua obra? Que inove sem que queira inovar?



Dourado - É exatamente isso. Não é propriamente um propósito, mas a idéia é transportar uma chama, que passa para outro e para outro. É um encadeamento de autores, de autores de uma mesma família literária. Mas eu vivi recentemente a experiência de reler minha própria obra, e me deu uma coisa quase como uma náusea. Me dá uma náusea pensar nessas perguntas todas. O que se deve procurar é escrever bem. E selecionar os poucos autores que se deve ler, que são os que aperfeiçoam o trato da linguagem. Porque literatura é linguagem carregada de sentido.



Folha - Os escritores são carapinas do nada?



Dourado - São carapinas do nada. Você citou aí um conto meu de que gosto muito: "Os Mínimos Carapinas do Nada". São os velhos que ficavam na janela de casa, esculpindo, tirando pequenas aparas de madeira, fazendo caracóis. Procurando o nada. Escreve-se para chegar ao nada. O enredo, por exemplo, é uma das coisas menos importantes no romance. É o artifício que o autor usa para prender o leitor, para engabelá-lo enquanto bate sua carteira.



Folha - E o que rouba?



Dourado - A emoção dele, sentir que ele está preso ao livro, que você o tem pela mão. E não que ele esteja com você na mão.



Folha - Escrever, então, é artifício, e não inspiração?



Dourado - Há na palavra inspiração uma certa traição. Eu prefiro "idéia súbita". Quando me vem uma idéia súbita, eu a cultivo até encontrar a forma do romance.



Folha - E sobre a possível morte do romance, que, depois das vanguardas, tanto se vaticina?



Dourado - Quando o Fernando Sabino foi passar uma temporada na Europa, ele voltou e me disse: "Você está perdendo seu tempo. O romance morreu". Eu disse: "Ô, Fernando, você está me dando uma notícia tristíssima. Porque eu acabei de deixar um romance na editora. Justo hoje você vem me comunicar a morte de um parente meu?". Não morreu. O europeu é que é muito preocupado com essas coisas.



Folha - E não vai morrer?



Dourado - Se vai morrer, eu não posso dizer, porque quem pode morrer antes sou eu.



Folha - No momento, o senhor está escrevendo alguma coisa?



Dourado - Estou preparando um livro, mas nunca mostro antes de estar pronto. Mas estou escrevendo com muita dificuldade porque estou muito preocupado com aquilo que é permanente na literatura. Que é o valor literário, sobretudo os valores formais. É um peso que aumenta com o passar do tempo. O peso de já ter escrito.

as coisas



as coisas mais importantes, para os criadores, sobre romance foram ditas por romancistas, e as coisas mais importantes sobre poesia foram ditas por poetas.

matéria de carpintaria



"Não nos esquecemos da verdade elementar de que quando um escritor começa a escrever, por mais solitário e ignorante que ele seja, nunca está sozinho. Atrás dele estão não só os grandes gênios e inventores da literatura universal (mesmo que ele não os conheça, o que é natural), mas sobretudo e principalmente os pequenos e grandes escritores que escreveram na sua mesma língua antes dele"
Uma poética de romance — matéria de carpintaria



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