sábado, 6 de outubro de 2012

Mineiro Autran Dourado produziu uma narrativa original e cosmopolita


SILVIANO SANTIAGO
Na sexta-feira passada fui a Cascais para conhecer o Museu Paula Rego, ameaçado de ser extinto pelas recentes medidas de austeridade tomadas pelo governo português. A partir de certo momento, o nome da cidade de Sintra aparecia a cada bifurcação da estrada e a seta apontava para as montanhas vizinhas ao oceano. Batia-me forte a lembrança do amigo e romancista Autran Dourado - que morreria na manhã do último domingo, aos 86 anos de idade.

Anos atrás, aquela cidade organizara uma Festa da Língua Portuguesa. As autoridades locais desejavam homenagear os escritores luso-brasileiros e africanos que tinham sido agraciados com o Prêmio Camões. Depois de enviar o gentil convite a Autran Dourado e família, a comissão organizadora estendeu outro a mim, que falaria sobre a obra dele. Viajamos Lúcia, a esposa querida, ele e o neto, filho de Ofélia, até Sintra. Pouco reconhecido no Brasil, Autran era recebido em Portugal com as honras merecidas. Minhas palavras de louvação foram tímidas diante dos aplausos da plateia. A sessão foi presidida por autoridades portuguesas.

De fácil e agradável leitura, a vasta e multifacetada obra romanesca de Autran Dourado é, no entanto, de difícil interpretação. A defasagem entre a leitura episódica, feita por seus inúmeros leitores e admiradores, e a leitura reflexiva, de responsabilidade dos estudiosos, advém de duas características de sua prosa.

Por um lado, Autran é o escritor que, na geração a que Clarice Lispector e Guimarães Rosa também pertencem, cultivou com o maior carinho e respeito os livros clássicos da língua portuguesa, independentemente da nação que tinha visto o autor nascer. Entrar em texto dele é como bater à porta da casa de parente, ou como entrar na casa materna da língua. A linguagem ficcional brota no sangue dos nossos legítimos vocabulário e sintaxe e, sem nacionalidade, é atemporal.

Autran Dourado foi um estilista clássico em vida. Nos ouvidos sensíveis, o português dos romances e contos flui com a graça de quem teve trato com o cronista-historiador Fernão Lopes, o escrivão Pero Vaz Caminha e com as múltiplas desventuras narradas em A História Trágico-marítima. Também teve ele trato com os gigantes José de Alencar e Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era seu ídolo e motivo para leituras anuais da obra completa.

Abrangentes, generosas e atemporais, língua portuguesa e poética da narrativa abrigam o leitor, qualquer leitor que ama nosso instrumento de expressão como a um bem inalienável, que não pode e não deve ser conspurcado. Ao abrir as páginas de conto ou de romance do nosso pranteado autor, o leitor se sente em salão de festas. Sua imaginação artística dança com naturalidade, ao ritmo da valsa ou da modinha que exala dos vocábulos e das sentenças cadenciados pela tradição.

No entanto, Autran Dourado é também o romancista que, com inteligência crítica e imaginação solta, lidou com autores estranhos à língua portuguesa, que se situam dentro da linhagem realista-naturalista dominante no século 19. Refiro-me a figuras notáveis como Gustave Flaubert, Henry James e William Faulkner. Com eles, aprendeu que o apego à História e suas conjunturas direciona as obras propriamente literárias, e as transforma em expressões artísticas e definitivas da sociedade em que se inserem - e do tempo que toca aos personagens viver.

Autran lidou, ainda, com autores estrangeiros que compuseram obras ficcionais dentro da linhagem mítica, como é o caso de James Joyce e do seu famoso romance Ulisses, como é também o caso, já no campo da psicanálise, de Sigmund Freud, e do tratamento que dispensa a isto a que podemos chamar de a vida humana no planeta Terra. O romancista irlandês e o pensador austríaco se apegam ao mito como forma estruturante de toda e qualquer vida, de toda e qualquer narrativa. A composição mítica leva o texto a transcender época e circunstâncias históricas, para apresentar o ser humano como regido por leis universais, tão ricas e rigorosas quanto, por exemplo, a figura de Fedra na peça homônima de Racine, ou o complexo de Édipo, em Hamlet.

Por ter o romancista adotado o método mítico na composição, o personagem de Autran Dourado, antes de ser produto de uma sociedade particular, a mineira ou a brasileira, encontra-se envolto (é dito e repetido, é reescrito) pela cultura ocidental. Nessa linha de raciocínio, um romance dele antes de ser regional, é cosmopolita. Antes de ser brasileiro, português ou africano, é ocidental. A vida do personagem no romance principia onde termina a história regional de Duas Pontes, cidade mítica mineira que adota como sua. No entanto, aquela vida só deslancha na ficção onde principia o mito. Como nos diz o próprio Autran Dourado: "Assim o mito permanece e se renova incessantemente".

O novo na literatura de Autran Dourado está no outra vez, no novamente, no retorno, no eterno retorno, na sucessão do dia e da noite, na repetição dos dias e das noites. Dessa forma é que se organiza sua obra-prima A Barca dos Homens. Dessa forma é que o romance se dá ao leitor, desde que ele tenha o desejo de nela embarcar para a aventura do conhecimento humano. Informa o romancista que A Barca dos Homens "se estrutura pelo desdobramento cíclico ou circular de três grupos principais ou três metáforas".

Nos romances mais significativos, Autran Dourado utiliza o método de composição mítico, mas não se vale apenas dele para a caracterização e constituição do personagem no contexto da história contemporânea. Ele alarga o campo do drama humano pelo estreitamento operado pelo contexto histórico em que ele o insere. É graças ao manuseio da história social brasileira que Autran Dourado trama os magníficos painéis históricos a que nos acostumamos desde A Ópera dos Mortos. Na direção estreita do seu projeto ficcional, Autran foge do específico joyciano (o mito como estruturante de um material de vida que escapa à História) e se adentra para o passado patriarcal da sociedade brasileira com reflexão originalíssima sobre a obra magna de Gustave Flaubert, com destaque para pequenas joias como Un Coeur Simple.

Assim sendo, e por este lado, Autran busca inserir o indivíduo na vida social brasileira. A leitura da novela Uma Vida em Segredo, adaptada para o cinema com direção de Suzana Amaral, propicia uma reflexão crítica sobre o papel e a função da mulher na sociedade patriarcal e machista. Escrita na linha traçada por outros grandes escritores modernistas mineiros, como Carlos Drummond de Andrade e Ciro dos Anjos, Uma Vida em Segredo revela a complexa condição socioeconômica das Gerais pelo viés da vida em família. O conflito que abre a novela é o da decisão sobre o destino da prima Biela, no momento em que perde o pai e se encontra só no mundo.

Moça criada sem mãe e na roça, solteirona e arisca, será ela acolhida pelos primos na cidade? Tornar-se-á a indispensável companheira da prima casada e também solitária? Ou será enviada pelo primo, designado seu tutor e testamenteiro, ao convento das freiras para lá passar o resto dos dias? Acolhida em casa dos primos citadinos, qual será seu papel e função junto à família? Caso entre para o convento, que será da sua herança? As relações entre parentes próximos, descritas e dramatizadas com elegância e primor por Autran Dourado, podem ajudar o leitor a estabelecer, de maneira inteligente e criativa, leitura contrastiva entre os costumes tradicionais do campo e os novos da metrópole brasileira.

As obras ficcionais de Autran Dourado se fundam na excelência da língua portuguesa e têm origem nos autênticos conflitos fundadores da nossa contemporaneidade. E desabrocham em caldo linguístico nacional e cosmopolita, segundo os contornos duma estética realista-naturalista e mítica, num desenrolar do universo humano que é espesso e vário, contraditório e milionário. De tal modo os conflitos fundadores da literatura e da arte moderna são trabalhados por ele que a leitura de suas obras requer do estudioso a força só concedida aos amantes da cultura. Daí a dificuldade da interpretação dos seus contos e romances que, no entanto, são de leitura simples e prazerosa.

SILVIANO SANTIAGO É ESCRITOR, ENSAÍSTA E COLUNISTA DO SABÁTICO

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