domingo, 15 de janeiro de 2012

As edições de Carpeaux


Resenha Eletrônica  
 
   
   
 Uma história  da esperteza editorial
 Revista Época - 09/01/2012 
 
   
 O relançamento de "História da literatura ocidental", de Otto Maria Carpeaux, pela editora Leya, é uma cópia fiel da edição  feita pelo Senado. Antes disso, a Leya publicou uma biografia autorizada do presidente do Senado, José Sarney.
 
 
 MURILO RAMOS

 
 
 

História da literatura ocidental, de  autoria do austríaco Otto Maria Carpeaux (1900-1978), é  uma obra monumental. Um intelectual brilhante, radicado  no Brasil, aonde chegou em 1939 da Europa, Carpeaux, um  judeu convertido ao catolicismo para fugir do nazismo,  adotou o sobrenome afrancesado em substituição ao  original Karpfen, de origem germânica. Ele discorre na  obra, de forma fluente e erudita, sobre 8 mil  escritores, desde Homero, na Grécia Antiga, até os  autores modernos da década de 1970. Uma preciosidade de  fôlego enciclopédico, sem similares no mundo, a obra,  até 2011, só tinha tido três edições: uma em 1959  (Edições O Cruzeiro); outra em 1978 (Editorial  Alhambra), revisada e atualizada pelo próprio Carpeaux;  e a terceira em 2008 (editora do Senado). No fim do ano  passado, História da literatura ocidental foi relançada  pela editora Leya em quatro volumes, sendo vendidos ao  preço de R$ 179,90 exclusivamente nas lojas da rede da  Livraria Cultura (que coassina a edição).

Num  país ainda tão pouco afeito à leitura, o relançamento de  uma obra tão seminal só poderia ser digna de aplausos e  elogios. Não fosse por uma questão. À exceção da capa,  contracapa e das páginas iniciais, a edição da Leya (uma  editora comercial de origem portuguesa) é uma cópia fiel  da edição do Senado. Ela só foi possível graças a uma  daquelas ações financiadas em parte com dinheiro  público, bem típicas de certas rodinhas do mundo  cultural. A cópia feita pela Leya é tão flagrante que  até detalhes do projeto gráfico criado para os livros  publicados pela editora do Senado são reproduzidos na  nova edição. Uma das marcas características da coleção  de livros do Senado é um pontilhado nas capas e no alto  das páginas. A edição recente de História da literatura  ocidental da Leya reproduz o mesmo pontilhado em suas  páginas.

O projeto gráfico dos livros do Senado  foi feito pelo publicitário Achilles Milan Neto. Ele  venceu uma concorrência pública no fim dos anos 1990  para desenvolvê-lo e recebeu R$ 10 mil na ocasião (cerca  de R$ 24 mil em valores atualizados). Milan Neto  frequentou as dependências da Gráfica do Senado para  adaptar suas criações às necessidades específicas e aos  equipamentos de seu cliente. "Defini espaçamento, corpo  da letra, entrelinhas e a capitular que seriam usados  nos livros. Deixei uma espécie de apostila com  orientações aos servidores do Senado", afirmou. Ele se  declarou surpreso com a reprodução de seu projeto  gráfico na nova edição do livro de Carpeaux e disse que  consultará advogados para saber se terá direito a  receber parte dos recursos obtidos com as vendas  realizadas pela Leya.

A Leya teria feito, então,  um plágio descarado da edição do Senado? O problema não  pode ser resumido assim. A editora portuguesa fez  questão de dar os créditos do projeto gráfico do miolo  do livro a Milan Neto (mesmo sem seu conhecimento), de  registrar um agradecimento ao Senado pela "cessão dos  direitos da obra" e de atribuir a edição ao  vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, Joaquim  Campelo Marques. O próprio diretor editorial da Leya,  Pascoal Soto, reconhece que houve uma cópia da edição do  Senado. "Reproduzi a edição que ele (Campelo) fez. É  igual. O Campelo me autorizou a fazer do jeito que eu  fiz e estou orgulhoso disso", disse Soto a  ÉPOCA.

Para copiar a edição da forma como foi feita, o mais barato e rápido, para a Leya, seria simplesmente reimprimir um arquivo digital recebido do Senado. Mas Pascoal conta outra história. "O Senado não cedeu nada. Tenho a edição impressa. Temos recursos para  reproduzir. Digitamos e reproduzimos tal como foi feito  pelo Senado", diz. Essa é uma versão considerada pouco verossímil pelos conhecedores dos meandros das impressões gráficas. "Seria um trabalho gigantesco para a Leya digitalizar as imagens para pôr no mesmo formato da edição do Senado", diz o editor José Mário Pereira, dono da editora Topbooks.

A história da cópia da  edição da História da literatura ocidental poderia se  limitar a uma trapalhada nota de rodapé, mal contada por  seus autores, não fosse a proximidade da Leya com o  presidente do Senado e do Conselho Editorial, José  Sarney (PMDB-AP), e o vice-presidente do Conselho,  Joaquim Campelo. A biografia autorizada de Sarney,  escrita pela jornalista Regina Echeverria, que traça um  retrato simpático do político do Maranhão, foi publicada  pela Leya. Na semana passada, Sarney também entregou à  editora seu livro de memórias, que deverá ser publicada  no segundo semestre deste ano. A Leya, segundo confirmou  Pascoal Soto, também examina a possibilidade de publicar  um dicionário de autoria de Campelo.

Maranhense  da cidade de Viana, Campelo, de 80 anos, é amigo de  Sarney desde a década de 1940, quando estudaram no mesmo  colégio. Campelo foi amigo de Carpeaux, ajudou a revisar  a edição de sua obra pela Alhambra em 1978 e ganhou fama  ao auxiliar Aurélio Buarque de Holanda na elaboração do  dicionário mais conhecido do Brasil. Casado com  Margarida Patriota e cunhado do ministro das Relações  Exteriores, Antonio Patriota, Campelo assessora Sarney  desde a Presidência da República, no fim dos anos 1980.  Ele era responsável por preparar discursos para o então  presidente e por ler documentos importantes antes da  assinatura presidencial. Como vice-presidente do  Conselho Editorial do Senado, comanda a editora do  Senado. Foi ele quem negociou com Soto a edição recente de História da literatura ocidental.

A suspeita  de que a Leya foi favorecida é reforçada porque havia  editoras concorrentes interessadas na reedição da obra  de Carpeaux. José Mário Pereira, da Topbooks, disse que prepara a edição de História da literatura ocidental há alguns anos e foi surpreendido com o relançamento da Leya. "Estimo gastar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil com os três volumes que vamos lançar. Esse é aproximadamente o montante economizado pela Leya quando o Senado cedeu os direitos da obra à editora", diz Pereira. "O Senado ajudou uma editora estrangeira. Por que escolheu ela?"  No cálculo feito por Pereira, estão as previsões de  despesas com pesquisas, revisões e  digitalizações.

Tanto Sarney como Campelo  defendem-se e dizem que não houve nem favorecimento à  Leya nem cessão de direitos de História da literatura  ocidental, uma vez que se trata de uma obra de domínio  público. Uma obra torna-se de domínio público 70 anos após a morte de seu autor ou quando o autor não deixa  herdeiros, caso de Carpeaux. Mas há aí também uma confusão. Segundo a advogada especializada em direitos autorais Sônia Maria D"Elboux, ainda que uma obra seja de domínio público, uma editora que se utiliza da criação intelectual de outra, constituída pela seleção, organização ou disposição desse conteúdo estará violando direitos autorais. "Para que haja proteção autoral,  exigem-se criatividade e originalidade", diz  Sônia.

Para o público interessado em literatura,  o relançamento da obra de Carpeaux trouxe um duplo  benefício. Além de tornar o livro mais acessível a novos  leitores, a reedição permitiu uma redução do preço pago  pelos quatro volumes. Até o final do ano passado, a  História da literatura ocidental, editada pelo Senado,  só podia ser comprada pela internet ao preço de R$ 200.  Alertado de que a Livraria Cultura vende os quatro  volumes a R$ 179,90, o Senado, na semana passada,  resolveu baixar seu preço para R$  170.

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