Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Memórias esotéricas 5
Egon Schiele. Seu erotismo era apenas
um sinônimo para ver o mundo com alegria. Na minha fase da mais aguda magreza,
gostava de me sentar com o Pretinho no colo. Demoradamente minhas mãos ao longo
de seu dorso faziam com que ele e eu ficássemos arrepiados. Meus olhos sempre
manchados de tinta escura, o peito desnudo. Era capaz de ficar assim dias inteiros,
buscando a pose adequada, sentindo a cauda entre as pernas, quente, quente.
O chapéu do início do século, que
conseguira num brechó, deixava-me com ares de pequena puta – eu, moça de 25 anos,
sabedora ainda dos poucos mistérios da vida. Com o Pretinho aprendi certas
safadezas, principalmente nas artes a que ainda não tivera acesso e que me
faria um ser completo, como usar os seios, quando o desejo de me despir se
fazia necessário e urgente.
Usei muito os seios e as mãos em
mim, nas mulheres e homens com que trepei. Para se aprender uma arte é
importante praticá-la. Se não me engano foi o nosso poeta João Cabral quem
disse sobre outro pintor –
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
A experiência de Miró e as poses
de Egon me fizeram aprender a usar o corpo para o prazer. Era ainda jovem, e o
caminho que escolhera para vida me permitia algumas ousadias a que se chega
apenas pelo entendimento sobre as artes. Tudo para que os bobocas e as bobocas ficassem
de quatro por mim, sem saberem que o guizo lhes punha eu.
(Jurema Silva)
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
día de muertos
día de muertos
vivo
en mi cuerpo
involucrada
tu
el tuyo
habitas
cambiamos de casas
en una
desesperación de partida
hoy
todos los bares ya anochecerán
cerrados
y
desnutridos.
*día de muertos
vivo
no meu corpo
envolvida
você
o seu
habita
trocamos de casas
num
desespero de partida
hoje
todos os bares já anoitecerão
fechados
e desnutridos.
(Lúcia Leão)
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Lágrima Palhaça
Amigos confiram o post de Alexandre faria no seu blog - desguardados! cliquem no link abaixo:
http://desguardados.blogspot.com/2011/11/lagrima-palhaca-25-anos-de.html
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terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Quando o luar bate na relva
Alberto Caeiro, poeta personagem
inventado por Fernando Pessoa, é tão fingidor quanto o próprio criador.
Caeiro está sempre negando uma relação
de semelhança, que estabelecemos pela linguagem, entre duas coisas:
Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos
rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
Entre a natureza: o correr dos rios e o
murmúrio das árvores, e sua representação: os sons do piano; o poeta escolhe a
natureza.
Num outro poema diz:
Não me importo com as rimas. Raras
vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da
outra.
E noutro, estes versos, em que reafirma
a primazia da natureza sobre a linguagem:
Mas isso (tristes de nós que trazemos a
alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele
convento
De que os poetas dizem que as estrelas
são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de
um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são
senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos
estrelas e flores.
E por inteiro a canção XXXV, que será
desmentida mais adiante quando este
pastor de rebanhos estiver doente:
O Luar Através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
Alberto Caeiro não é uma pessoa, é um
personagem; e como tal é linguagem. Não poderia desconstruir a linguagem por inteiro. Desconstruiria a si mesmo.
Fingidor como Fernando Pessoa, seu
criador, Alberto Caeiro, a criatura, adoece. E nesta doença fingida se
reconcilia com a linguagem:
XV
As Quatro Canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou ...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não
concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira
Devo ser todo doente — idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente
para outra cousa.
Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de
noite,
A mesma ao contrário.
A quarta canção:
XIX
O luar quando bate na relva
Não sei que coisa me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de
mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu já não posso crer que isso é
verdade
Para que bate o luar na relva?
elesbão
(22/01/12)
terça-feira, 17 de janeiro de 2012
Tenzone
TENZONE
Will people accept them?
(i.e. these songs).
As a timorous wench from a centaur
(or a centurion),
Already they flee, howling in terror.
Will they be touched with the verisimilitudes?
Their virgin stupidity is
untemptable.
I beg you, my friendly critics,
Do not set about to procure me an audience.
I mate with my free kind upon the crags;
the hidden recesses
Have heard the echo ofmy heels,
in the cool light,
in the darkness.
Ezra Pound
TENZONE
Será que as aceitarão ?
(i.é., estas
canções).
como tímida fêmea perseguida por centauros
(ou por
centuriões),
Elas já vão fugindo, urrando de terror.
Ficarão comovidos pelas verossimilitudes ?
Sua
estupidez é virgem, é inviolável.
Eu vos imploro, meus críticos amistosos,
Não saiais por aí procurando-me um público.
Deito-me com quem é livre em cima dos penhascos;
os
recessos ocultos
Já têm ouvido o eco de meus calcanhares
na
frescura da luz
e na
escuridão.
(tradução de Mário Faustino)
|
domingo, 15 de janeiro de 2012
As edições de Carpeaux
Resenha Eletrônica
Uma história
da esperteza editorial
Revista Época - 09/01/2012
O relançamento de "História da literatura
ocidental", de Otto Maria Carpeaux, pela editora Leya, é uma cópia fiel da
edição feita pelo Senado. Antes disso, a
Leya publicou uma biografia autorizada do presidente do Senado, José Sarney.
MURILO RAMOS
História da literatura ocidental,
de autoria do austríaco Otto Maria
Carpeaux (1900-1978), é uma obra
monumental. Um intelectual brilhante, radicado
no Brasil, aonde chegou em 1939 da Europa, Carpeaux, um judeu convertido ao catolicismo para fugir do
nazismo, adotou o sobrenome afrancesado
em substituição ao original Karpfen, de
origem germânica. Ele discorre na obra,
de forma fluente e erudita, sobre 8 mil
escritores, desde Homero, na Grécia Antiga, até os autores modernos da década de 1970. Uma
preciosidade de fôlego enciclopédico,
sem similares no mundo, a obra, até
2011, só tinha tido três edições: uma em 1959
(Edições O Cruzeiro); outra em 1978 (Editorial Alhambra), revisada e atualizada pelo próprio
Carpeaux; e a terceira em 2008 (editora
do Senado). No fim do ano passado,
História da literatura ocidental foi relançada
pela editora Leya em quatro volumes, sendo vendidos ao preço de R$ 179,90 exclusivamente nas lojas
da rede da Livraria Cultura (que
coassina a edição).
Num país ainda tão pouco afeito à leitura, o
relançamento de uma obra tão seminal só
poderia ser digna de aplausos e elogios.
Não fosse por uma questão. À exceção da capa,
contracapa e das páginas iniciais, a edição da Leya (uma editora comercial de origem portuguesa) é uma
cópia fiel da edição do Senado. Ela só
foi possível graças a uma daquelas ações
financiadas em parte com dinheiro
público, bem típicas de certas rodinhas do mundo cultural. A cópia feita pela Leya é tão
flagrante que até detalhes do projeto
gráfico criado para os livros publicados
pela editora do Senado são reproduzidos na
nova edição. Uma das marcas características da coleção de livros do Senado é um pontilhado nas capas
e no alto das páginas. A edição recente
de História da literatura ocidental da
Leya reproduz o mesmo pontilhado em suas
páginas.
O projeto gráfico dos livros do
Senado foi feito pelo publicitário
Achilles Milan Neto. Ele venceu uma
concorrência pública no fim dos anos 1990
para desenvolvê-lo e recebeu R$ 10 mil na ocasião (cerca de R$ 24 mil em valores atualizados). Milan
Neto frequentou as dependências da
Gráfica do Senado para adaptar suas
criações às necessidades específicas e aos
equipamentos de seu cliente. "Defini espaçamento, corpo da letra, entrelinhas e a capitular que
seriam usados nos livros. Deixei uma
espécie de apostila com orientações aos
servidores do Senado", afirmou. Ele se
declarou surpreso com a reprodução de seu projeto gráfico na nova edição do livro de Carpeaux e
disse que consultará advogados para
saber se terá direito a receber parte
dos recursos obtidos com as vendas
realizadas pela Leya.
A Leya teria feito, então, um plágio descarado da edição do Senado? O
problema não pode ser resumido assim. A
editora portuguesa fez questão de dar os
créditos do projeto gráfico do miolo do
livro a Milan Neto (mesmo sem seu conhecimento), de registrar um agradecimento ao Senado pela
"cessão dos direitos da obra"
e de atribuir a edição ao
vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, Joaquim Campelo Marques. O próprio diretor editorial
da Leya, Pascoal Soto, reconhece que
houve uma cópia da edição do Senado.
"Reproduzi a edição que ele (Campelo) fez. É igual. O Campelo me autorizou a fazer do
jeito que eu fiz e estou orgulhoso
disso", disse Soto a ÉPOCA.
Para copiar a edição da forma
como foi feita, o mais barato e rápido, para a Leya, seria simplesmente
reimprimir um arquivo digital recebido do Senado. Mas Pascoal conta outra
história. "O Senado não cedeu nada. Tenho a edição impressa. Temos
recursos para reproduzir. Digitamos e
reproduzimos tal como foi feito pelo
Senado", diz. Essa é uma versão considerada pouco verossímil pelos
conhecedores dos meandros das impressões gráficas. "Seria um trabalho
gigantesco para a Leya digitalizar as imagens para pôr no mesmo formato da
edição do Senado", diz o editor José Mário Pereira, dono da editora
Topbooks.
A história da cópia da edição da História da literatura ocidental
poderia se limitar a uma trapalhada nota
de rodapé, mal contada por seus autores,
não fosse a proximidade da Leya com o
presidente do Senado e do Conselho Editorial, José Sarney (PMDB-AP), e o vice-presidente do
Conselho, Joaquim Campelo. A biografia
autorizada de Sarney, escrita pela
jornalista Regina Echeverria, que traça um
retrato simpático do político do Maranhão, foi publicada pela Leya. Na semana passada, Sarney também
entregou à editora seu livro de
memórias, que deverá ser publicada no
segundo semestre deste ano. A Leya, segundo confirmou Pascoal Soto, também examina a possibilidade
de publicar um dicionário de autoria de
Campelo.
Maranhense da cidade de Viana, Campelo, de 80 anos, é
amigo de Sarney desde a década de 1940,
quando estudaram no mesmo colégio.
Campelo foi amigo de Carpeaux, ajudou a revisar
a edição de sua obra pela Alhambra em 1978 e ganhou fama ao auxiliar Aurélio Buarque de Holanda na
elaboração do dicionário mais conhecido
do Brasil. Casado com Margarida Patriota
e cunhado do ministro das Relações Exteriores,
Antonio Patriota, Campelo assessora Sarney
desde a Presidência da República, no fim dos anos 1980. Ele era responsável por preparar discursos
para o então presidente e por ler
documentos importantes antes da
assinatura presidencial. Como vice-presidente do Conselho Editorial do Senado, comanda a
editora do Senado. Foi ele quem negociou
com Soto a edição recente de História da literatura ocidental.
A suspeita de que a Leya foi favorecida é reforçada
porque havia editoras concorrentes
interessadas na reedição da obra de
Carpeaux. José Mário Pereira, da Topbooks, disse que prepara a edição de
História da literatura ocidental há alguns anos e foi surpreendido com o
relançamento da Leya. "Estimo gastar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil com os três
volumes que vamos lançar. Esse é aproximadamente o montante economizado pela
Leya quando o Senado cedeu os direitos da obra à editora", diz Pereira.
"O Senado ajudou uma editora estrangeira. Por que escolheu ela?" No cálculo feito por Pereira, estão as
previsões de despesas com pesquisas,
revisões e digitalizações.
Tanto Sarney como Campelo defendem-se e dizem que não houve nem
favorecimento à Leya nem cessão de
direitos de História da literatura
ocidental, uma vez que se trata de uma obra de domínio público. Uma obra torna-se de domínio público
70 anos após a morte de seu autor ou quando o autor não deixa herdeiros, caso de Carpeaux. Mas há aí também
uma confusão. Segundo a advogada especializada em direitos autorais Sônia Maria
D"Elboux, ainda que uma obra seja de domínio público, uma editora que se
utiliza da criação intelectual de outra, constituída pela seleção, organização
ou disposição desse conteúdo estará violando direitos autorais. "Para que
haja proteção autoral, exigem-se
criatividade e originalidade", diz
Sônia.
Para o público interessado em
literatura, o relançamento da obra de
Carpeaux trouxe um duplo benefício. Além
de tornar o livro mais acessível a novos
leitores, a reedição permitiu uma redução do preço pago pelos quatro volumes. Até o final do ano
passado, a História da literatura
ocidental, editada pelo Senado, só podia
ser comprada pela internet ao preço de R$ 200.
Alertado de que a Livraria Cultura vende os quatro volumes a R$ 179,90, o Senado, na semana
passada, resolveu baixar seu preço para
R$ 170.
Mais uma
À consulta sobre as interpretações da Melodia Sentimental, soma-se esta de Maria Bethânia. Decidam. Mônica Salmaso; João Bosco; Elizeth Cardoso ou a de Bethânia. Eu continuo com a de Elizeth.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Mariinha, o cônego e o doutor
Mariinha disse quando foi ao confessionário
da Igreja. O cônego era ser amigo já de alguma data. Com os proverbiais segredos
de alcova e sacristia, se entendiam às maravilhas. Se o padre dava a extrema-unção
e acalmava a consciência pesada das moças; Mariinha, a grande senhora, oferecia
de seus préstimos e de suas pupilas, é claro, para as pequenas obras da igreja
e era quem fazia a ceia do natal de jesus cristinho da casa paroquial.
Eram perus que não acabavam mais,
farofa de miúdos, rabanadas e, preferência do cônego, baba de moça, bem molhada.
O religioso se refastelava. Mariinha, que ali se introduzia com cuidado,
passando por uma porta lateral e vestida à moda de então, capa de boiadeiro e
chapéu, se via na condução da cozinha enquanto era pronunciada a missa da
meia-noite. Quando o padre – solitário – voltava tudo estava pronto e Mariinha
já voltara para sua casa onde presidiria o natal dos desertados da cidade. Deixava
apenas uma das suas moças para servir a janta do clérigo.
Tantos foram os natais em que a
cena se repetira que foram aos poucos se descuidando e como era inevitável
cruzaram-se o cônego e Mariinha, nas antessalas da casa. Meio atrapalhados, os
dois se cumprimentaram e travaram um pequeno diálogo sobre seus negócios. Como
estavam bem se despediram e foram cada um a cumprir o papel que lhes cabia.
Quando já morto o cônego e Mariinha
envelhecida, em uma consulta, me contou que, na famigerada noite, a frase que o
padre soltara quase ao acaso e que lhe ficara na cabeça durante anos foi como
uma absolvição de seus pecados. Circunspecto dissera “você sabe, Mariinha, que,
neste mundo de Deus, a única coisa que dá mais que minha paróquia é sua casa e
suas meninas”.
Levantou-se, despediu-se e me
disse com a cara mais santa que podia “hoje, Doutor, eu pago a consulta, o que,
sem dúvida, não aceitei”.
(Oswaldo Martins)
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Acervo origens
http://soundcloud.com/acervo-origens/tracks?page=1
Enviou-me o Paulinho esta maravilha! Clique para conferir.
Abraços,
Oswaldo
Enviou-me o Paulinho esta maravilha! Clique para conferir.
Abraços,
Oswaldo
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
I - AVE-MARIA
Nas nossas
ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece
baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros
de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países:
Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a
gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os
calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então,
as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da
tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de
praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se por
arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo
as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas
descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
II - NOITE FECHADA
Toca-se às
grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
E eu desconfio,
até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.
A espaços,
iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas igrejas,
num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas,
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.
Mas, num
recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
E eu sonho o
Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.
Partem
patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade!
Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Ao lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as
costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta
de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.
III - AO GÁS
E saio. A noite
pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as
lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas
do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito
um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas
descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
Que grande
cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquela velha,
de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.
Desdobram-se
tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa!
Apagam-se nas frentes
Os candelabros,como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tomam-se mausoléus as armações fulgentes.
“Dó da
miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim?
IV - HORAS MORTAS
O teto fundo de
oxigênio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que
portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como
as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
Se eu não
morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos
filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
Ah! Como a raça
ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
Mas se vivemos,
os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.
E nestes
nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio,
todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas,
que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme,
nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
(Cesário Verde)
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
a voz do anjo 8
quem ali cede aos movimentos
dos mínimos ritos sacrificiais
cede os seios, a boca, a vida
a cama – rosa dos tormentos –
quê das noites dúcteis demiúrgicas
colinas que empilho no sonho
permanente dos vícios – a hora quê
não bate e sempre as cinco lebres
os navios dos navegadores ilúcidos
singram o desespero ordenado das
últimas vestes da artesania na nudez
que vela a lícita filha morena
de zeus
(oswaldo martins)
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