Ao Senhor G. Rosa,
pelo nome e lugar do nascido.
Prosa sentada de meia conversa e conto, dedo de café e partida. Em começo, digo. Foi Donana quem me contou dele. Falou que era diferente, eu agradaria seus desejos. Mostrou foto e o mais. Irmão de marido dela, dono dos olhos de várias moças, um sorriso bonito, porte vivo e ainda era safado que só. Riso todo em mim, esfriei barriga, enrubeci. Não de vergonha, que não era moça nessas coisas. Mas, é que carece, assim, vez em quando, da gente se constranger. Fiquei quase mês pensando nele. Imaginando, tecendo as ondas da voz, o toque dos cabelos, as formas como ia me domar. E seja no que eu estivesse, lavando roupa, cozinhando, varrendo casa, pegava, sozinha, voante, o pensamento nele. Cosendo a costura daquele moço de longe, distante aqui da minha Zona de Lassance.
No devanear da presença dele, vestia e desvestia chitas para saber aquela que mais agradaria. Na hora certa, o cair de panos aumenta inda mais o desejo. E no final das contas, eu já era pedaço dele antes mesmo do dia da gente se encontrar. Durante a noite, tinha calafrios, molhava camisola e roupas de baixo. Tinha sonhos bons e ruins, adormecia em desacordar. Vigiava o sono e o devaneio da vida. Partia o pensamento em planos de amor, desejo do corpo do outro, em sonho.
Uma semana antes da festa daqui, Donana avisou que vinha. Carecia tratar de uns negócios de família. Mas, ficava na cidade, trazia mulher para mãe conhecer, moça boa, de família. Entristeci. Há muito havia deixado a mocidade assim. Ainda quando pai vivia, a gente tinha respeito, aparecia pretendente com vontade de casar. Depois da morte dele, mãe, com três filhas em casa, sozinha. Ou a gente ia à força, ou com quem queria. Melhor era ir por querer. Minha primeira irmã arranjou moço de Urucuia, caixeiro, sumiu no mundo. A segunda engravidou menina, no meio dos buritizais, morreu de parto. Eu tive o Dito inda moça, pai sumido no mundo. Fiquei eu, mais ele, mais mãe. Dito reclamava minha falta em noite de passagem de tropeiro, quando eu ia servir cama e cozinha. Ainda pequeno alertava, crescido havia de não deixar isso não, ia fazer medo nos homens, não ia aceitar eu ir com nenhum não. Mãe é bonita igual flor de Açucena e em flor não se põe a mão, ele dizia baixinho. Rezo pro Dito não crescer.
Mas o moço de longe, sim, ele vinha com mulher. Donana ia com marido e filho em casa da sogra. É verdade, a contragosto, mas carecia de ir. Festejavam o encontro lá, muito desejado de reunir toda família. Ela me chamou, ir conhecer a cidade, mas fiquei com medo de entristecer mais. No resto, ele que aqui viesse, na minha Lassance, eu tinha ponta de orgulho. Mas, na verdade, carecia que, no meu peito, soprava uma ventania danada em direção à cidade. Aquietei. Temi. Esperei a festa, ele havia de vir.
Dois dias antes dos festejos, Donana mandou moleque me avisando que ele tinha chegado, com alazão vermelho, o Colorado. Vinha em competição, apostava seu cavalo na corrida e, de gracejo, aproveitava a me encontrar. Coração saltou pela boca, eu era de novo menina. A gente estava em meio da preparação dos doces, em face corada do tacho de mamão verde fervilhando. E necessitava inda de acabar o capricho, não havia como deixar panela no fogo. À noite, sim, aconselhava encontro. Mandei de volta o aviso.
Fim de tarde, procurar flor de perfumar e outras de trançar no cabelo. Banho de flor de maracujá no rio e enfeite dos cachos com flores diversas. O corpo foi parar dentro do vestido de chita em arranjo vermelho, na mesma cor do carmim que passei na boca e nas bochechas. Não coloquei roupa de baixo, ele devia de sentir meu cheiro de mulher no cio. Queria que quando ele colocasse as mãos por debaixo da minha saia, nada o impedisse de sentir meu sexo como orvalho em flor. Era o de não se esquecer.
Na saída de casa, beijo no Dito, benção de mãe. Proibição de menino ir festa a fora de noite. De dia havia de levar para jogar víspora. Também, ficasse com sua avó, caso ela precisasse. Ele ficava... Bendito, o Dito. Estradinha curta perto do riacho, cheiro de grama de chuva, ventania a levantar o vestido. Já de longe avistava as barracas aluminadas, coloridas. Andava sentindo o encharcado do chão nas alpercatas. O passo desacelerava corrido na ânsia que sentia cá dentro. Um medo, um desejo, uma vontade de galope. Avistei Donana com os filhos na varanda de sua casa. Estremeci no talvez dele lá. Desci direto na barraca das bebidas. Tomei vinho doce, catuaba quente, sem amargor. A Festa de Lassance tinha música de sanfoneiro e tudo. A gente divertia até o mais tardar. Três doses bastaram em dar uma vontade de dançar, uma leveza boa de fechar os olhos, trocar os passos, rir alto e ouvir bobagem. No repente, passaram a mão na minha cintura, cheiro forte de homem e de boa cachaça, nem precisava olhar pra saber que era ele. Dancei em meio ao povo e quando dei com aquele rosto bonito perto de mim, o rumo se perdeu. Barba feita, cabelo em gomalina, dentes brancos num sorriso largo. O encanto do desejo do amor, mais bonito que o próprio amor. Modo de querer maior que o que se quer, pois a gente nem sabe o que se quer, nem mesmo se quer. Falar a verdade, parecia que só tinha nós dois ali. Girar de carrossel, as luzes das barracas entravam na retina para todo o sempre. Cheiro de cachaça, vinho, doces, salgados, de tudo que se bebe, come e cheira. Risos ao longe, vozes do padre e das beatas, cantando as pedras. Repetições e a boca dele com hálito de bebida quente. Deus abençoa a Festa em Lassance.
Não sei quanto tempo estive na dança dos festejos, só lembro do depois, a gente nas pedras do riacho, a inteireza de minha doação em prenda, fosse como besta em cio, de doma não arreliada, presa pela cintura... Fosse deitada entre as pedras, sonho de inda moça, apertos de santa, cá dentro à revelia. Depois do arfar, do morder, do morrer, a gente olhou as estrelas do céu num apaziguamento de amor, sabido não? Um sossego do corpo, no entender das coisas. Meu Colorado venceu, ele falou em sorriso... Duas cabeças de frente! Estava cheio de si, homem vencida a disputa. Mansa, fui pra junto dele, apertei nos braços o que não era meu e sonhei, num bocado, que era. O coração miúdo... Só Deus sabe como é a dor da querência que só pertence à gente. Amor de esperança de carta, de pedido de casamento, de flor catada em jardim, de dizer que é amada também. Mas, no rumo inverso, a vida parece carregar o não receber das coisas e desviar a gente numa terceira margem de rio.
Fui feliz sim. Sempre acredito em resto de alegria, sina de pouco. Mas, não deixo de sentir falta de bendizer a vida para sempre. Partimos, ele com promessa de volta, que a gente sabia não acontecer. Beijo curto, caminhada sem olhar para trás. Cheguei em casa, Dito dormia. Sonhava? Deitei na cama, ainda com cheiro dele no corpo e no vestido. Um ardor abrasava o embaixo do vestido, lembrança do se esquecer. Mais um para o nunca mais de amar... Sei não. Festa em Lassance durou pouco aquele ano.
Diadorim! Lindo o teu texto de chitas e desejos, com o gosto mineiro do querer mais.
ResponderExcluirQue beleza, H.! Você arrasou de novo.
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