supõe um fio sem corte
entre sombra e abismo
o crepúsculo atravessa
janela a janela
os raios projetados
na parede das pétalas
detalham mancha
e derrota
Oswaldo Martins. Poeta e professor de literatura. Autor dos livros desestudos, minimalhas do alheio, lucidez do oco, cosmologia do impreciso, língua nua com Elvira Vigna, lapa, manto, paixão e Antiodes, com Alexandre Faria. Editor da TextoTerritório
supõe um fio sem corte
entre sombra e abismo
o crepúsculo atravessa
janela a janela
os raios projetados
na parede das pétalas
detalham mancha
e derrota
neste
corpo encerra-se o tempo curto
nossa
conta ambígua de zero a x
alguns
bolsões criariam atos turvos
à
espera, a vida advém por um triz
no
alumbramento – apenas o instante
aberto
entre o rumor e a ausência –
constrói
alicerces que se roem ante
o
abrupto dos fatos e a insciência
do
ato seguinte ao ir fazer as compras
deixa
quieto o duro odor em ásperas
bocas
sem salivas prontas para o gás
mas
nem isso sequer a vida nos faz
permite
a só busca da última aceira
e
nos deixa a viver recolhas tontas
os blocos de nuvem
no silêncio dos cortes
inventam negocinhos
coisa de pouca monta
uma dona carola
a dona augusta
há sempre quem
nos acolchoados das ruas
tece o sobretudo do fim
depois o ainda
ao despir a cara
tange o lirismo fino
dos engolidores de lua
teoria 1
loucamente temperaturas aumentam
a fricção provocada pelo cisalhar
de corpos magmáticos próximos
causa papéis amorfos
não cabem homens crus
sequer a cruel desaparição
se aventa cintilante palavra
e causa sempre maiores destroços
S. espiava de sua janela. A amplitude da praça, o parque pelo qual as pessoas passavam, sem deixarem de olhar para baixo, desligadas do que havia em torno, com seus capuzes que lhes cobriam o rosto, deixando apenas de fora os olhos para que não tropeçassem e fizessem com que os outros, do pelotão de trás, as pisoteasse. Os passos sincronizados, as mãos trêmulas que se estiravam ao longo do corpo eram uma imagem única, desprovida de matizes. Todos vestiam roupas sem nenhum atrativo; os corpos semelhantes não os individualizam; os ruídos monótonos não faziam referência a nenhuma música. Caminhavam e despareciam.
Mais ao longe, se aguçasse o olhar, veria alguns soldados chicotearem outro grupo de pessoas, ouviria os gritos, perceberia os rostos plenos, sob os esgares medonhos e ameaçadores, os acordes violentos e vivos, as mãos a se agitarem, os quadris a inventarem passos, uma flor brotar ao acaso entre as pessoas e logo sumir, as cores desenfreadas a se mostrarem nos cabelos, as luzes. As portas se abriam com estrondo. Veria serem as pessoas jogadas para dentro delas, as engenhocas, os corpos nus, os leitos em fileiras, os homens ali amarrados.
Se ainda estivesse atenta, perceberia, atrás da porta que se fechara, alguns homens de terno, com seus aparelhinhos luminosos, tocarem uma superfície lisa da qual surgiam imagens harmônicas, interrompidas de vez em quando por um pequeno ruído que os fazia deslizarem o dedo por ela. Surgiam então conhecidos felizes, cujas roupas coloridas encantavam àqueles que as olhavam. Observaria ainda que a sala de repente escurecia e apenas alguns pontos se iluminavam e que os aparelhinhos haviam trocado de mãos.
De sua janela, veria os homens, antes agitados, sorrirem e receberem suas roupas com capuz e serem levados de volta à praça. Caminhavam quietos e cabisbaixos, as mãos tamborilando ansiosas e lentas na altura dos quadris em direção às suas janelas de onde poderiam observar o espetáculo do mundo, as cores vivas com a quais ele tomava forma e o simulacro de si mesmos caminhando despreocupados pelo parque que não mais notariam.
lingerie
o pequeno buraco se fizera
após alguns anos
de algodão barato
insinuante o cheiro dos dias
na curva da bunda
o furinho sem incômodo
ajeitava mosaicos
sobre a pele
s. preferia a de cor roxa
(oswaldo martins)
a bailarina
para julia fernandez
revela-se essa moça quando braços
antecedem os movimentos do corpo
a arrastarem-se ao som de uma voz
ausente e às marcações de indícios
alheias formas de escultura e busca
sujeitas ao discernimento metafísico
das negativas e dobras cujas voltas
fazem dançar no cimento da cidade
as sombras antes etéreas por refletir
no móbile do espaço o corpo reposto
à carne e ao friúme da força acessa
da boca do lixo ao esplendor informe
tanto fulge o fausto da chama quanto
o chão simula o anteparo da leveza
letras carcomidas visitam
a biblioteca podre homero
morto morta a viagem
o estupor sem urgência
estende a mão à criança
e seus destroços
o último olhar seca
sobre o abismo
desta ilha em negativo
ode 1
descantar os sucessos do dia
as hordas
de orifícios compõem do tempo
a sua ficção
casebres e palácios surgem do
nada
para onde seguem sem suspiro
ou vozes
as cataratas cegam ao sabor do
léxico
os desguardados dele – tudo – o
silêncio
de vias findas
as potências alardeiam de há
muito
o silêncio-torpeza afetivo do
acúmulo
ao dará deus
as fugas inexistem ao pé de um
toque
o mundo cessa as casas caem
o outro já morto
os versos decantam seus
licores
o abismo mostra onde ressurge
sobre a garupa
uma biruta de desnortes
assente
na embriaguez vela o
tartamudeio
das sintaxes cruas
ode 2
o látex serve bem à sua dona
impõe-se justo à maré baixa
da boca coleante das línguas
náufragos
dele tanto necessitam
quanto
afagos crus sugerem
o
irem-se descamados ao rés
do
submundo para ouvirem
da
sarça ardente o reproche
e
se ajoelharem cães aos pés
divinos
– corcel condutor da chã
obediência
em seu elástico
movimento
entre o imundo
e
o prazer
ode 3
os pés sobre a terra
acorde após acorde adiam
a fenda lenta ao subir
mostram através dos passos
pernas a andarem o corpo
sopram surpresas às ruas
com suas sarnas – fulgor
a relampear – essa visão
tirana do instante – depois
as sombras caem nos ventos
do silêncio retorto avançam
até o limite da ave sem voo