sexta-feira, 22 de novembro de 2024

continuum

 

supõe um fio sem corte

entre sombra e abismo

 

o crepúsculo atravessa

janela a janela

 

os raios projetados

na parede das pétalas

 

detalham mancha

e derrota

terça-feira, 12 de novembro de 2024

sega

 

neste corpo encerra-se o tempo curto

nossa conta ambígua de zero a x

alguns bolsões criariam atos turvos

à espera, a vida advém por um triz

 

no alumbramento – apenas o instante

aberto entre o rumor e a ausência –

constrói alicerces que se roem ante

o abrupto dos fatos e a insciência

 

do ato seguinte ao ir fazer as compras

deixa quieto o duro odor em ásperas

bocas sem salivas prontas para o gás

 

mas nem isso sequer a vida nos faz

permite a só busca da última aceira

e nos deixa a viver recolhas tontas

 

domingo, 27 de outubro de 2024

Capital

 os blocos de nuvem

no silêncio dos cortes

inventam negocinhos

 

coisa de pouca monta

uma dona carola

a dona augusta

 

há sempre quem

nos acolchoados das ruas

tece o sobretudo do fim

 

depois o ainda

ao despir a cara

tange o lirismo fino

 

dos engolidores de lua

domingo, 20 de outubro de 2024

teoria 1

 teoria 1


loucamente temperaturas aumentam 

a fricção provocada pelo cisalhar 

de corpos magmáticos próximos

causa papéis amorfos


não cabem homens crus

sequer a cruel desaparição

se aventa cintilante palavra

e causa sempre maiores destroços

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Domesticação

S. espiava de sua janela. A amplitude da praça, o parque pelo qual as pessoas passavam, sem deixarem de olhar para baixo, desligadas do que havia em torno, com seus capuzes que lhes cobriam o rosto, deixando apenas de fora os olhos para que não tropeçassem e fizessem com que os outros, do pelotão de trás, as pisoteasse. Os passos sincronizados, as mãos trêmulas que se estiravam ao longo do corpo eram uma imagem única, desprovida de matizes. Todos vestiam roupas sem nenhum atrativo; os corpos semelhantes não os individualizam; os ruídos monótonos não faziam referência a nenhuma música. Caminhavam e despareciam.

Mais ao longe, se aguçasse o olhar, veria alguns soldados chicotearem outro grupo de pessoas, ouviria os gritos, perceberia os rostos plenos, sob os esgares medonhos e ameaçadores, os acordes violentos e vivos, as mãos a se agitarem, os quadris a inventarem passos, uma flor brotar ao acaso entre as pessoas e logo sumir, as cores desenfreadas a se mostrarem nos cabelos, as luzes. As portas se abriam com estrondo. Veria serem as pessoas jogadas para dentro delas, as engenhocas, os corpos nus, os leitos em fileiras, os homens ali amarrados.

Se ainda estivesse atenta, perceberia, atrás da porta que se fechara, alguns homens de terno, com seus aparelhinhos luminosos, tocarem uma superfície lisa da qual surgiam imagens harmônicas, interrompidas de vez em quando por um pequeno ruído que os fazia deslizarem o dedo por ela. Surgiam então conhecidos felizes, cujas roupas coloridas encantavam àqueles que as olhavam. Observaria ainda que a sala de repente escurecia e apenas alguns pontos se iluminavam e que os aparelhinhos haviam trocado de mãos.

De sua janela, veria os homens, antes agitados, sorrirem e receberem suas roupas com capuz e serem levados de volta à praça. Caminhavam quietos e cabisbaixos, as mãos tamborilando ansiosas e lentas na altura dos quadris em direção às suas janelas de onde poderiam observar o espetáculo do mundo, as cores vivas com a quais ele tomava forma e o simulacro de si mesmos caminhando despreocupados pelo parque que não mais notariam.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

lingerie

 

lingerie

 

o pequeno buraco se fizera

após alguns anos

 

de algodão barato

insinuante o cheiro dos dias

 

na curva da bunda

o furinho sem incômodo

 

ajeitava mosaicos

sobre a pele

 

s. preferia a de cor roxa


(oswaldo martins)

ilhas-de-não

 a bailarina

para julia fernandez


revela-se essa moça quando braços

antecedem os movimentos do corpo

a arrastarem-se ao som de uma voz

ausente e às marcações de indícios


alheias formas de escultura e busca

sujeitas ao discernimento metafísico

das negativas e dobras cujas voltas

fazem dançar no cimento da cidade


as sombras antes etéreas por refletir

no móbile do espaço o corpo reposto

à carne e ao friúme da força acessa


da boca do lixo ao esplendor informe

tanto fulge o fausto da chama quanto

o chão simula o anteparo da leveza


Dia Machado de Assis


 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

anágora

letras carcomidas visitam

a biblioteca podre homero

morto morta a viagem


o estupor sem urgência 

estende a mão à criança

e seus destroços


o último olhar seca

sobre o abismo 

desta ilha em negativo


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

ode

 

ode 1

descantar os sucessos do dia as hordas

de orifícios compõem do tempo

a sua ficção

 

casebres e palácios surgem do nada

para onde seguem sem suspiro

ou vozes

 

as cataratas cegam ao sabor do léxico

os desguardados dele – tudo – o silêncio

de vias findas

 

as potências alardeiam de há muito

o silêncio-torpeza afetivo do acúmulo

ao dará deus

 

as fugas inexistem ao pé de um toque

o mundo cessa as casas caem

o outro já morto

 

os versos decantam seus licores

o abismo mostra onde ressurge

sobre a garupa

 

uma biruta de desnortes assente

na embriaguez vela o tartamudeio

das sintaxes cruas


ode 2

o látex serve bem à sua dona

impõe-se justo à maré baixa

da boca coleante das línguas

 

náufragos dele tanto necessitam

quanto afagos crus sugerem

o irem-se descamados ao rés

 

do submundo para ouvirem

da sarça ardente o reproche

e se ajoelharem cães aos pés

 

divinos – corcel condutor da chã

obediência em seu elástico

movimento entre o imundo

 

e o prazer

 

ode 3 

os pés sobre a terra

acorde após acorde adiam

a fenda lenta ao subir

 

mostram através dos passos

pernas a andarem o corpo

sopram surpresas às ruas

 

com suas sarnas – fulgor

a relampear – essa visão

tirana do instante – depois

 

as sombras caem nos ventos

do silêncio retorto avançam

até o limite da ave sem voo